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Procº nº 368/94.
2ª Secção.
Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Tendo sido pela Direcção dos Serviços de Educação e
Juventude do Governo de Macau enviado ao Tribunal de Contas desse Território,
para aposição de «Visto», o contrato além do quadro celebrado entre aquele
organismo e M..., contrato esse que visava a prestação de funções, por parte
desta última, como técnica superior de 2ª classe do primeiro escalão da referida
Direcção de Serviços, foi aquele «Visto» concedido pelo Juiz da Secção de
Fiscalização Prévia, o que motivou que o Representante do Ministério Público
interpuzesse recurso para o Tribunal Colectivo que, por acórdão de 12 de Julho
de 1994, anulou a decisão proferida pelo aludido Juiz, em consequência recusando
o solicitado «Visto».
2. Para alcançar uma tal decisão por maioria recusou o
Colectivo do Tribunal de Contas de Macau, por inconstitucionalidade orgânica e
material, a aplicação do artigo único do Decreto- -Lei de Macau nº 5/93/M, de 8
de Fevereiro, o que levou o Representante do Ministério Público junto daquele
órgão a interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
3. Aceite o recurso e determinada, já neste Tribunal, a
feitura de alegação, concluiu o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto aqui em funções a
por si produzida, e na qual defende que o presente recurso deferá ser
considerado procedente, do seguinte modo:-
'1º - O regime estabelecido no artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M,
de 8 de Fevereiro, não inova no que se refere ao regime jurídico aplicável ao
pessoal dos quadros próprios do território de Macau, plasmado no Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau (aprovado pelo Decreto-Lei nº
87/89/M, de 21 de Dezembro, no exercício da autorização legislativa constante da
Lei nº 9/ /89/M, de 23 de Outubro).
2º - Na verdade, a norma constante daquele artigo único incide sobre
um aspecto específico da regulamentação do recrutamento de pessoal no exterior,
revogando parcialmente o nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de
Agosto, ao estabelecer que a capaci- dade profissional dos agentes recrutados no
exterior não tem de obedecer aos condiciona- lismos previstos no artigo 13º, nº
1, dos Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pú- blica de Macau.
3º - O estabelecimento da disciplina jurídica do recrutamento de
pessoal no exterior, mediante densificação e regulamentação da norma constante
do artigo 69º, nº 1, do Estatuto Orgânico de Macau, não se situa no âmbito da
competência legislativa reservada da Assembleia Legislativa de Macau, tendo,
aliás, o Decreto-Lei nº 60/92/M sido editado pelo Governador de Macau, no
exercício da sua competência legislativa própria.
4º - Assim sendo, o esgotamento e caducidade da autorização
legislativa concedida pela Lei nº 9/88/M não pode implicar a
inconstitucionalidade orgânica da norma constante do re- ferido artigo único.
5º - A diferenciação de regimes decorrente do artigo único do
Decreto-Lei nº 5/93/M não viola os princípios constitucionais da igualdade e da
não discriminação do acesso à função pública, por na sua base se encontrar um
fundamento razoável, que constitui suporte material bastante do regime
instituído quanto à capacidade profissional dos agentes recruta- dos no
exterior.
6º - Tal diferenciação é consentida pelos artigos 68º a 70º do
Estatuto Orgânico de Macau, que instituem uma diversidade de regimes e uma
tendencial estanquicidade entre os quadros do funcionalismo próprios do
território e os quadros dependentes dos órgãos de soberania e das autarquias da
República.
7º - O recrutamento de pessoal no exterior, nos termos do artigo 69º,
nº 1, do Est tuto Orgânico de Macau e do estatuído no De- creto-Lei nº 60/92/M,
tem carácter excepcional e visa realizar um interesse público da Administração,
suprindo as carências do território em pessoal dotado das qualificações
necessárias ao cargo a prover.
8º - O regime constante do citado artigo único do Decreto-Lei nº
5/93/M não implica tratamento discriminatório arbitrário e desrazoável para os
funcionários dos qudros próprios de Macau, prevendo a lei as formas e os
procedimentos adequados para voluntariamente poderem reingressar na função
pública'.
Dada a circunstância de vários processos idênticos ao
presente terem já sido objecto de distribuição, por isso sendo já do
conhecimento dos Juízes deste Tribunal a questão que aqui haverá de tratar-se,
foram os «vistos» dos Juízes da Secção dispensados.
II
1. Uma primeira questão se poderá desde logo levantar,
qual seja a de saber se detem este Tribunal competência para conhecer dos
recursos interpostos de decisões da espécie da ora impugnada e por intermédio
dos quais se vise a fiscalização concreta da constitucionalidade de normas,
estando em causa uma decisão, emanada pelo Tribunal de Contas de Macau, para
cujo suporte foi decisiva a recusa de aplicação normativa fundada em razões de
desconformidade constitucional.
O inicial aspecto que, neste particular, se terá de
abordar, consiste, precisamente, em nos situarmos perante uma recusa de «Visto»
por parte de um Tribunal de Contas.
Ora, quanto a esse aspecto, já o Tribunal Constitucional
tomou posição no sentido de entender que o Tribunal de Contas, ao previamente
fiscalizar a legalidade e cobertura orçamental dos documentos que acarretam
despesas para o Estado, estar a desempenhar 'uma função própria, típica, que lhe
está constitucionalmente cometida', constitutiva de 'uma verdadeira decisão
judicial' (cfr. Acórdãos números 214/90, in Diário da República, 2ª Série, de 17
de Setembro de 1990 e 251/90, sumariado no Boletim do Ministério da Justiça, nº
399, 551).
Essa postura, quanto à natureza da decisão tomada pelo
Tribunal de Contas (o Tribunal de Contas da República - aliás o único existente
aquando da prolação dos citados arestos) quanto à mencionada fiscalização da
legalidade e da cobertura orçamental, em nada é de alterar pela circunstância de
nos postarmos aqui perante o Tribunal de Contas de Macau instituído pelo artº
10º da Lei nº 112/91, de 20 de Agosto, já que as funções a ele cometidas por
aquele normativo quanto à jurisdição e poderes de controlo financeiro no âmbito
da ordem jurídica de Macau e, mais concretamente, no que tange ao «Visto», são
idênticas às cometidas ao Tribunal de Contas da República, desta arte se não
divisando motivos para entender como não se tratando de uma decisão judicial
aquela que incide sobre a concessão ou recusa de «Visto».
2. Um outro aspecto, esse mais amplo, do particular de
que ora curamos, prende-se, obviamente, com a questão de saber se, aceite
tratar-se de uma decisão judicial, é possível a respectiva impugnação, com vista
ao controlo da constitucionalidade de normas, por intermédio de recurso para o
Tribunal Constitucional.
A resposta a uma tal questão deve ser de conteúdo
positivo, mormente se se tiver em consideração o que se encontra prescrito nas
disposições conjugadas dos artigos 292º da Constituição, 2º, 11º, nº 1, alínea
e), 15º, nº 2, segunda parte, 30º, nº 1, alínea a), 40º, nº 3, e 41º, estes do
Estatuto Orgânico de Macau aprovado pela Lei nº 13/90, de 10 de Maio, 11º e 34º
da Lei nº 112/91, de 29 de Agosto, e 3º do Decreto-Lei de Macau nº 17/92/M, de 2
de Março.
Na realidade, muito embora seja sabido que Macau não faz
parte integrante de Portugal (é, de facto, um território que, por enquanto, se
mantém sob administração portuguesa - cfr. o que se estatuía no nº 4 do artigo
5º da versão originária da Constituição e hoje se comanda no nº 1 do artigo 292º
da vigente versão - pelo que, utilizando as palavras de Afonso Queiró in Lições
de Direito Administrativo, 1976, 378, se há-de considerar como um Ausland),
possuindo assim uma organização político-administrativa própria não regulada
pela Constituição (já que essa organização foi integralmente remetida para um
específico estatuto), e que, em consequência, apresenta aquilo que Gomes
Canotilho e Vital Moreira («A Fiscalização da Constitucionalidade das Normas em
Macau», Separata ao nº 48º da Revista do Ministério Público) designam por
«dualismo constitucional» e «ordenamental» (cfr., sobre o ponto, o Acórdão deste
Tribunal nº 245/90 publicado na 2ª Série do Diário da República de 22 de Janeiro
de 1991), o que é certo é que daquela dualidade normativa (cfr., sobre a
necessidade de, em primeira linha, se pesquisar no Estatuto Orgânico de Macau o
regime, não só da produção de normas jurídicas, mas também do respectivo
controlo, o Acórdão nº 292/91, publicado na 2ª Série do jornal oficial de 30 de
Outubro de 1991), - maxime das acima citadas disposições, onde avulta a do artº
11º da Lei nº 112/91 - resulta que, ao menos enquanto não for tomada a
determinação a que se reporta o artº 75º do mencionado Estatuto, poderá
recorrer-se directamente para o Tribunal Constitucional das decisões lavradas
pelos tribunais pertencentes à organização judiciária de Macau e que recusaram,
com base em inconstitucionalidade, a aplicação de nomas, ou que as aplicaram
muito embora aquela inconstitucionali dade tivesse sido, durante o processo,
questionada por uma «parte».
2.1. A esta conclusão, por outro lado, não obsta o
estatuído nos artigos 10º, nº 6, da Lei nº 112/91 e 46º, nº 2, e 49º, nº 4, do
Decreto-Lei de Macau nº 19/92/M, de 2 de Março, tendo em conta o que se comanda
no artº 11º daquela mesma Lei, já que, quanto às decisões de outros tribunais,
que desaplicaram, com fundamento de inconstitucionalidade, determinada norma,
sempre pode haver recurso directo para o Tribunal Constitucional,
independentemente de essas decisões poderem comportar recurso ordinário, não se
vendo que, da circunstância de se tratar de um Tribunal de Contas, sejam
extraíveis argumentos que imponham a adopção de um outro sistema impositor de um
recurso prévio para o Tribunal de Contas da República, quando a recusa de
«Visto» se fundar na não aplicação, baseada num juízo de desconformidade
constitucional, de certa norma.
2.2. Questão diversa das acima colocadas é, ainda, a de
saber se, estando equacionada a ofensa - por um preceito oriundo do poder
normativo próprio do Território de Macau - às normas, constantes do respectivo
Estatuto Orgânico, reguladoras da competência própria dos órgãos que detêm tal
poder, é possível ao Tribunal Constitucional proceder à análise do problema por
intermédio de um recurso de fiscalização concreta.
A uma tal questão responde o Tribunal afirmativamente.
E fá-lo, precisamente, pela circunstância de se não
afigurar curial que tivesse o legislador desejado cometer ao Tribunal
Constitucional competência para apreciar em abstracto a ilegalidade de quaisquer
normas dimanadas da Assembleia Legislativa ou do Governador [cfr. alínea e) do
nº 1 do artigo 11º, alínea a) do nº 1 do artigo 30º e nº 3 do artigo 40º, todos
do Estatuto Orgânico de Macau], mas já não quizesse que tal tarefa lhe fosse
cometida quando, por uma decisão jurisdicional, foi recusada aplicação de uma
qualquer dessas normas com base, justamente, na existência de um descortinado
vício desse jaez.
Em suma, e no particular de que nos ocupamos, nada obsta
ao conhecimento do mérito do recurso.
III
1. Por intermédio do diploma em que se insere a norma
recusada aplicar pelo Tribunal de Contas de Macau na decisão sub judicio,
pretendeu-se, como ressalta do respectivo exórdio, 'esclarecer o alcance e
âmbito da aplicação' da prescrição contida no nº 1 do artº 13º do Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei de
Macau nº 87/89/M, de 21 de Dezembro, pois que, explicitou-se nesse exórdio,
tinham 'surgido dúvidas e interpretações divergentes, no tocante ao universo
pessoal de aplicação das normas atinentes à capacidade para o exercício de
funções públicas no território de Macau'
A norma referida no preâmbulo do D.L. de Macau nº 5/93/M
e que, por intermédio deste, foi pretendida esclarecer [ou seja, a norma do nº 1
do artº 13º do E.T.A.P.M. - e no momento só releva a sua alínea a)] proíbe o
desempenho das funções públicas no Território de Macau por parte dos
'funcionários na situação de licença sem vencimento de curta ou longa duração ou
por interesse público ou que hajam requerido a passagem a uma destas situações'
(cfr. a excepção consagrada para os funcionários aposentados dos quadros
próprios dos organismos dos serviços públicos de Macau, aos quais, a título
excepcional, é consentido o exercício de funções a título de assalariamento -
artº 268º do E.T.A.P.M.).
Ora, tendo em conta que o artigo único do D.L. de Macau
nº 5/93/M prescreve que '[a]s situações constituídas no âmbito dos quadros
dependentes dos órgãos de soberenia ou das autarquias da República Portuguesa,
nomeadamente de licença de curta ou longa duração, licença ilimitada,
aposentação, reforma ou reserva não constituem incapacidade para o exercício de
funções públicas no território de Macau, em qualquer dos regimes previstos no
Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro', torna-se claro que a interpretação
pretendida fazer por esse preceito foi no sentido de a incapacidade estatuída na
alínea a) do nº 1 do artº 13º do E.T.A.P.M. apenas se reportar aos funcionários
que pertençam aos quadros do Território de Macau.
2. A decisão sob censura, estribando-se numa outra
decisão do Tribunal de Contas de Macau, datada de 28 de Setembro de 1993, para
cujos fundamentos remeteu e cuja cópia se encontra junta aos autos, entendeu
que, sendo nítido ter o nº 1 do artº 13º vocação de aplicação a todos os
funcionários públicos, independentemente de se saber de onde eram oriundos,
então haveria de concluir-se que o artº único do D.L. de Macau nº 5/93/M
procedeu a uma alteração da disciplina contida naquele primeiro normativo, ou
seja, veio ''abrir' aos quadros dependentes da República a possibilidade de
exercerem no Território funções públicas em situações que não são permitidas nos
quadros locais' (palavras da decisão de 28 de Setembro de 1993). Mas, continua
o raciocínio da decisão recorrida, como se trata de um diploma emanado do
Governador de Macau e não da respectiva Assembleia Legislativa, não competindo
àquele, nos termos do Estatuto Orgânico de Macau, sem autorização do dito órgão
parlamentar, legislar sobre a matéria, e como, no caso, não lhe foi concedida
credencial legislativa, então haveria de ser-se conduzido à conclusão de que o
aludido D.L. de Macau nº 5/93/M enfermava de «inconstitucionalidade orgânica».
Será que colhe o raciocínio que, neste ponto, foi
adoptado na decisão impugnada?
Para dar resposta a esta questão, claro é que, de uma
parte, se terá de saber se o artigo único do D.L. de Macau nº 5/ /93/M,
independentemente do que se contêm no seu relatório preambular, é, em
substância, uma norma interpretativa do nº 1 do artº 13º do E.T.A.P.M. ou,
antes, algo que contém disciplina inovadora e, de outra, se a matéria de que
trata se inscreve na competência reservada da Assembleia Legislativa de Macau.
2.1. Tendo em conta o que se dispunha na alínea e) do nº
1 do artº 31º do Estatuto Orgânico de Macau aprovado pela Lei nº 1/76, de 17 de
Fevereiro, competia à Assembleia Legislativa de Macau a criação de 'novas
categorias ou designações funcionais ou alterar as tabelas' (cfr. Rectificação
publicada na 1ª Série do Diário da República de 20 de Março de 1976) que
definiam 'aquelas categorias e fixar os vencimentos, salários e outras formas de
remuneração do pessoal dos quadros' [com as alterações introduzidas pela Lei nº
13/90, de 10 de Maio, continua a persistir idêntico preceito - cfr. artº 31º, nº
1, alínea q)], pelo que, para que o Governador de Macau pudesse legislar em
matéria de estatuto de pessoal dos quadros próprios dos serviços públicos do
Território, haveria, como hoje haverá, de munir-se da cabida autorização
legislativa (cfr. artº 31º, nº 2, da primitiva versão do Estatuto Orgânico de
Macau e artº 31º, nº 3, da vigente versão).
Por isso mesmo o E.T.A.P.M. foi editado através de um
diploma emanado do Governador de Macau (o já referido D.L. de Macau nº 87/89/M)
que, para tanto, se encontrava munido de uma autorização legislativa,
precisamente concedida pela Lei nº 9/89/ /M, de 23 de Outubro.
Estatuto esse que, como limpidamente transparece do seu
artº 1º, unicamente pode aplicar-se ao pessoal dos quadros próprios do serviços
públicos de Macau, sendo que nem de outro modo se pode conceber se se atentar no
artº 68º do Estatuto Orgânico de Macau. Consequentemente, não pode ser
defendido com coerência que o E.T.A.P.M. tem vocação para ser aplicado ao
'pessoal dos quadros dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da
República', já que deste trata o artº 69º do Estatuto Orgânico de Macau, ao qual
confere uma disciplina base específica.
Pois bem:- Tratando-se de pessoal oriundo do ou
recrutado no «exterior» (cfr. terminologia usada nos Decretos-Leis de Macau
números 53/89/M, de 28 de Agosto, e 60/92/M, de 24 de Agosto), com a permissão
advinda do artº 69º do Estatuto Orgânico de Macau, o regime a que o mesmo há-de
obedecer já se não insere na competência relativa da Assembleia Legislativa de
Macau (que, como se viu, se reporta ao estatuto do pessoal dos quadros próprios
dos serviços públicos do Território), cabendo, por isso, na competência
legislativa própria do Governador de Macau.
De harmonia com o estatuído no nº 1 do artº 13º do D.L.
de Macau nº 60/92/M, diploma hoje regulador do recrutamento do pessoal a que se
refere o artº 69º do Estatuto Orgânico de Macau (isto é, o pessoal dos quadros
dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da República que se
prestem ao desempenho de funções, por tempo determinado, nos serviços e
organismos públicos do Território de Macau) ao mesmo são, de forma supletiva,
aplicáveis as incapacidades previstas no artº 13º do E.T.A.P.M.
Simplesmente, inserindo-se na esfera da competência
legislativa do Governador de Macau a edição de normação regente do pessoal
recrutado no «exterior», em qualquer altura poderia ele, sem vício de
«inconstitucionalidade orgânica» (recte, sem infracção das regras definidoras da
competência dos órgãos legislativos do Território de Macau), editar legislação
que alterasse a matéria pertinente às incapacidades desse pessoal para o
exercício de funções públicas nos serviços e organismos do Território.
Sendo isto assim, poder-se-á sublinhar que o artigo
único do D.L. de Macau nº 5/93/M não se configura, substancialmente, como uma
lei interpretativa, mas sim como a estatuição de uma alteração ao regime
anteriormente existente (regime esse que, antes do D.L. de Macau nº 60/92/M,
constava do já citado D.L. de Macau nº 53/89/M, sendo que interessa aqui chamar
à colação o que preceituava o nº 4 do artº 7º do Decreto- -Lei de Macau nº
86/84/M, de 11 de Agosto, e a nova redacção dada pelo Decreto-Lei de Macau nº
15/88/M, de 29 de Fevereiro, este último revogado pelo Decreto-Lei de Macau nº
87/89/M, aprovador do E.T.A.P.M.).
Não obstante, e como acima se concluiu, isso não inquina
aquela disposição do vício de desconformidade com as normas reguladoras da
competência dos órgãos dotados de poder legislativo no Território de Macau, já
que dispunha o Governador de competência legislativa própria para efectuar essa
alteração.
3. Todavia, a decisão sobre recurso, no que concerne à
desaplicação do normativo em causa, não se quedou pelo vício acima indicado,
porquanto detectou que o mesmo padecia ainda de inconstitucionalidade material
por violação do princípio da igualdade na sua vertente de igualdade no acesso à
função pública. E isso porque, de acordo com o entendimento dos Juízes
vencedores, a discriminação consagrada pelo artigo único do D.L. de Macau nº
5/93/M, que favorece o pessoal recrutado do «exterior» (no respeitante às
incapacidades para desempenho de funções nos serviços e organismos públicos do
Território de Macau) se baseava 'apenas na diferença do território de origem dos
quadros em presença' (palavras da decisão de 28 de Setembro de 1993).
Como é sabido, o princípio da igualdade não aponta no
sentido de que igualdade corresponda a igualitarismo, antes correspondendo a uma
igualdade proporcional, ou seja, exige que se tratem por igual situações
substancialmente iguais, e que situações substancialmente dissemelhantes sofram
diverso tratamento, embora proporcionadamente diferente.
Sequentemente, no equacionamento desta questão, haverá
que saber se, efectivamente, se poderá dizer que são idênticas as situações que
conduzem ao recrutamento do pessoal dos quadros próprios dos organismos do
serviço público do Território de Macau e ao recrutamento do pessoal do
«exterior».
A resposta afigura-se-nos clara.
3.1. Desde logo, não se pode passar em claro que é o
próprio Estatuto Orgânico de Macau que prevê uma dualidade de pessoal - o dos
serviços públicos dos quadros próprios do Território e o dos quadros dependentes
dos órgãos de soberania ou das autarquias da República -, pelo que este Diploma
Fundamental entendeu não sujeitar a um único sistema o pessoal que preste
serviço nos organismos dos serviços públicos de Macau.
Depois, e como se torna nítido do próprio regime
regulador do pessoal recrutado do «exterior» (hoje o D.L. de Macau nº 60/92/M),
a ele se deve recorrer a título excepcional, sendo o respectivo número
contingentado e tendo a prestação de serviço duração limitada, tudo com vista a
'suprir as carências do território de pessoal com qualificações necessárias ao
desempenho das atribuições que incumbem à Administração', (cfr. artigos 3º e
7º).
Este desiderato de supressão das carências do Território
quanto a pessoal devidamente qualificado, a fim de prover à satisfação da
necessidades da Administração que, por recurso unicamente aos seus quadros
próprios, não conseguiria, aditado à circunstância de tal pessoal deter essa
qualificação, só por si aponta, sem que grandes dúvidas a esse respeito se
possam levantar, para que se não possa falar de uma substancial identidade de
situações no que toca ao recrutamento de pessoal de um e de outro dos quadros,
pois que justamente não são ambos portadores dos mesmos requisitos
técnico-profissionais.
E, não havendo substancial identidade de situações, é
legítimo, do ponto de vista constitucional e nos termos acima avançados, o
estabelecimento de uma diferenciação de regimes tal como o consagrado pela norma
em apreço que, desta sorte, não afronta o princípio da igualdade plasmado no
artigo 13º da Lei Básica.
IV
Em face do exposto, concedendo provimento ao recurso,
determina-se a revogação do acórdão impugnado, determinando-se a respectiva
reforma de harmonia com o precedente juízo tomado sobre a questão de
constitucionalidade.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 1995
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
Luis Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
José Manuel Cardoso da Costa