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Proc.º n.º 320/92
1ª Secção
Cons. Rel.: Assunção Esteves
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - O Tribunal Colectivo do 2º Juízo Criminal de Lisboa, 2ª secção,
em acórdão de 20 de Julho de 1990, condenou, entre outros, A ..., I..., S...,
C... e R.... Assim:
A ..., pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes
agravado, conexo com parte dos factos ocorridos em Bombaim, Índia, e de um crime
de tráfico de estupefacientes agravado, conexo com parte dos factos ocorridos
junto à igreja ismaelita na zona do Areeiro, Lisboa - em cúmulo jurídico, na
pena única de catorze anos de prisão e multa de Esc: 5.000.000$00;
I..., pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes
agravado, conexo com parte dos factos ocorridos em Bombaim, Índia, e de um crime
de tráfico de estupefacientes agravado, conexo com parte dos factos ocorridos
junto à igreja ismaelita na zona do Areeiro, Lisboa - em cúmulo jurídico, na
pena única de 13 anos de prisão e multa de Esc: 2.500 000$00;
S..., pela autoria do crime de tráfico de estupefacientes, conexo
com os factos ocorridos no café‑restaurante 'Kuela', Lisboa - na pena de seis
anos de prisão [de que foi perdoado um] e multa de Esc: 200.000$00;
C..., pela autoria do crime de tráfico de estupefacientes agravado -
em cúmulo jurídico com o remanescente da pena em que fora condenado no processo
nº 142/85, do mesmo Tribunal Criminal, na pena única de dois anos e nove meses
de prisão e multa de Esc: 400.000$00;
R..., pela autoria do crime de tráfico de estupefacientes agravado e
do crime de detenção de arma proibida - em cúmulo jurídico, na pena única de
três anos de prisão e multa de Esc: 500.000$00 e ainda multa de Esc: 12.000$00,
com alternativa de 26 dias de prisão. A execução da pena foi suspensa por 5
anos.
Daquele acórdão recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa o
Ministério Público e também, entre outros, A ... e I....
A ..., em alegações, defendeu a tese de inconstitucionalidade da
norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do
Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, afirmando que por
ela se não garante, com suficiência, o recurso da matéria de facto, em violação
do princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal, que se deriva da
norma do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República, e também do artigo 11º,
nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do artigo 14º, nº 5, do
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, e do artigo 6º da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem. E, nessa linha , advertiu: 'O Tribunal
da Relação, ao não reexaminar a prova, ouvindo, de novo, os réus e as
testemunhas, limitando-se a um recurso de gabinete, irá agir como um tribunal de
revista, não procedendo à reapreciação dos factos(...) só o funcionamento de uma
2ª instância de facto garantiria a suficiência do presente recurso [conclusão
4ª]. Esse funcionamento não vai ter lugar na apreciação deste recurso [conclusão
5ª].
A Relação de Lisboa, em acórdão 30 Abril de 1991, julgou
improcedentes os recursos, com excepção do que interpôs o Ministério Público [e
do que interpôs um outro arguido que agora não é recorrente]. E, ao conceder
provimento parcial ao recurso do Ministério Público: a) revogou a suspensão da
pena que havia sido determinada a R...; b) agravou as penas em que havia sido
condenada S... e condenou-a ainda pela co-autoria de um crime, na forma tentada,
previsto e punível pelos artigos 23º, nº 1, e 27º, alínea g), do Decreto-Lei nº
430/83, com referência à tabela I-A anexa, e artigos 22º, 23º, nº 2, e 74º, nº
1, alínea b), do Código Penal, perfazendo, em cúmulo jurídico, a pena única de
oito anos de prisão e Esc: 550.000$00 de multa; c) convolou o crime de detenção
de estupefacientes por que haviam sido condenados C... e R..., de agravado para
simples, confirmando, no entanto, as penas que o Tribunal Colectivo lhes
determinou, por atenuação especial; d) convolou o crime por que haviam sido
condenados A ... e I..., conexo com parte dos factos ocorridos junto à igreja
ismaelita, de agravado para simples, confirmando, no entanto, as penas que o
Tribunal Colectivo lhes determinou. E, sobre a questão de constitucionalidade
suscitada por A ... afirmou, desde logo, a Relação;
'(...) Por uma questão de prioridade de problemas suscitados, comecemos por
apreciar as alegadas ilegalidade e inconstitucionalidade [conclusões a) e i) das
alegações do réu A ...] resultantes desta Relação, na apreciação da matéria de
facto, seguir o disposto no artigo 665º do Cód. Proc. Penal 1929, com a
interpretação dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho
de 1934, publicado no Diário do Governo, I Série, de 11 de Junho de 1934.
Aquela norma será, então, inconstitucional, por violar o artigo 32º,
nº 1 da Constituição e, bem assim, o nº 1 do artigo 11º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem, o nº 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos e o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem?
Não desconhecemos que a Jurisprudência do Tribunal Constitucional
não é pacífica a este respeito. Analisando os acórdãos 219/89 (D.R., II Série,
de 30-6-89) e 124/90 (D.R., II Série, de 8.2.91), perfilhamos o entendimento que
fez vencimento no último e cuja fundamentação, com a devida vénia, passamos a
transcrever:(...)'
E a Relação transcreveu, com efeito, a fundamentação do acórdão nº
124/90 do Tribunal Constitucional, que, já sabemos, concluiu pela não
inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na
interpretação do Assento do S.T.J. de 29 de Junho de 1934. E, depois, afirmou:
'Conclui-se, pois, que o acatamento de tal preceito não importa
qualquer ilegalidade como qualquer inconstitucionalidade(...)'.
Deste acórdão da Relação de Lisboa recorreram para o Supremo Tribunal
de Justiça o Ministério Público e também, entre outros, I..., [este recurso foi
julgado sem efeito, por despacho de 9 de Julho de 1991] S..., R... e A ..., o
último reiterando a tese da inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de
Processo Penal de 1929, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 29 de Junho de 1934, com referência à garantia do duplo grau de
jurisdição em processo penal.
O Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 28 de Fevereiro de 1992,
negou provimento aos recursos interpostos pelos arguidos e concedeu provimento
parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público, determinando a revogação
da atenuação especial das penas que haviam sido concedidas a C... e R.... E,
sobre a questão de constitucionalidade suscitada por A ..., afirmou:
' A - Inconstitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal
O recorrente principia por arguir a inconstitucionalidade desta
norma, na interpretação do Assento de 29 de Junho de 1934.
No seu modo de ver, aquele preceito de lei é materialmente
inconstitucional, na interpretação que o mesmo Assento lhe atribui. É que não
garante suficientemente o recurso da matéria de facto, na medida em que lhe
coarcta a hipótese de acesso ao duplo grau de jurisdição, impondo-se que o
Tribunal da Relação reaprecie integralmente a causa.
A norma de que nos estamos a ocupar, com a dita interpretação, na
redacção do Decreto nº 20 147, de 1 de Agosto de 1931, já com efeito, foi
inúmeras vezes julgada inconstitucional.
Desta forma através dos acórdãos nºs 219/89 e 340/90, publicados no
Diário da República, II Série, respectivamente, nºs 148, de 30 de Julho de 1989,
e 65, de 19 de Março de 1991, e ainda pelos acórdãos nºs 23/91 e 48/91,
respectivamente, de 6 e 26 de Fevereiro de 1991, da 1ª Secção do Tribunal
Constitucional, nºs 77/91, de 10 de Abril de 1991, 187/91, de 7 de Março de
1991, 236/91, de 23 de Maio de 1991, 335/91, de 3 de Julho de 1991, e 350/91],
de 4 desses mês e ano, da 2ª Secção.
Pronunciou-se, ainda, por último, o mesmo Tribunal, pela
inconstitucionalidade do aludido artigo 665º, com a mencionada interpretação,
agora com força obrigatória geral, no acórdão nº 401/91, de 30 de Outubro de
1991, publicado no Diário da República, nº 6, de 8 de Janeiro de 1992.
Sem embargo, estamos, porém, em crer não dever ordenar-se a baixa do
processo ao Tribunal Relação a fim de neste se proceder à realização dum segundo
julgamento da matéria de facto.
Uma tal questão, da inconstitucionalidade do dispositivo legal em
causa, tem sido quase sistematicamente trazida à discussão nos últimos tempos,
como forma de se retardar o mais possível o trânsito em julgado da decisão,
desse jeito logrando os interessados evitar o início do cumprimento da pena.
Para além de, todavia, dever notar-se que o Tribunal da Relação, ao
indicar a facticidade que deu como apurada, nem sequer faz alusão ao mencionado
Assento de 1934, há que reconhecer que o julgamento a que o colectivo procede na
primeira instância já, na nossa óptica, assegura convenientemente a garantia da
maior justiça a favor do arguido.
É que se está ante um tribunal colegial que, com toda a segurança,
sempre decide com todo o rigor e isenção, pondo os maiores cuidados, interesse e
atenção ao analisar a prova, de que, mercê da imediação, directamente conhece.
Justifica-se, deste jeito, inteiramente que o Tribunal da Relação
não tenha de proceder a novo julgamento da matéria de facto - que, aliás, já
efectuou, com base no artigo 665º, sem a interpretação do dito Assento - tanto
mais que o recorrente A ... nenhumas nulidades, deficiências ou contradições
arguiu no acórdão impugnado, que a sua baixa pudessem justificar.
De resto, é o que hoje se observa com o vigente Código de Processo
Penal, em que, conforme o estatuído no seu artigo 432º, alínea c), se recorre
directamente para este Supremo dos acórdãos finais do colectivo. Tendo esse
recurso em vista, de resto, exclusivamente, o reexame da matéria 'de direito',
excepto, como o subsquente artigo 433º determina, nas hipóteses a que alude o
artigo 410º do mesmo diploma'.
Deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorreram para o
Tribunal Constitucional I... e S..., invocando o artigo 280º, nº 5, da
Constituição da República, R... e C..., invocando o artigo 70º, nº 1, alínea g)
da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, e A ..., o artigo 70º, nº 1, alínea b), da
mesma lei.
O recurso interposto por C... foi julgado deserto por falta de
alegações. Os demais recorrentes, afirmaram, no essencial, que o acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça aplicou a norma do artigo 665º do Código de
Processo Penal de 1929, na interpretação do Assento do Supremo Tribunal de
Justiça de 29 de Junho de 1934, sendo que essa norma foi antes declarada
inconstitucional, com força obrigatória geral, no acórdão nº 401/91 do Tribunal
Constitucional, de 30 de Outubro de 1991 [D.R., I Série-A, de 8-1-1992].
Contra-alegando, o Sr. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal
suscitou questões prévias de inadmissibilidade dos recursos interpostos e
concluiu assim:
'1º - Não há que conhecer do recurso interposto pela ré I..., por
falta de legitimidade da recorrente [essa falta de legitimidade funda-a
no facto de, no recurso interposto do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal
de Justiça, a ré I... não figurar como recorrente (visto que o recurso que
interpôs foi considerado sem efeito) nem como recorrida (visto que o Ministério
Público não recorreu do que sobre a mesma ré decidiu a Relação de Lisboa].
'2º - Uma vez que o acórdão recorrido não fez efectiva aplicação da
norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação do
Assento de 29 de Junho de 1934, norma já declarada inconstitucional, com força
obrigatória geral, pelo acórdão nº 401/91 do Tribunal Constitucional, não há que
conhecer dos recursos:
- interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, pelo réu A ...;
- interpostos ao abrigo da alínea g) do mesmo preceito, pelos réus
S..., R... e C..., acrescendo, quanto a este último, que sempre o respectivo
recurso haveria de ser julgado deserto por falta de alegações.'
Respondendo às questões prévias suscitadas pelo Ministério Público,
afirmaram os réus R... e A ... que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
mantém a aplicação da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal, com a
interpretação do Assento de 29 de Junho de 1934, e que a declaração, com força
obrigatória geral, da inconstitucionalidade dessa norma implica a baixa do
processo à Relação:'Em nada releva a simples afirmação de que não foi feita
aplicação da norma inconstitucional - afirma R... -: é da análise dos actos
processuais concretamente praticados que pode retirar-se a ilação de se foi ou
não aplicada a norma em causa(...). Uma vez que a Relação no seu julgamento
explicitamente recusou a observância do decidido no Acórdão 401/91, não cabe ao
Supremo, acatando-o ou deixando de o acatar - ou dizendo que o faz - decidir
pela inutilidade da baixa do processo: a violação do artigo 32º, nº 1, da
Constituição existiu, tem de ser declarada e o julgamento efectuado em
conformidade, só depois se podendo dizer se o resultado foi ou não
diferente...'.
E afirmou também A ...: 'A garantia constitucional do artigo 32º, nº 1
da CRP exige a possibilidade de o recurso implicar o reexame da matéria de
facto. Esse reexame não foi feito, pelo que é essa a questão fundamental da
inconstitucionalidade em apreço. Essa inconstitucionalidade não é sanada por o
Tribunal a quo afirmar que aplicou a norma expurgada da inconstitucionalidade. O
Tribunal a quo - o S.T.J. - acolhe uma decisão - do Tribunal da Relação - na
qual o recorrente não pode ver reapreciados os factos, seja por repetição da
prova seja por exame da prova registada em audiência; esta seria impossível
porque não houve registo da prova na 1ª instância. O acórdão recorrido decide de
direito apenas e nos factos apenas considerou o nível das contradições,
insuficiências e meras desconformidades intrínsecas, sem ter tomado em
consideração o alcance da declarada inconstitucionalidade(...). Como já
anteriormente se sustentou, a declaração com força obrigatória geral implica a
baixa do processo à Relação. Doutro modo, fica precludida a possibilidade
processual de reexame da prova. Por isso, não colhe a argumentação de que o
recorrente não requereu a renovação da prova. Na verdade, não requereu uma
específica renovação da prova nem o poderia ter feito. Suscitou a questão da
renovação global da prova nos fundamentos da inconstitucionalidade...'.
II - A fundamentação
Os recursos de constitucionalidade a que se refere o artigo 70º, nº
1, alíneas b) e g), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro [das decisões dos
tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada
durante o processo e das decisões dos tribunais que apliquem norma já
anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional] pressupõem, como é evidente, que a norma para que se suscita o
controlo do Tribunal Constitucional haja sido efectivamente aplicada na decisão
recorrida.
A decisão recorrida é, aqui, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça,
de 29 de Fevereiro de 1992, que, já vimos, confirmou o acórdão da Relação de
Lisboa [com excepção do momento, em que concedeu provimento parcial ao recurso
do Ministério Público, revogando a atenuação especial das penas que haviam sido
determinadas aos réus C... e R... (momento que para o caso não é relevante)].
Ora, o acórdão da Relação de Lisboa pondera expressamente o artigo 665º do
Código de Processo Penal de 1929, com a interpretação do Assento do Supremo
Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934. E aceita essa mesma interpretação,
como resulta do modo como se estrutura e, desde logo, da adesão clara, que
afirma, à tese de não inconstitucionalidade da mesma norma, contida no acórdão
do Tribunal Constitucional nº 124/90.
Na verdade, o artigo 665º do Código de Processo Penal, com a
redacção do Decreto nº 20 147, de 1 de Agosto de 1931, dispõe:
'As relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem
em 1ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes
da 1ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas
nos processos em que intervenha o júri, baseando-se, para isso, nos dois últimos
casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos
constantes dos autos'.
O Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934
[Diário do Governo, I Série, de 11 de Junho de 1934] fixou assim o sentido
daquela norma:
' O artigo 665º do Código de Processo Penal, modificado pelo Decreto
nº 20 147, de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das relações em
matéria de facto, tem de entender‑se no sentido de as mesmas relações só poderem
alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face dos
elementos do processo que não pudessem ser contrariadas pela prova apreciada no
julgamento e que hajam determinado as respostas aos quesitos'.
O âmbito, assim (de)limitado, de cognição das Relações em matéria de
facto não exclui, em resultado da norma do artigo 1º, § único do Código de
Processo Penal, o que se determina no artigo 712º, nº 2 do Código de Processo
Civil, ou seja, o poder de anular as decisões de 1ª instância com base em vícios
de questionário ou das respostas, quando a Relação 'repute deficientes,
obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando
considere indispensável a formulação de outros quesitos (...)'.
Mas, como o Tribunal Constitucional em várias vezes o reconheceu,
essa relação de sistema da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal, na
interpretação do Assento de 29 de Junho de 1934, não lhe retira os limites com
que o mesmo Assento a incompatibiliza com a garantia de um duplo grau de
jurisdição em processo penal, imposta sem reservas pela norma do artigo 32º,
nº 1, da Constituição da República. Por isso que sobreveio a declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 665º do Código de
Processo Penal (acórdão nº 401/91, cit.).
Ora, em toda a análise a que procede, no plano dos factos, a Relação
se contém naqueles limites. Não vai nunca para além do âmbito de poderes que se
fixa na interpretação do Assento, não vai nunca para além da indagação lógica da
relação de sentido dos quesitos, que se fixa no artigo 712º, nº 2 do Código de
Processo Civil. Todo o acórdão da Relação é estruturado em vista desses limites,
como se evidencia em alguns argumentos essenciais:
'não se mostrando as respostas aos quesitos obscuras, ambíguas ou
contraditórias, nem sendo indispensável a formulação de outros e não se
verificando qualquer das razões
previstas no artigo 665º do Código de Processo Penal para que a Relação possa
modificar a decisão do Colectivo na referida sede, tem-se como assente toda essa
matéria (...)'.[Ponto D]
E, antes, em dado passo, analisando os quesitos relativos a um dos
recorrentes:
'(...) Esta circunstância, porém, não determina, de modo algum, que as
respostas a tais quesitos sejam deficientes obscuras ou contraditórias, únicos
vícios susceptíveis de fundamentar a anulação da decisão do Colectivo (...)'.
[Ponto C]
E também ao considerar o objecto do recurso de A ..., a mesma
Relação chama as considerações que antes formulara sobre a questão de
constitucionalidade do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, com a
interpretação do Assento. [Ponto F]
Mas assim, não é possível afastar a ideia de que o acórdão da
Relação de Lisboa aplicou a norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929 com a interpretação restritiva do Assento, e de que o Supremo Tribunal de
Justiça, ao confirmar o mesmo acórdão, a aplicou também, não obstante uma certa
leitura da metódica de reapreciação dos factos, no caso concreto.
E não vale aqui uma argumentação - como a do Ministério Público, ao
suscitar as questões prévias - assente em que só há aplicação do artigo 665º do
Código de Processo Penal de 1929, com a interpretação restritiva do Assento, ali
onde o tribunal de recurso denega uma pretensão de alteração da matéria de facto
antes formulada pelos recorrentes.
Uma pretensão assim pode ainda reconhecer-se em certos momentos da
alegação do recorrente A ..., mas, para além disso, deve sublinhar-se que a
aplicação da norma do artigo 665º não está dependente de qualquer pretensão
prévia de alteração da matéria de facto. Trata-se de uma norma atributiva de
competências ao tribunal de recurso, em processo penal, cuja estatuição vai
ligada ao actuar oficioso desse mesmo tribunal, com independência de qualquer
pretensão de parte. Isso está em relação com os princípios conformadores do
processo penal, a saber, os da investigação e da verdade material.
No caso, o Tribunal da Relação deixou absolutamente intocados os
factos dados como provados pelo Tribunal Colectivo. Mas então - como se
interroga o acórdão nº 369/92 (inédito) do Tribunal Constitucional, tratando
questão idêntica à deste processo - 'ficamos sem saber o que faria o Tribunal da
Relação se tivesse concluído pela inconstitucionalidade da norma: teria ordenado
oficiosamente a realização de diligências que lhe permitissem reapreciar a
matéria de facto? De toda a matéria de facto, ou apenas de parte dela? Ou teria
considerado não haver lugar à realização de quaisquer diligências, por não terem
sido requeridas? Perguntas a que não é possível responder, uma vez que o
Tribunal não chegou a colocá-las pois concluiu pela não inconstitucionalidade'
(...). [cf. também, no mesmo sentido, o acórdão nº 69/92, D.R., II Série, de
18-08-1992].
Assim, ao fixar a matéria de facto, não ordenando oficiosamente
quaisquer diligências, a Relação de Lisboa torna pensável uma auto-limitação de
poderes apenas em obediência à norma do artigo 665º do Código de Processo Penal,
com a interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 1934. Por isso,
não é possível afastar uma ideia de aplicação ao caso dessa mesma norma nem de
como ela se projecta e permanece na decisão recorrida, do Supremo Tribunal de
Justiça. Do que resultam improcedentes as questões prévias suscitadas pelo
Ministério Público, de não conhecimento dos recursos interpostos por S..., A ...
e R....
Mas já se considera procedente a questão prévia suscitada, de não
conhecimento, por ilegitimidade, do recurso que interpôs a ré I.... A mesma ré
houvera, com efeito, recorrido do acórdão da Relação de Lisboa para o Supremo
Tribunal de Justiça, mas, por despacho do desembargador-relator, de 9 de Julho
de 1991, esse recurso foi declarado sem efeito. Depois, o Supremo Tribunal de
Justiça, no acórdão ora recorrido, não se pronunciou sobre o mesmo recurso nem
sobre a responsabilidade criminal da ré.
Além disso, o Ministério Público não recorreu do que sobre a mesma
ré se decidiu no acórdão da Relação de Lisboa. Ora, não sendo, por nenhum modo,
parte vencida, não tem a ré I..., agora, legitimidade para recorrer para o
Tribunal Constitucional.
2. E quanto ao mérito do recurso, a questão de constitucionalidade
é a da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na
interpretação do Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 -
segundo a qual as Relações, no recurso das decisões condenatórias dos tribunais
colectivos criminais, ao conhecerem da matéria de facto, haverão de basear-se
exclusivamente nos documentos, respostas aos quesitos e em outros elementos do
processo que não puderam ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e
que haja determinado as respostas aos quesitos.
O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 401/91, D.R., I Série-A,
declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do
artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, naquela interpretação,
considerando que essa norma, conjugada com as dos artigos 466º e 469º do mesmo
Código, não realiza com suficiência a garantia do duplo grau de jurisdição que
se deriva, para o processo penal, do artigo 32º, nº 1, da Constituição da
República.
É essa declaração que agora se aplica ao caso em apreço.
III - Decisão
Nestes termos decide-se:
a) - Desatender, por improcedentes, as questões prévias de não
conhecimento dos recursos interpostos por S..., A ... e R....
b) - Atender a questão prévia de não conhecimento do recurso
interposto por I....
c) - Em aplicação da declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, contida no Acórdão nº 401/91 do Tribunal Constitucional
[D.R., I Série-A, de 8 de Janeiro de 1992], conceder provimento aos recursos
indicados em a) e, assim, determinar a reformulação da decisão recorrida em
harmonia com o julgamento de inconstitucionalidade proferido nesse acórdão.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 1995
Ass) Maria da Assunção Esteves
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Maria Fernanda Palma
Antero Alves Monteiro Dinis (com a declaração
que agora junto)
Luis Nunes de Almeida
Proc. nº 320/92
Cons. Monteiro Diniz
Declaração de voto
1 -Acompanhando embora a parte decisória do acórdão tive por
adequado apresentar uma declaração de voto em ordem a precisar alguns aspectos
da linha argumentativa que o atravessa.
Para isso importa assinalar os pontos essenciais que enquadram a
temática da jurisprudência maioritária deste tribunal a propósito da garantia
constitucional do duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
Vejamos então.
*///*
2 - É sabido que o texto constitucional, nomeadamente o artigo 32º,
que se reporta às garantias de defesa em processo criminal, não consagra
expressamente, entre tais garantias, o princípio do duplo grau de jurisdição,
como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e
com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(aprovado para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) se consagra, em
matéria penal, essa garantia, nos termos que constam do artigo 14º, nº 5:
'Qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar
por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em
conformidade com a lei'.
Mas, a existência daquele princípio tem sido afirmada pela doutrina
(cfr. por todos, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 769;
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., 1993, p. 164 e Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional -
Direitos Fundamentais, 1988, p. 261) e o Tribunal Constitucional, tem vindo a
definir que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº 1, da
Constituição, é, justamente, o direito de recurso contra sentenças penais
condenatórias, o que vale por reconhecer, no domínio processual penal, como
princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição (cfr. por todos o acórdão
219/89, Diário da República, II série, de 30 de Junho de 1989).
Ora, precisamente a partir deste acórdão, iniciou-se um processo de
fixação jurisprudencial que passou, primeiro, pelo julgamento de
inconstitucionalidade da norma do artigo 665º do Código de Processo Penal de
1929 com a sobreposição interpretativa do Assento do Supremo Tribunal de Justiça
de 29 de Junho de 1934, na parte em que se determina o âmbito de cognição das
Relações em matéria de facto, e depois, pela declaração da sua
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral (cfr. acórdãos nºs 340/90 e
401/91, Diário da República, respectivamente, II série, de 19 de Março de 1991 e
I série, de 8 de Janeiro de 1992).
E, numa linha de desenvolvimento dos princípios equacionados a
propósito daquela mesma matéria, o Tribunal Constitucional veio a julgar
inconstitucional, também por violação das garantias de defesa consagradas no
artigo 32º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 665º do Código de Processo
Penal, naquele mesmo segmento, quando autonomamente considerada, isto é,
despojado do acréscimo interpretativo que lhe veio a ser conferido pelo assento
de 1934 (cfr. acórdãos nºs 190/94, de 23 de fevereiro de 1994, ainda inédito e
430/94, Diário da República, II série, de 10 de Janeiro de 1995).
Tanto no primeiro como no segundo caso, embora de modo muito mais
significativo na situação reportada à norma complexa resultante da sobreposição
do assento com o preceito do Código de Processo Penal, foi entendido que as
limitações decorrentes para as Relações na apreciação da matéria de facto, nos
recursos interpostos das decisões condenatórias dos tribunais colectivos,
colidiam com as garantias constitucionalmente asseguradas em termos de duplo
grau de jurisdição.
Sendo certo que na segunda hipótese - norma do artigo 665º
isoladamente considerada - as Relações dispunham de um âmbito de cognição mais
vasto pois que se podiam basear 'nos documentos, respostas aos quesitos e em
quaisquer outros elementos constantes dos autos' ao contrário do que acontecia
na primeira situação, na qual as decisões dos tribunais colectivos de 1ª
instância só podiam ser alteradas 'em face de elementos do processo que não
pudessem ser contrariadas pela prova apreciada no julgamento e que haja
determinado as respostas aos quesitos', de todo o modo foi entendido não
constituir ainda um sistema compatível com a exigência das garantias
constitucionais.
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2 - Mas, ao contrário do que por vezes se tem defendido, sempre se
assinalou naquela jurisprudência que a inconstitucionalização do regime
instituído pelo Código de 1929, antes ou depois do assento de 1934, não podia
ser entendida 'como significando que outra solução que não seja a repetição da
prova em audiência perante as relações está em conflito com a Constituição'.
É que, como logo ali se precisou, 'entre o sistema em questão [...],
e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de
recurso, outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de
defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito
constitucional'.
E tanto assim que a jurisprudência do Tribunal Constitucional,
embora com votos de vencido, tem vindo a considerar o sistema de revista
ampliada previsto no Código de Processo Penal de 1987 com um desses sistemas
constitucionalmente compatíveis, por se haver entendido que nele se protege o
arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro
na decisão da matéria de facto), e, em concomitância, defende-o do risco de uma
sentença injusta (cfr. os acórdãos nºs 322/93 e 172/94, Diário da República, II
série, de 29 de Novembro de 1993 e 19 de Julho de 1994).
Com efeito, no regime estabelecido em 1987, o Supremo Tribunal de
Justiça poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio
do processo para novo julgamento, sempre que apurar a existência de
insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou
erro notório na apreciação da prova, dispondo para tanto, além do mais, de
adequados elementos materiais de controlo probatório. Em conformidade com o
disposto no artigo 374º, nº 2, do código actual, a fundamentação da sentença,
para além da 'enumeração dos factos provados e não provados' há-de conter uma
exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de
facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação das provas que
serviram para formar a convicção do tribunal.
E assim sendo, a fundamentação do tribunal colectivo, no quadro das
exigências que lhe são impostas na lei, deve permitir ao tribunal superior uma
avaliação dos motivos da decisão e do processo lógico-mental que serviu de
suporte ao respectivo conteúdo decisório, não constituindo para tanto
impedimento, (cfr. os cit. acórdãos nºs 322/93 e 172/94), a circunstância de o
vício sobre o facto haver de resultar 'do texto da decisão recorrida, por si só
ou conjugada com as regras da experiência comum' (artigo 410º, nº 2 do Código de
Processo Penal, de 1987).
Ora, no quadro de estatuição da norma do artigo 665º, as Relações,
podendo embora conhecer da matéria de facto através dos 'documentos, respostas
aos quesitos e de quaisquer outros elementos constantes dos autos', só
excepcionalmente e em casos pontuais disporão no processo de elementos
susceptíveis de conduzir à infirmação dos factos dados como provados pelos
tribunais de 1ª instância, sendo por isso insuficiente e deficitário, face ao
conteúdo que deve atribuir-se à garantia constitucional do segundo grau de
jurisdição, os poderes que neste sistema lhes são atribuídos.
As) Antero Alves Monteiro Dinis