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Proc. nº 315/91
1ª Secção
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - 1. Em 29 de Maio de 1987, no Tribunal de 1ª Instância das
Contribuições e Impostos de Lisboa, o Representante da Fazenda Nacional deduziu
acusação contra A., por não entrega nos cofres do Estado, em certos períodos de
tempo, do imposto de selo dos recibos processados por meio de guia [Regulamento
do Imposto de Selo, artigo 164º] e o das letras e livranças [O mesmo
Regulamento, artigo 111º, § 1º]. O valor do primeiro imposto era calculado em
Esc: 33.623.680$00, e o do segundo, em Esc: 27.302.741$00. Isso constituía
infracção às normas do artigo 168º do Regulamento do Imposto de Selo e do
artigo 4º da Portaria nº 709/81, de 20 de Agosto, pelo que se propunha a
condenação da A. no pagamento de Esc: 215.317.256$00, correspondente à soma do
imposto em dívida, juros compensatórios e multa.
Em despacho de 25 de Março de 1988, o sr. juiz decidiu não receber a
acusação, afirmando que para a deduzir não tinha competência o Representante da
Fazenda Nacional, mas, antes, o Ministério Público. Do que foi interposto
recurso de agravo para o Supremo Tribunal Administrativo.
2. Entretanto, a A. fora autorizada, por despacho do Secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais, de 3 de Novembro de 1987, a pagar 'os impostos em
dívida, em sessenta prestações mensais, com perdão de juros, multas e custas
eventualmente exigíveis' [É o texto da notificação do despacho]. Mais tarde, em
6 de Abril de 1988, a A. requeria ao Ministro das Finanças que lhe fosse
possibilitado o pagamento do imposto de que tratava o processo nº 5014/86 do
Tribunal Tributário de 1ª Instância de Lisboa. Assim:
' 1º
Por despacho de S. Exa. o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais
de 3 de Novembro de 1987, foi autorizada a requerente a pagar os impostos em
dívida em 60 (sessenta) prestações mensais com início em Janeiro de 1988, com
perdão de quaisquer juros, multas e custas eventualmente exigíveis, segundo o
seguinte plano:
1º ano ..... 4%
2º ano ..... 8%
3º ano ..... 13%
4º ano ..... 25%
5º ano ..... 50%
2º
A requerente tem pago atempadamente as prestações fixadas, na 1ª
Repartição das Finanças de Almada, na Repartição de Finanças do 6º Bairro Fiscal
de Lisboa e em diversos Juízos do Tribunal Tributário da 1ª Instância de Lisboa.
No entanto,
3º
Foram recusadas, no 3º Juízo - Proc. nº 5014/86, do Tribunal acima
referido, as prestações referentes ao Imposto de Selo de Letras e Livranças
referente a 1983/1984 - 27.302.741$00, e Imposto de Selo de 1982/83/84 e até
Novembro de 1985 - 33.623.680$00, no total de 60.926.421$00, com a alegação que
o processo se encontrava em fase executiva.
4º
Pretende, obviamente, a requerente iniciar também o pagamento
mensal deste imposto, nas condições especiais concedidas, após estudo profundo
do plano de viabilização da requerente.
5º
Considerando que o artº 10º, nº 2, do D. L. nº 53/88, prevê a
aplicação de outros regimes mais favoráveis, parece não haver incompatibilidade
entre o despacho de S. Exa. o Secretário de Estado dos assuntos Fiscais de 3 de
Novembro de 1987 e o espírito e a letra do referido Decreto-Lei'.
E, em 1 de Setembro de 1988, a A., ainda, informava o Representante
da Fazenda Nacional de um despacho do Ministro das Finanças que autorizava o
pagamento do imposto nas condições antes definidas pelo Secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais e requeria, assim, o arquivamento dos autos e que lhe fossem
passadas guias para o pagamento das prestações. Porém, o Representante da
Fazenda Nacional, em despacho de 18 de Outubro de 1988, decidiu não tomar
conhecimento do pedido.
Em 2 de Dezembro de 1988, a A. formulou um novo requerimento , de
teor idêntico ao que antes apresentara, com referência expressa ao artigo 10º nº
2, do Decreto-Lei nº 53/88, de 25 de Fevereiro [O artigo ressalva da eficácia
desse Decreto-Lei os regimes especiais de pagamento que lhe são anteriores].
3 - O sr. juiz, em despacho de 13 de Janeiro de 1989, reparou o
agravo e recebeu a acusação. Mas colocou uma questão prévia sobre o tema da
extinção do procedimento criminal que tem como causa um despacho da
Administração Financeira, no caso, do Secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais. Afirmou, a esse propósito:
'O procedimento penal fiscal, enquanto as infracções tiverem a
natureza de transgressões, está sujeito ao princípio da legalidade, não gozando
a Administração Fiscal de poderes para deixar de impulsionar o processo penal
fiscal desde que adquira a notícia de uma conduta qualificada como infracção e
punida com multa.
Logo, tendo esse despacho como consequência uma ilegal abstenção do
procedimento penal fiscal, nenhuma eficácia se lhe pode conferir quer para
suspender, quer para extinguir a acção penal fiscal'.
E, a seguir, afirmou:
'Poderia pensar-se em aplicar o disposto no DL 53/88-25Fev,
convocando para as facilidades neste diploma previstas as concessões conferidas
por aquele despacho ou pelo despacho referido no of. fotocopiado a fls 43 (o
teor deste ultimo despacho desconhece-se, porque não parece que seja o exarado
sobre a informação cuja fotocópia consta de fls 47).
Porém o tribunal tem de recusar aplicação ao disposto nos art.s 3º e
4º deste diploma legal, nos termos do art.207º da Const. da República.
Com efeito, o art. 3º deste Dec.Lei estabelece uma espécie de perdão
genérico de multas. Verificadas certas condições, a multa é reduzida a um
quantitativo fixo inferior ao que corresponderia à infracção em conformidade com
a moldura penal estabelecida para o tipo de ilícito. É, assim, organicamente
inconstitucional, visto que o Governo invadiu a área de competência reservada da
Assembleia da República, órgão de soberania a que compete nos termos do art.
164º/al.e) da Const. Rep. conceder amnistias e perdões genéricos.
Por seu turno, o art. 4º do mesmo DL53/88 - além da
inconstitucionalidade derivada da inconstitucionalidade do art.
3º - enferma de um outro vício próprio que consiste em atribuir funções
materialmente jurisdicionais ao Ministro das Finanças, ao permitir-lhe conceder
facilidades excepcionais aos infractores por factos já introduzidos em juízo.
Com efeito, o processo de transgressão é um processo judicial (art.47ºCPCI),
ficando sob a alçada do juiz após a acusação. Não podem ser conferidas funções
decisórias sobre a matéria de processos de transgressão em que tenha havido
acusação a outros órgãos, designadamente à Administração Pública, por violação
da reserva de juiz estabelecida no art. 205º da Const. da República.
Ora, o processo de transgressão fiscal por infracção às regras do
imposto de selo destina-se a exigir o imposto e a aplicação da multa pela
infracção. Permitir que as autoridades da AF concedam facilidades relativamente
à matéria desses processos, depois de deduzida a acusação, é violar a reserva
de juiz estabelecida no art.207º da Constituição.
Por isso, também não se pode reconhecer eficácia neste processo ao
despacho do Ministro das Finanças que é referido no ofício fotocopiado a fls 43
como reportando-se à divida exigida neste processo.
Consequentemente, recusando aplicação ao disposto no art. 3º do DL
53/88 na parte em que confere redução da multa e negando eficácia extintiva ou
modificativa da instância penal fiscal aos despachos da AF acima referidos,
ordeno a notificação da arguida para contestar nos termos do art. 127º CPCI.
4. O Ministério Público interpôs recurso desta decisão para o
Tribunal Constitucional, recurso que fundou no artigo 70º, nº 1, alínea a), da
Lei nº 28/82, de 15 de Novembro. Depois, já neste Tribunal, em alegações, o Sr.
Procurador-Geral Adjunto, delimitou‑lhe o objecto nas normas do artigo 3º, nºs.
1 e 2, alíneas a) e b), e do artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 53/88, de 25 de
Fevereiro. Mas, logo de imediato, suscitou a questão prévia do não
conhecimento do mesmo recurso. Afirmou, no essencial:
Por despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 3 de
Novembro de 1987, foi autorizado o pagamento de todos os impostos que a A. tinha
em dívida, em 60 prestações mensais, com início em Janeiro de 1988, com perdão
de quaisquer juros, multas e custas eventualmente exigíveis (...). Foi dado
conhecimento à A. deste despacho por ofício de 11 de Novembro de 1987 (fls.
41).
Portanto, era este o regime aplicável quando apareceu o Decreto-Lei
nº 53/88, de 25 de Fevereiro.
Em 6 de Abril de 1988, dirige um requerimento ao Ministro das
Finanças em que, invocando o artigo 10º, nº 2, daquele diploma requer que seja
autorizado o pagamento do valor do Imposto de Selo a que alude o processo nº
5014/86 (este) nas condições anteriormente concedidas, por ser mais favorável
(artigo 5º do requerimento).
Ou seja, a arguida quer continuar sujeita ao regime estabelecido
pelo despacho de 3 de Novembro de 1987 do Secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais.
Ora, o Decreto-Lei nº 53/88 estatui no artigo 10º que se mantêm em
vigor os regimes de pagamento em prestações já autorizados, 'salvo se o
interessado declarar, por escrito ou termo no processo, nos três meses seguintes
ao da entrada em vigor do presente diploma, a sua opção pelos esquemas aqui
previstos'.
Assim, neste processo e porque o interessado não só não optou pelo
novo regime, mas expressamente veio dizer que não queria que lhe fosse aplicado,
ele não é aplicável.
O juiz não pode aplicar neste processo o novo regime,
oficiosamente, pois a sua aplicação depende da manifestação de vontade do
interessado nesse sentido (...).
Pode, pois, concluir-se que as normas cuja inconstitucionalidade foi
apreciada não eram aplicáveis, pelo que não se pode falar em recusa de aplicação
por inconstitucionalidade, pois a desaplicação pressupõe a aplicabilidade.
O juiz nunca diz que aquelas normas eram aplicáveis e que só as não
aplicou por as considerar inconstitucionais. Ele diz somente que 'poderia
pensar-se' em aplicá-las, o que torna a questão meramente académica e, por isso,
irrelevante para ser sujeita ao controlo concreto de constitucionalidade'.
A A. alegou também. Reiterou a tese do não conhecimento do objecto
do recurso, defendida pelo Ministério Público. Depois concluiu:
1 - Foram concedidas à A. condições especiais para o pagamento dos
impostos em dívida à Fazenda Pública, por despacho de S. Exa. o Secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais de 3 de Novembro de 1987.
2 - Estas condições estavam integradas num plano global de
recuperação e viabilização da empresa,.
3 - Às condições especiais concedidas entraram em vigor em Janeiro
de 1988 e não foram revogadas pelo D.L. nº 53/88 de 25 de Fevereiro.
4 - A A. sempre se manifestou pela aplicação ao processo nº
5014/86, 3º Juízo do Tribunal Tributário de Lisboa do despacho de S. Exa. o
Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais de 3 de Novembro de 1987, nunca tendo
optado pelas condições previstas no D.L. nº 53/88 de 25 de Dezembro.
II - O Decreto-Lei nº 53/88, de 25 de Fevereiro, propunha-se criar
'medidas de excepção e temporárias' [cf. texto do preâmbulo] no sentido de
regularizar as dívidas dos contribuintes e, assim, preparar o sistema para uma
ulterior reforma fiscal. Isso abrangia 'as importâncias devidas por
contribuições, impostos, taxas ou outras receitas administradas pela
Direcção-Geral das Contribuições e Impostos' provenientes de obrigações cujo
prazo de cobrança tivesse o seu termo em 31 de Dezembro de 1987 (artigo 1º). As
medidas eram o perdão de juros e redução de multas, a fixação de um prazo para o
pagamento das dívidas e a permissão da modalidade de prestações do mesmo
pagamento.
E, na sistemática do mesmo Decreto-Lei, o artigo 10º dispunha assim:
'10º 1. Mantêm-se em vigor os regimes de pagamento em prestações já autorizadas,
salvo se o interessado declarar, por escrito ou termo no processo, nos três
meses seguintes ao da entrada em vigor do presente diploma, a sua opção pelos
esquemas aqui previstos.
2. O presente diploma não prejudica a aplicação de outros regimes
legais vigentes mais favoráveis aos infractores ou executados'.
Do que se deriva que, havendo a A. beneficiado de uma outra medida
de excepção para o pagamento das próprias dívidas ao fisco, aquela que foi
determinada pelo despacho do Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, de 3 de
Novembro de 1987, em momento anterior ao do início de vigência do Decreto-Lei nº
53/88, as normas dos artigos 3º e 4º deste Decreto-Lei não tinham naquela
situação qualquer operatividade. É que a A. manifestou por modo claro a vontade
de manter o regime de benefício que já lhe fora atribuído e, além disso,
bastava-lhe o silêncio para que sobre a sua situação jurídica não detivesse
qualquer eficácia o Decreto-Lei nº 53/88.
É verdade que o processo dá notícia de um ulterior despacho do
Ministro das Finanças [que não vem documentado] a confirmar o regime especial de
pagamento reconhecido à A., e proferido em data posterior ao início de vigência
do Decreto-Lei nº 53/88. Mas este despacho limita-se, ao que se infere, a manter
o conteúdo do anterior.
Mas, assim, não se afiguram as normas dos artigos 3º, nºs. 1 e 2,
alíneas a) e b), e do artigo 4º, nº 2, do Decreto-Lei nº 53/ 88, de 25 de
Fevereiro, como detendo oportunidade de aplicação no caso.
É certo que a ideia, ela mesma, de inaplicabilidade das normas para
que se suscita o controlo de constitucionalidade não funda, necessariamente,
por si só, uma decisão de não conhecimento do recurso.
Mas numa situação como esta, em que, na sistemática da sentença
recorrida, se inscreve, em fórmula de sentido controverso, a locução 'Poderia
pensar-se em aplicar o disposto no Decreto-Lei nº 53/88', locução que é
referida, conjuntamente, aos despachos do Secretário de Estado dos Assuntos
Fiscais e do Ministro das Finanças, a ideia de inaplicabilidade vem sustentar
uma interpretação que, neste momento da sentença, reconhece tão-só uma
argumentação subsidiária ou ad ostentationem - uma argumentação sobre a lei,
ao lado de um juízo sobre a legalidade do despacho do Secretário de Estado dos
Assuntos Fiscais que aí detém a centralidade dos fundamentos.
E, assim, é possível afirmar que o julgamento de
inconstitucionalidade das normas do Decreto-Lei nº 53/88, de 25 de Fevereiro,
não tem aqui a virtualidade de conformação decisiva da sentença recorrida. Por
isso, não pode aqui afirmar-se a existência de uma recusa de aplicação, no modo
como o exige a norma do artigo 70º, nº 1, alínea a), da Lei nº 28/82 [cf., por
todos, o Acórdão nº 48/85, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 5º volume, págs.
439 e segs.].
III - Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.
Lisboa, 31 de Janeiro de 1995
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Diniz
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Maria Fernanda Palma
José Manuel Cardoso da Costa