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Processo nº 127/94
2ª Secção
relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1.I... instaurou, no Tribunal do Trabalho de Coimbra,
acção ordinária contra CAMINHOS DE FERRO PORTUGUESES, EP, pedindo a sua
condenação no pagamento da quantia de 3.683.972$00, relativa ao trabalho
extraordinário que disse ter prestado entre 1 de Novembro de 1959 e 1 de Março
de 1990.
Sem êxito, porém. Tal como sem êxito foi também o
recurso que interpôs para a Relação da sentença da 1ª instância.
Recorreu, então, de revista para o Supremo Tribunal de
Justiça, invocando, entre o mais, a inconstitucionalidade dos artigos 6º do
Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, e 13º do Decreto nº 381/72, de 9 de
Outubro, e das cláusulas 83ª, 86ª e 89ª dos Acordos Colectivos de Trabalho de
1976, 1978, 1981 e 1990; e, bem assim, a ilegalidade daquele artigo 13º do
Decreto nº 381/72.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 23 de
Fevereiro de 1994, negou a revista, depois de ter concluído: 'Não houve pois
violação de qualquer princípio da lei fundamental [nomeadamente dos seus artigos
13º e 59º, nº 1, alíneas a) e d)]. Nem da lei comum'.
2. É deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (de 23
de Fevereiro de 1994) que vem o presente recurso, interposto ao abrigo das
alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, para
apreciar a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 6º do
Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, e 13º do Decreto nº 381/72, de 9 de
Outubro, e das cláusulas 83ª do Acordo Colectivo de Trabalho de 1976, 86ª do
Acordo Colectivo de Trabalho de 1978 e 89ª do Acordo de Empresa de 1981; e, bem
assim, a ilegalidade daquele artigo 13º do Decreto nº 381/72.
Neste Tribunal, a recorrente concluiu assim as suas
conclusões:
A. Sobre a inconstitucionalidade:
1 - As cláusulas dos ACTs que acima se indicaram constituem verdadeiros
'regulamentos delegados' ou mesmo 'autónomos'. E foram criados à sombra do
disposto no artº 6º, nº 2, b), do DL nº 409/71, de 27 de Novembro e do artigo
13º do Dec. 381/72, de 9 de Outubro.
2 - Segundo os artigos 201º e 202º da CRP (respectivamente versão de 1976 e
1982) compete exclusivamente ao governo, no exercício das funções
administrativas, fazer os regulamentos necessários à boa execução das leis.
3 - Por outro lado, impõe o artº 114º da CRP de 1976 que: nenhum órgão de
soberania, da região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes
noutros órgãos a não ser nos casos expressamente previstos não só na
Constituição mas também na lei.
4 - Por sua vez, o artº 115º, nº 5, da CRP (revisão de 1982) veio proibir os
regulamentos delegados ao impôr que nenhuma lei pode criar outras categorias de
actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com
eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar
qualquer dos seus preceitos. Isto significa a inadmissibilidade, no direito
constitucional português vigente de 'regulamentação de regulamentos delegados'
ou 'autónomos', em qualquer das suas manifestações típicas.
5 - O artigo 6º, nº 2, b), do DL 409/71 e os artº 13º e 14º do dec. 381/72 são
pois inconstitucionais por ofensa do artº 201º (1976), 202º (1982) - 114º e
115º, nº 5 da CRP.
6 - E inconstitucionais são ainda as cláusulas 83º-86º e 89º dos ACTs de
1976-1978-1981, porque criadas à sombra de normas inconstitucionais e ainda
porque, de forma indirecta, ofendem os preceitos constitucionais referidos na
conclusão que antecede (5).
7 - Tais cláusulas são ainda inconstitucionais (organicamente, formalmente e
materialmente) porque as alterações a introduzir nas normas do DL 409/71,
relativamente às empresas públicas e concessionárias de serviços públicos, só
podiam ser feitas pelo Governo por meio de decreto regulamentar e não por outra
via. Assim o impõe o artº 10º, nº 2, do DL 409/71.
8 - E são ainda inconstitucionais ao imporem horários de trabalho diário de 12
horas - superior a 12 horas - permanente, pois a recorrente ao ser-lhe negada a
possibilidade de se ausentar do seu posto de trabalho ou das proximidades deste,
tais normas convencionais violaram o artº 53º, b) e d) da CRP por imporem uma
jornada de trabalho sem limite e por impedirem a trabalhadora da sua realização
pessoal, familiar e social.
9 - E ofendem ainda o artº 54º, b), da CRP porque a fixação do horário nacional
de trabalho é da exclusiva competência do Governo.
10 - E considerando que o salário mensal das guardas de PN é igual para todas,
como resulta dos vários ACTs, independentemente de trabalharem 9-12 ou mais de
12 horas/dia, a recorrente tendo prestado mais de 9 horas/dia ou mais de 12
horas/dia, recebendo o mesmo salário, foi discriminada e prejudicada. Tais
cláusulas são pois inconstitucionais por ofenderem os princípios contidos no
artº 13º da CRP.
B - Sobre a ilegalidade:
11 - Para além de inconstitucionais, o artº 6º, nº 2‑b) do DL 409/71 e os
artigos 13º e 14º do dec. 381/72 são ainda ilegais - contra legem - porque
ofendem o disposto no artigo 1º, nº 2 do DL 409/71 que impõe que as alterações a
introduzir no mesmo sejam feitas por uma única via - o decreto regulamentar e
não por actos de outra natureza; pelo Governo e não por outros órgãos
diferentes.
12 - Ilegais são ainda as ditas cláusulas porque ofendem os princípios contidos
nas seguintes disposições legais:
a) Artigo 13º da LCT - DL 49.408 ? de 21.11.69
b) Artigo 4º-c) do DL 164-A/76? de 28 de
Fevereiro.
c) Artigo 6º, nº 1-c) do DL 519-C1/79, de 29 de Dezembro, os
quais proibem os instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho de
incluírem quaisquer disposições que importem para os trabalhadores tratamento
menos favorável do que o estabelecido por lei.
E um horário de trabalho de 12 horas - superior a 12 horas ou permanente é menos
favorável do que o estabelecido no DL 409/71 e dec. 381/72 (48 horas/semana e 8
ou 9 horas/dia).
A recorrida, por sua parte, formulou as conclusões que,
a seguir, se indicam:
1. A actividade das guardas de passagem de nível deverá ser sobretudo moldada,
como refere a cláusula 89ª do ACT de 1981, pelo 'movimento das passagens de
nível quanto a peões, veículos e composições ferroviárias'.
2. Trata-se, assim, de uma prestação de trabalho marcadamente intermitente,
processando-se ao longo da jornada de forma descontínua em função das efectivas
necessidades do tráfego ferroviário, alternando períodos de trabalho efectivo
com períodos de não trabalho ou inactivos.
3. O esquema de trabalho das guardas de PN não põe, assim, em causa o direito
aos lazeres e ao repouso, nem conduz a qualquer tipo de discriminação, antes se
apresentando perfeitamente compatível com o sentido dos artºs 59º e 13º da CRP.
4. O artº 6º, nº 2, al. b) do DL nº 409/71, de 27 de Setembro, prevê que, nas
hipóteses de trabalho marcadamente intermitente, os limites máximos dos períodos
normais de trabalho legalmente fixados possam ser ultrapassados por decreto
regulamentar ou instrumentos de regulamentação colectiva.
5. Ao remeter para 'as excepções e adaptações constantes das convenções
colectivas de trabalho', o artº 13º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro
(diploma que adequa o DL nº 409/71 ao sector dos transportes ferroviários)
limita-se, assim, a reproduzir a doutrina da lei geral aplicável que remete, ela
própria, para a contratação colectiva a duração dos períodos normais de trabalho
às situações em que um acréscimo relativamente aos máximos legais é permitido
(como no caso da intermitência).
6. Semelhante raciocínio vale para o artº 14º do Decreto nº 381/82.
7. Este tipo de reenvios normativos - regulamentos delegados ou autorizados - só
vieram a ser postergados da ordem jurídica portuguesa na sequência do artº 115º,
nº 5, da CRP, introduzido pela Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro.
8. A inconstitucionalidade superveniente não afecta na sua consistência jurídica
os actos anteriormente publicados ao abrigo da norma inconstitucional.
9. Da mesma forma, o princípio do congelamento do grau hierárquico só foi
introduzido com a 1ª revisão da CRP, valendo, neste particular, as razões
anteriormente apontadas a propósito da inconstitucionalidade superveniente.
10. O reenvio para as convenções colectivas, para além de não infringir qualquer
reserva da lei, já que esta não existe no domínio em apreço, coadunou-se, já
nessa altura, com os princípios da autonomia dos organismos sindicais a que se
referem os artºs 55º e 56º da CRP.
11. Não se verifica, assim, qualquer inconstitucionalidade do artº 6º, nº 2, al.
b), do DL 409/71, dos artºs 13º e 14º do Decreto nº 381/72 e das cláusulas 83ª,
86ª e 89ª, respectivamente, dos ACTs de 1976, 1978 e 1981.
12. Entre o artº 1º, nº 2, e o artº 6º, nº 2, al. b) do DL nº 409/71 não se
verifica qualquer colisão: o primeiro visa a possibilidade da adaptação do
diploma às empresas concessionárias de serviço público e às empresas públicas e
o outro prevê a possibilidade geral de os limites dos períodos normais de
trabalho serem ultrapassados em casos de trabalho acentuadamente intermitente.
13. Quanto ao artº 13º do Decreto nº 381/72, sendo - como é - legal o reenvio a
que procede para a contratação colectiva, de nenhuma ilegalidade padece, o mesmo
valendo para o artº 14º do mesmo diploma.
14. As cláusulas supra referidas dos ACTs têm perfeito suporte na lei (artº 13º
da LCT) não aduzindo os artºs 4º, al. c) do DL nº 164-A/76 e 6º, nº 1, al. c) do
DL nº 518-C1/79, qualquer argumento que possa ser utilizado pela ora Recorrente.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. Delimitação do objecto do recurso:
Liminarmente, dir-se-á que, das questões que a
recorrente colocou nas alegações aqui apresentadas, o Tribunal não apreciará as
seguintes:
(a). a questão da inconstitucionalidade do artigo 14º do
Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro, nem a da sua ilegalidade;
(b). a questão da inconstitucionalidade e a da
ilegalidade, tendo por objecto as cláusulas 83ª do ACT de 1976, 86ª do ACT de
1978 e 89ª do ACT de 1981;
(c). a questão da ilegalidade do artigo 6º, nº 2, alínea
b), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro;
(d). a questão da ilegalidade da norma do artigo 13º do
citado Decreto nº 381/72.
O Tribunal pronunciar-se-á, pois, tão-somente sobre a
constitucionalidade do artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto‑Lei nº 409/71, de
27 de Setembro, e sobre a do artigo 13º do Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro.
As razões são as seguintes:
4.1. Quanto à questão da inconstitucionalidade e à da
ilegalidade do artigo 14º do Decreto nº 381/72:
Para além de tal norma não ter sido indicada no
requerimento de interposição do recurso (como se imporia, face ao disposto no
artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional), nunca ela fora questionada sub
specie constitutionis ou sub specie legis, durante o processo, como o exigem as
alíneas b) e f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional para que
possa recorrer-se para este Tribunal.
4.2. Quanto à questão da ilegalidade do artigo 6º, nº 2,
alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71:
Durante o processo, nunca a recorrente suscitou a
ilegalidade deste artigo 6º, nº 2, alínea b), mas apenas a sua
inconstitucionalidade.
Desde logo por aí, não se verificam os pressupostos do
recurso por ilegalidade, previstos na alínea f) - com referência à alínea b) -
do nº 1 do artigo 70º já citado.
Acresce que, no requerimento de interposição do recurso
para este Tribunal, a recorrente apenas pediu a apreciação do referido artigo
6º, nº 2, alínea b), sub specie constitutionis, e não também sub specie legis.
O requerimento de interposição do recurso não satisfaz,
assim, quanto ao vício de ilegalidade, os requisitos formais impostos pelo
artigo 75º-A (já citado) para se conhecer do recurso.
4.3. Quanto à questão da ilegalidade do artigo 13º do
Decreto nº 381/72:
A questão da ilegalidade deste artigo 13º foi suscitada
pela recorrente durante o processo. Ao que acresce que a recorrente solicitou a
sua apreciação por este Tribunal, também sub specie legis.
Apesar disso, porém, no caso, não se verificam todos os
pressupostos necessários ao conhecimento de tal questão de ilegalidade por este
Tribunal.
De facto - para além dos casos, que aqui não estão em
causa, de aplicação de 'norma constante de diploma regional' [alínea d)] ou cuja
ilegalidade se traduza na 'violação do estatuto de uma região autónoma' [alínea
e)] ou 'na sua contrariedade com uma convenção internacional' [alínea i)] -, o
recurso por ilegalidade, previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei do
Tribunal Constitucional, só cabe das decisões de outros tribunais que apliquem
'norma constante de acto legislativo', cuja ilegalidade se traduza na 'violação
de lei com valor reforçado' [alínea c)].
No recurso da alínea f), conjugada com a alínea c), do
nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional - que é o que aqui está em
causa - o Tribunal só controla, pois, a legalidade reforçada.
Ora, independentemente de o Decreto-Lei nº 409/71, de 27
de Setembro, dever ou não merecer o qualificativo de 'lei com valor reforçado' -
questão que, aqui, não interessa decidir -, o mencionado artigo 13º do decreto
consta de um regulamento, e não de um acto legislativo, pois que só são tais as
leis, os decretos-leis e os decretos legislativos regionais (cf. artigo 115º, nº
1, da Constituição). Os decretos, esses são regulamentos [cf. artigo 115º, nº 6,
202º, alínea b), e 204º, nº 3, da Constituição): contêm normas regulamentares, e
não normas legislativas.
4.4. Quanto à questão da inconstitucionalidade e à da
ilegalidade das cláusulas 83ª, 86ª e 89ª , atrás indicadas:
As cláusulas referidas constam de acordos colectivos de
trabalho, sendo, assim, produto da contratação colectiva entre a CP e os
sindicatos interessados. Nasceram do livre exercício da autonomia contratual
colectiva.
Tais cláusulas não são, porém, normas para os efeitos do
disposto no artigo 280º (e 281º) da Constituição - e, assim, para o efeito, que
aqui está em causa, dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional -, como este Tribunal, por esta mesma
Secção, embora só por maioria, teve ocasião de mostrar no acórdão nº 172/93
(publicado no Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1993).
Para assim concluir (ou seja: para concluir que as
cláusulas das convenções colectivas de trabalho não são normas para o efeito de
serem submetidas ao específico sistema de controlo de constitucionalidade,
constante dos artigos 280º e 281º da Constituição), o Tribunal começou por
assinalar que tais convenções, seja qual for a sua natureza jurídica, não têm
fixado na Lei Fundamental o regime jurídico da sua eficácia. A Constituição
comete à lei ordinária tal encargo (cf. artigo 56º, nº 4).
Ora, o Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro,
estabelece, no nº 1 do seu artigo 7º, que 'as convenções colectivas de trabalho
obrigam as entidades patronais que as subscreveram e as inscritas nas
associações patronais signatárias, bem como os trabalhadores ao seu serviço que
sejam membros quer das associações sindicais celebrantes, quer das associações
sindicais representadas pelas associações sindicais celebrantes'. Acrescenta, no
nº 2 do mesmo artigo 7º, que 'as convenções outorgadas pelas uniões, federações
e confederações obrigam as entidades patronais empregadoras e os trabalhadores
inscritos, respectivamente, nas associações patronais e nos sindicatos
representados nos termos dos estatutos daquelas organizações [...]'. E, no
artigo 8º, preceitua que se consideram 'abrangidos pelas convenções colectivas
os trabalhadores e as entidades patronais que estivessem filiadas nas
associações signatárias no momento do início do processo negocial, bem como os
que nelas se filiem durante o período de vigência das mesmas convenções'.
Portanto, obrigados pelas convenções colectivas de
trabalho, apenas ficam as entidades que as celebram e as organizações e os
trabalhadores que por elas são ou venham a ser representados. Quaisquer outras
organizações e trabalhadores só podem vir a ficar obrigados por tais convenções,
se isso vier a ser determinado por uma portaria de extensão, que é um acto
normativo público.
De facto, o artigo 29º do citado Decreto-Lei nº
519‑C1/79 (entretanto, alterado pelo Decreto-Lei nº 209/92, de 2 de Outubro)
dispõe que, por portaria, pode 'ser determinada a extensão, total ou parcial,
das convenções colectivas [...] a entidades patronais do mesmo sector económico
e a trabalhadores da mesma profissão ou profissão análoga, desde que exerçam a
sua actividade na área e no âmbito naquelas fixados e não estejam filiados nas
mesmas associações' (nº 1) ou, ainda que exercendo 'a sua actividade em área
diversa daquela em que a mesma convenção se aplica, quando não existam
associações sindicais ou patronais e se verifique identidade ou semelhança
económica e social' (nº 2).
O Tribunal disse, depois, a concluir, no referido
acórdão nº 172/93:
Em resumo: a lei regulamenta a eficácia específica das convenções colectivas
impondo a sua obrigatoriedade unicamente quanto àqueles que devem considerar-se
representados pelas entidades que as subscrevem, à luz dos princípios do direito
do trabalho. As organizações profissionais que as celebram não têm poderes de
autoridade mas apenas poderes de representação, isto é, de defesa e de promoção
da defesa dos direitos e interesses dos respectivos filiados (cfr. artigo 56º,
nº 1, da Constituição). E, assim, o clausulado que elas incorporam não contém
normas, entendidas como padrões de conduta emitidos por entidades investidas em
poderes de autoridade.
Ora, se pode discutir-se qual o exacto alcance da palavra norma estabelecida no
artigo 280º, nº 1, alínea b), da Constituição, parece seguro, pelo menos, que
com ela se teve em vista apenas os actos dispositivos de entidades investidas em
poderes de autoridade, e mais precisamente, os actos dispositivos dos poderes
públicos. Por exemplo, esta questão é dada como assente no Acórdão nº 26/85
(Diário da República, 2ª série, de 26 de Abril de 1985), onde se concluiu que
nem todos os actos dos poderes públicos devem considerar-se normas (e, portanto,
sujeitos à fiscalização do Tribunal Constitucional): aí se optou por um conceito
funcionalmente adequado, segundo o qual não são normas as decisões judiciais e
os actos da administração sem carácter normativo, nem os actos políticos ou
actos de governo em sentido estrito.
Tal conceito funcionalmente adequado seria retomado depois no Acórdão nº 150/86
(Diário da República, 2ª série, de 26 de Julho de 1986), onde se considerou ser
o mesmo aplicável, não só aos casos de fiscalização abstracta, mas também aos
casos de fiscalização concreta, e que neste domínio o que importa verificar é se
o preceito a examinar tem por parâmetro de validade imediata a lei ou a
Constituição, pois que neste último caso nada justificará que esse exame escape
à jurisdição e à competência do Tribunal Constitucional.
O Tribunal, contudo, sempre afirmou com clareza que escapam ao seu poder de
cognição as normas provenientes da autonomia privada, salvo quando decorrentes
da atribuição de poderes ou funções públicas a entidades privadas (Acórdão nº
472/89, in Diário da República, 2ª série, de 22 de Setembro de 1989; e Acórdãos
nº 156/88 e nº 157/88, in Diário da República, 2ª série, de 17 de Setembro e de
26 de Julho de 1988, respectivamente).
Ora, como as normas das convenções colectivas de trabalho não provêm de
entidades investidas em poderes de autoridade, e muito menos provêm de poderes
públicos, então não estão sujeitas à fiscalização concreta de
constitucionalidade que incumbe a este Tribunal exercer, nos termos do artigo
280º, nº 1, alínea b), da Constituição.
É certo que o artigo 56º, nº 4, da Constituição se refere a normas das
convenções colectivas de trabalho. Todavia, com isto não pretende obviamente
usar o termo no sentido de normas provenientes dos poderes públicos, as únicas
que são consideradas no sistema de fiscalização de constitucionalidade pelo
artigo 3º, nº 3, da Constituição, como nota Jorge Miranda [...].
E esta conclusão não conflitua com o decidido no Acórdão nº 392/89 (Diário da
República, 2ª série, de 14 de Setembro de 1989), na medida em que aí se conheceu
de uma norma constante de uma convenção colectiva de trabalho objecto de uma
portaria de extensão. É que, como então se assinalou, 'a cláusula foi aplicada
ex vi de uma portaria de extensão, que, assim, a 'apropriou', fazendo 'seu o
respectivo conteúdo normativo'', sendo certo que 'as normas de uma portaria
preenchem, seguramente, o conceito de norma para o efeito da sua submissão ao
controlo de constitucionalidade'.
Não se estando, pois, em presença de normas, não pode o
Tribunal apreciar a constitucionalidade, nem a legalidade das mencionadas
cláusulas 83ª, 86ª e 89ª (a apreciação deste último vício sempre, de resto,
estaria excluída, além do mais, porque se não estaria em presença de normas
legislativas).
Passando ao conhecimento das questões de
constitucionalidade.
5. A questão da constitucionalidade do artigo 6º, nº 2,
alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro:
5.1. Mediante o contrato de trabalho que celebra com a
entidade patronal, o trabalhador obriga-se a prestar-lhe, sob a autoridade e
direcção dela e mediante retribuição, a sua actividade intelectual ou manual
(cf. artigo 1º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 49.408, de 21 de Novembro de 1969).
O número de horas de trabalho que o trabalhador se
obriga a prestar denomina-se período normal de trabalho, sendo o respectivo
limite máximo fixado por lei (cf. artigo 12º do regime Jurídico do Contrato
Individual de Trabalho) - lei que é o Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro.
(Este Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, foi, entretanto, alterado pelo
Decreto-Lei nº 398/91, de 16 de Outubro e, no tocante aos mapas de horário de
trabalho, pelo Decreto-Lei nº 65/87, de 6 de Fevereiro. E foi revogado pelo
Decreto-Lei nº 421/83, de 2 de Dezembro, no que se refere ao trabalho
extraordinário e ao trabalho prestado no dia de descanso semanal).
O nº 2 do artigo 1º deste Decreto-Lei nº 409/71
prescreve que o regime definido neste diploma (aplicável à duração do trabalho
prestado por efeito do contrato de trabalho) se aplica 'ao trabalho prestado às
empresa concessionárias de serviço público e às empresa públicas, com as
adaptações que nele vierem a ser introduzidas por decretos regulamentares
[...]'. Dispõe, depois, o artigo 5º (redacção do citado Decreto‑Lei nº 398/91)
que 'o período normal de trabalho não pode ser superior a 8 horas por dia e a 44
horas por semana' (antes da Lei nº 2/91, de 17 de Janeiro, tal período não podia
ultrapassar 48 horas semanais).
É dentro destes limites máximos do período normal de
trabalho que a entidade patronal deve estabelecer o horário de trabalho do
pessoal ao seu serviço (cf. os artigos 49º da Lei do Contrato Individual de
Trabalho e 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 409/71).
Os limites do período normal de trabalho, que se deixam
apontados, podem, no entanto, 'ser ultrapassados nos casos expressamente
previstos por disposição legal' (cf. nº 1 do artigo 6º). E mais: de acordo com o
nº 2 deste artigo 6º:
2. O acréscimo dos limites referidos no número anterior poderá ser determinado
em decreto regulamentar ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho:
a). [..]
b). Em relação às pessoas cujo trabalho seja acentuadamente
intermitente ou de simples presença.
Por conseguinte, salvo nos casos expressamente previstos
na lei, o período normal de trabalho não pode exceder 8 horas por dia, nem 44
por semana. Só não será assim, quando se tratar de 'trabalho [que] seja
acentuadamente intermitente ou de simples presença': num tal caso, aqueles
limites podem ser excedidos. Questão é que tal seja 'determinado em decreto
regulamentar ou instrumento de regulamentação colectiva de trabalho'.
O acórdão recorrido qualificou o trabalho das guardas
das passagens de nível do tipo P (que se estende diariamente, por um período
superior a 12 horas: cf. a cláusula 80ª do ACT publicado no Boletim do
Ministério do Trabalho, nº 22, de 15 de Junho de 1975), como sendo
'acentuadamente intermitente'.
Como resulta do respectivo preâmbulo, foi ao abrigo do
artigo 1º, nº 2, do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro - normativo que,
neste recurso, não está em causa - que o Governo editou o Decreto nº 381/72, de
9 de Outubro, visando adequar aquele Decreto-Lei nº 409/71 ao sector dos
transportes ferroviários, entre outros.
Este Decreto nº 381/72, no seu artigo 13º, preceitua
como segue:
1. O período normal de trabalho do pessoal, salvo as excepções e adaptações
constantes das convenções colectivas de trabalho, não pode ser superior a
quarenta e oito horas por semana, que, em princípio, devem ser repartidas por
seis períodos de oito horas.
2. Os agentes que prestem a sua actividade profissional sujeitos a escalas de
serviço poderão ter as quarenta e oito horas de trabalho normal repartidas em
períodos desiguais, nos termos das convenções colectivas, quando a necessidade
de assegurar o funcionamento normal do serviço público ferroviário impossibilite
a sujeição do seu período de trabalho a horários regulares.
3. Os regimes de interrupção do período normal de trabalho e os critérios de
contagem do tempo de trabalho efectivo serão os estabelecidos nas convenções
colectivas de trabalho.
5.2. No entender da recorrente, o artigo 6º, nº 2,
alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de Setembro, aqui sub iudicio, e o
artigo 13º do Decreto nº 381/72 são inconstitucionais. E são-no, porque as
cláusulas, atrás referidas, das convenções colectivas de trabalho 'constituem
verdadeiros 'regulamentos delegados' ou mesmo 'autónomos'' e 'foram criados à
sombra do disposto no artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, de
27 de Setembro (por lapso, escreveu Novembro) e do artigo 13º do Decreto nº
381/72, de 9 de Outubro'.
Ora - disse -, só ao Governo compete fazer regulamentos
para a boa execução das leis [cf. artigos 201º da CRP (versão de 1976) e 202º
(versão de 1982)], não podendo delegar tal competência (artigo 114º da CRP).
Para além de que - acrescentou - 'o artigo 115º, nº 5, da CRP (revisão de 1982)
veio proibir os regulamentos delegados [...]. Isto significa a
inadmissibilidade, no direito constitucional português vigente de
'regulamentação de regulamentos delegados' ou 'autónomos', em qualquer das suas
manifestações típicas'.
A recorrida, por sua parte, depois de chamar a atenção
para que 'os regulamentos delegados só vieram a ser postergados da ordem
jurídica portuguesa na sequência do artigo 115º, nº 5, da CRP, introduzido pela
Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro', conclui, dizendo que 'não se
verifica [...] qualquer inconstitucionalidade do artigo 6º, nº 2, alínea b), do
DL nº 409/71', nem do artigo 13º do Decreto nº 381/72.
A razão está com a recorrida.
5.3. Antes de mais, cabe notar que, seja qual for a
natureza jurídica das convenções colectivas de trabalho, o que elas,
seguramente, não são - contrariamente ao que sustenta a recorrente - é
regulamentos: elas não contêm normas jurídicas dimanadas de órgãos
administrativos e editadas no exercício da função administrativa [sobre o
conceito de regulamento, vide AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, 'Teoria dos
Regulamentos', Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII (1980),
páginas 1 e seguintes, e ano I (2ª série), 1986, páginas 3 e seguintes].
O poder regulamentar é um poder público (cf. A.R.QUEIRÓ,
Revista citada, 1986, página 11).
Ora, as organizações profissionais, ao celebrarem as
convenções colectivas de trabalho, não se encontram - recorda-se - investidas de
qualquer poder de autoridade, antes actuam no exercício da sua liberdade de
negociação. E, por isso mesmo, tudo quanto acordarem obriga apenas inter partes,
sendo necessária a intervenção do poder regulamentar (portaria de extensão) para
tornar obrigatórias as respectivas cláusulas em relação a terceiros.
O artigo 6º, nº 2, alínea b), aqui sub iudicio, ao
dispôr que, tratando-se de trabalho 'acentuadamente intermitente ou de simples
presença', os limites máximos do período normal de trabalho podem ser excedidos,
se tal for determinado em decreto regulamentar ou acordado em instrumento de
regulamentação colectiva de trabalho, não está, pois - contrariamente ao que
pretende a recorrente - a delegar nas organizações profissionais qualquer poder
regulamentar externo. O que, em tal preceito, se faz é, de um lado, abrir ao
Governo a possibilidade de regulamentar, por decreto (com eficácia externa,
portanto), a matéria dos limites máximos do período normal de trabalho; e, de
outro, abrir às organizações profissionais a possibilidade de regularem tal
matéria por acordo, que apenas vincula as entidades patronais e os
trabalhadores, inscritos, uns e outros, nas organizações profissionais
subscritoras do mesmo.
Na parte em que abre a possibilidade de intervenção do
poder regulamentar do Governo para modificar o regime geral instituído no
Decreto-Lei nº 409/71, o mencionado artigo 6º, nº 2, alínea b), fez algo que, no
domínio da Constituição de 1933 (e, mesmo, no da versão originária da actual
Constituição, ou seja, até à revisão desta aprovada pela Lei Constitucional nº
1/82, de 30 de Setembro), era tido pela doutrina e pela jurisprudência como
constitucionalmente legítimo (como, de resto, a recorrente reconhece, a dado
passo das suas alegações: cf. V, A).
Nesse período - como se escreveu no acórdão nº 266/92,
publicado no Diário da República, II série, de 23 de Novembro de 1992 -,
entendia-se, de facto, geralmente que, sem restrições, 'o Parlamento e o Governo
podiam autorizar o poder regulamentar a editar normas novas sobre matérias que
não devessem assumir necessariamente a forma de lei' (cf. AFONSO RODRIGUES
QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, I, 1976, páginas 70, 428 a 430 e 437,
e Teoria dos Regulamentos cit., in Revista citada, ano XXVII, página 11. Cf.
também os Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º volume, 1984, páginas 405 e
seguintes, respectivamente).
Só após a revisão constitucional de 1982, com a
introdução do artigo 115º, nº 5, da Constituição, é que - como também se
sublinhou no citado acórdão nº 266/92 - a lei deixou de poder delegar no poder
regulamentar a edição de regulamentos modificativos, suspensivos, revogatórios
ou derrogatórios de si mesma [cf., sobre este ponto, A.R. QUEIRÓ, Teoria dos
Regulamentos cit., página 11; J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição
da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 511; JORGE
MIRANDA, Funções, Órgãos e Actos do Estado, Lisboa, 1990, página 248; e os
acórdãos nºs 354/86, 19/87, 384/87 e 1/92, publicados no Diário da República, II
série, de 11 de Abril, 31 de Março e 15 de Dezembro de 1987, respectivamente, os
três primeiros, e I série, de 20 de Fevereiro de 1992, o último).
Assim sendo, o artigo 6º, nº 2, alínea b) - que não
pode, obviamente, ser confrontado com a Constituição de 1933, no domínio da qual
foi editado (cf., neste sentido, o citado acórdão nº 266/92) - se, acaso,
houvesse de ser avaliado à luz dos artigos 201º (versão de 1976), e 114º da
Constituição, a conclusão a extrair era a de que ele não afrontava tais
preceitos constitucionais, pois que fora editado antes da revisão constitucional
de 1982, e - repete-se -, só a partir de então, é que o legislador ficou
constitucionalmente proibido de delegar no poder regulamentar a possibilidade
de, entre o mais, editar regulamentos modificativos, suspensivos, revogatórios
ou derrogatórios da lei.
O artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71,
de 27 de Setembro, que, aquando da sua edição, não era passível de qualquer
censura no plano da constitucionalidade (cf. acórdãos nºs 354/86, 19/87 e
384/87) - na parte em que contém uma abertura para o Governo, através de
decretos regulamentares, modificar o regime geral estabelecido nesse diploma
legal em matéria de limites máximos do período normal de trabalho - tornou-se,
no entanto, supervenientemente inconstitucional; e, justamente, com a revisão
constitucional de 1982.
O artigo 115º, nº 5, da Constituição veio, de facto,
como se viu, inconstitucionalizar os preceitos legais que, inter alia,
habilitavam a Administração a editar regulamentos modificativos, suspensivos,
revogatórios ou derrogatórios de si mesmos.
5.4. Na parte em que abre às organizações profissionais
a possibilidade de, verificado o condicionalismo nele prescrito, regularem por
acordo a matéria dos limites máximos do período normal de trabalho,
ultrapassando os que estão fixados no artigo 5º do mesmo diploma legal, o
mencionado artigo 6º, nº 2, alínea b), não foi, porém, inconstitucionalizado
pelo artigo 115º, nº 5, da Constituição.
É certo que (para além de proibir que a lei autorize a
edição de regulamentos interpretativos ou integrativos de si própria - ou seja:
de proibir que a interpretação e a integração autêntica das leis seja feita por
regulamento, o que aqui não está em causa; e de proibir, bem assim, que ela
autorize a edição de regulamentos delegados, modificativos, suspensivos,
revogatórios ou derrogatórios de si mesma); o artigo 115º, nº 5, da Constituição
proíbe também que a lei confira a 'actos de outra natureza' (para além dos
regulamentos) 'o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos'.
Simplesmente, nesses 'actos de outra natureza', a que o
artigo 115º, nº 5, se refere, não estão incluídas as convenções colectivas de
trabalho.
De facto, as convenções colectivas de trabalho, não só
não são regulamentos, como também não são actos dotados de eficácia externa - e
só os actos com este tipo de eficácia estão abrangidas pela proibição
constitucional (cf., neste sentido, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob.
cit., página 511).
As convenções colectivas de trabalho - recorda-se -
apenas obrigam inter partes, sendo necessária a edição de uma portaria de
extensão (de um regulamento externo, portanto) para tornar obrigatória a sua
disciplina para terceiros não subscritores do acordo.
5.5. Na parte em que permite que, tratando-se de
trabalho 'acentuadamente intermitente ou de simples presença', as organizações
profissionais fixem, por acordo, limites máximos do período normal de trabalho
superiores aos estabelecidos no artigo 5º do mesmo diploma legal, o que tão-só
resulta do artigo 6º, nº 2, alínea b), é, pois, o seguinte: quando esteja em
causa esse tipo de trabalho, o artigo 5º não constitui norma legal imperativa -
norma que as convenções colectivas de trabalho (por força do disposto no artigo
6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 519-C1/79, de 29 de Dezembro) não possam contrariar.
O mencionado artigo 115º, nº 5, não proíbe, no entanto,
ao legislador que retire a natureza de norma imperativa a um determinado
preceito legal, restritamente a determinadas situações de facto.
Abrir à negociação colectiva a fixação de um regime
específico para certo tipo de trabalho (no caso, para o trabalho 'acentuadamente
intermitente ou de simples presença') só seria, pois, constitucionalmente
ilegítimo, se a norma legal que tal permite violasse outros preceitos ou
princípios constitucionais - maxime o princípio da igualdade (consagrado no
artigo 13º da Constituição) ou o direito ao descanso e aos lazeres (consagrado
na alínea d) do nº 1 do artigo 59º da Constituição), cuja violação a recorrente
imputa às cláusulas das convenções colectivas de trabalho atrás mencionadas.
Tal, porém, não acontece.
Quanto ao princípio da igualdade, basta lembrar que ele
não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado; proíbe, tão-só, as
distinções de tratamento arbitrárias ou irrazoáveis, porque carecidas de
fundamento material bastante.
Ora, no caso, existe fundamento suficiente - suficiente,
ao menos, para se não poder dizer que se trata de uma distinção irrazoável ou
arbitrária - para que o legislador deixe à CP e aos sindicatos, que representam
as guardas das passagens de nível, a possibilidade de fixarem, por acordo,
limites máximos à duração do período normal de trabalho, que excedam aqueles que
ele próprio estabeleceu, no artigo 5º do Decreto-Lei nº 409/71, para valerem
para os trabalhadores em geral.
É que, constituindo facto notório, como se diz no
acórdão recorrido, 'que a circulação de combóios, mesmo na linha do norte, se
faz com consideráveis intervalos de tempo', podendo, por isso, dizer-se que as
tarefas das guarda das passagens de nível 'sofrem as correspondentes
intermitências, que não podem deixar de ser consideradas predominantes em
relação ao tempo de trabalho efectivamente prestado', há-de convir-se que esta
situação de trabalho, quando comparada com a dos restantes trabalhadores,
apresenta uma especificidade que bem justifica que a lei deixe às 'partes' a
porta aberta para acordarem num regime específico (diferente, portanto, do que
ela própria fixa para valer quanto à generalidade dos trabalhadores).
Se essa especificidade é (ou não) tal que justifique o
regime acordado (a saber: um horário de 9 horas, para as guardas das passagens
de nível de tipo A; de 12 horas para as de tipo C; e de mais de 12 horas para as
de tipo P - classificação que, conforme ao teor da cláusula 80ª de 2/6/75 e da
cláusula 86ª, de 14/4/78, e da cláusula 89ª de 22/1/81, assenta no 'movimento
das passagens quanto a peões, veículos e circulações ferroviárias'), é questão
que, por não dizer respeito ao artigo 6º, nº 2, alínea b), considerado em si
mesmo, mas antes às cláusulas que, no caso, as 'partes' negociaram, aqui não tem
que decidir-se.
O artigo 6º, nº 2, alínea b), também não viola o artigo
59º, nº 1, alínea d), da Constituição.
O 'limite máximo de duração da jornada de trabalho'
deve, justamente, ser fixado, tendo em conta, entre o mais, a intensidade e a
penosidade do trabalho que estiver em causa.
Por isso, a possibilidade de os momentos de descanso
serem distribuídos por vários períodos ao longo do dia, de acordo, precisamente,
com o carácter intermitente do trabalho, não é, em si mesmo, susceptível de
violar o direito ao repouso.
Saber se os horários de trabalho, tal como, em concreto,
foram acordados, salvaguardam ou não um tal direito dos trabalhadores ao
descanso e aos lazeres, é questão que também aqui não tem que ser decidida, pois
ela releva das cláusulas negociadas, e não do artigo 6º, nº 2, alínea b),
considerado em si mesmo.
6. A questão da inconstitucionalidade do artigo 13º do
Decreto nº 381/72, de 9 de Outubro.
O artigo 115º, nº 5, da Constituição, directamente,
dirige-se ao legislador, e não ao poder regulamentar.
Desse preceito constitucional, não pode, por isso,
decorrer, directamente, a inconstitucionalidade do artigo 13º do Decreto nº
381/72. E esta também não pode derivar da inconstitucionalidade (na medida atrás
assinalada) do artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de
Setembro.
É que, desde logo, o artigo 115º, nº 5, apenas proíbe
que a lei autorize a Administração a editar (e que esta edite), a partir de 30
de Outubro de 1982 (que é a data da entrada em vigor da segunda revisão
constitucional), regulamentos que, entre o mais, modifiquem, suspendam, revoguem
ou derroguem o regime jurídico por ela própria instituído: isso é, com efeito, o
que resulta do que se dispõe no artigo 282º, nº 2, da Constituição.
Assim sendo, aquele artigo 6º, nº 2, alínea b), mantém
intocada a sua validade e eficácia para o período anterior a 30 de Outubro de
1982.
Mas, então, o artigo 13º do Decreto nº 381/82, editado
ao abrigo do referido artigo 6º, nº 2, alínea b), foi-o de forma
constitucionalmente regular e continua a ter suporte legal (e, assim, a manter o
fundamento da sua validade). De base legal careceria um regulamento do tipo do
Decreto nº 381/72 que, eventualmente, tivesse sido editado já depois de 30 de
Outubro de 1982 à sombra daquele artigo 6º, nº 2, alínea b). Esse, sim, que
seria inválido.
Uma outra linha de argumentação da recorrente, para
concluir pela inconstitucionalidade do artigo 13º, é, se bem se compreende o seu
raciocínio, a seguinte: o artigo 13º, quando reenvia para as convenções
colectivas de trabalho o tratamento da matéria atinente aos limites máximos do
período normal de trabalho, está a subdelegar nas organizações profissionais,
contra o disposto no artigo 114º da Constituição, poderes que o artigo 6º, nº 2,
alínea b), delegou no Governo.
Também esta argumentação não é procedente: na verdade,
não é o artigo 13º que subdelega poderes que o legislador tenha delegado no
Governo; é, antes, o artigo 6º, nº 2, alínea b), ele próprio, que abre o
tratamento da matéria em causa à negociação colectiva.
7. Uma última questão:
Concluiu-se atrás que, com a entrada em vigor em 30 de
Outubro de 1982 da Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, a partir
daquela data, o artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71, de 27 de
Setembro (na parte em que contém uma abertura para o Governo, através de decreto
regulamentar, modificar o regime geral estabelecido nesse diploma em matéria de
limites máximos do período normal de trabalho) se tornou inconstitucional.
Importa, então, decidir se, no caso, se justifica que o
Tribunal profira esse julgamento de inconstitucionalidade.
É que, achando-nos no domínio da fiscalização concreta
da constitucionalidade, em que o recurso desempenha uma função instrumental, só
faz sentido que o Tribunal profira um julgamento de inconstitucionalidade de uma
norma jurídica, quando tal julgamento puder influir na decisão do caso de que
emerge o recurso. De contrário, o Tribunal estará a julgar uma pura questão
académica.
Ora, o Decreto nº 381/72 foi editado em 1972, numa
altura, portanto, em que o artigo 6º, nº 2, alínea b), do Decreto-Lei nº 409/71,
de 27 de Setembro, lhe servia de habilitação legal suficiente.
Por isso, a inconstitucionalidade que, a partir de 30 de
Setembro de 1982, atingiu este artigo 6º, nº 2, alínea b), nenhuma repercussão
pode ter sobre o referido artigo 13º daquele Decreto nº 381/72, que, assim,
continua a ter suporte legal.
Não se vê, por isso, que fizesse sentido um julgamento
de inconstitucionalidade de tal normativo. Ele seria res inutilis.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 1995
Messias Bento
Bravo Serra
Guilherme da Fonseca
Luis Nunes de Almeida