Imprimir acórdão
Processo n.º 13/11
Plenário
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
Relatório
O Provedor de Justiça, ao abrigo do disposto no artigo 281.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa, deduziu pedido de fiscalização abstrata sucessiva, requerendo a declaração de ilegalidade e inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas que constam do artigo 69.º-D, n.º 1, alíneas a) a j), do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro.
Invocou, em resumo, os seguintes fundamentos:
Quanto à questão da ilegalidade
– A Comissão para a Eficácia das Execuções (C.P.E.E.) foi criada pelo Governo (Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro), no âmbito da estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores, enquanto órgão independente da mesma, ao abrigo de uma lei de autorização parlamentar (Lei n.º 18/2008, de 21 de abril).
– Da referida lei de autorização consta o artigo 5.º, o qual estabelece o sentido e a extensão da autorização legislativa, que, na parte que diz respeito ao teor do pedido, dispõe do seguinte modo:
“Fica o Governo autorizado a alterar o Estatuto da Câmara dos Solicitadores, com o seguinte sentido e extensão:
a) Modificar a estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores e alterar as competências dos órgãos atuais;
b) Criar um órgão destinado a disciplinar a eficácia das execuções ao qual compita o exercício do poder disciplinar sobre os agentes de execução, com possibilidade de delegação, prevendo as suas demais competências e composição, tendo em conta a alínea a) do artigo 2.º”.
Estipula este último dispositivo que “fica o Governo autorizado a criar o estatuto do agente de execução, adaptando o estatuto do solicitador de execução nomeadamente para o efeito de: a) Permitir que advogados e solicitadores possam exercer funções de agentes de execução”.
– Se a introdução da representação dos agentes de execução inscritos na Ordem dos Advogados na Comissão era a inovação expressamente autorizada pelo Parlamento, a manutenção da natureza associativa desse órgão impunha que, na sua composição, pelo menos a maioria dos seus membros encontrasse legitimação na autotutela associativa devolvida pelo Estado às classes profissionais em causa.
- No entanto, apenas dois dos onze membros da Comissão são representantes da Câmara dos Solicitadores, a que se soma apenas mais um da Ordem dos Advogados.
- Sendo o peso dos membros estranhos às referidas associações profissionais consideravelmente superior aos membros representantes dessas associações, verifica-se que o Governo atuou sem credencial parlamentar e contrariando o sentido da autorização concedida.
– Por isso, as normas constantes do artigo 69.º-D, n.º 1, alíneas a) a j), do Estatuto da Câmara dos Solicitadores (E.A.S.) padecem de ilegalidade material por violação do sentido da lei de autorização legislativa contido no artigo 5.º, alínea b), da Lei n.º 18/2008, de 21 de abril.
Quanto à questão da inconstitucionalidade
Inconstitucionalidade por violação do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição
– Segundo o disposto no n.º 4, do artigo 267.º, da Constituição, as associações públicas, como a Câmara dos Solicitadores, têm que ter uma “organização interna baseada no respeito dos seus membros e na formação democrática dos seus órgãos”.
– Sucede que a C.P.E.E., órgão integrado na Câmara dos Solicitadores com amplos poderes decisórios, foi imposta pelo legislador a esta associação pública, não sendo a esmagadora maioria dos seus membros designada pela Câmara dos Solicitadores.
- Tal composição não é compatível com o princípio constitucional da formação democrática dos respetivos órgãos, uma vez que não conta com uma maioria de representantes da própria classe profissional, eleitos pelos membros da Câmara ou designados por órgãos eletivos da Câmara;
- Esta solução viola, assim, os direitos de participação democrática dos membros da Câmara dos Solicitadores e o princípio da formação democrática dos órgãos desta associação pública, princípios esses que decorrem da parte final do artigo 267.º, n.º 4, da Constituição.
Inconstitucionalidade por violação do artigo 199.º, alínea d), da Constituição
– De acordo com o prescrito neste dispositivo constitucional ao Governo compete apenas o exercício de uma tutela da legalidade sobre a administração autónoma.
– Tendo a C.P.E.E. poderes decisórios e integrando a sua composição três membros com direito a voto nomeados pelo Governo (alíneas b), c) e d), do n.º 1, do artigo 69.º-D, do E.C.S.), a este cabem efetivos poderes de decisão que não se enquadram nos limites da mera tutela da legalidade para a qual nos remete a norma do artigo 199.º, alínea d), da Constituição.
– Deste modo, o poder de decisão do Governo no âmbito da C.P.E.E., órgão inserido na estrutura orgânica de uma associação pública profissional e com efetivos poderes decisórios, incluindo desde logo os que se prendem com o exercício do poder disciplinar sobre os profissionais investidos nas funções de agente de execução, viola a norma inserida no artigo 199.º, alínea d), da Constituição, na parte respeitante à administração pública autónoma.
Notificado, nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, veio o Primeiro-Ministro responder, alegando, em suma, o seguinte:
– O pedido apresentado pelo Provedor de Justiça e as correspondentes alegações de inconstitucionalidade e de ilegalidade, partem de dois equívocos substanciais: primeiro que a C.P.E.E., especificamente na formação de plenário, é o órgão ao qual compete a regulação e o exercício do poder disciplinar sobre os agentes de execução, segundo que a C.P.E.E. é, sem qualquer especificidade, um órgão da pessoa coletiva associativa Câmara dos Solicitadores.
– O pedido do Requerente ignora a configuração de órgão complexo que o legislador deu à C.P.E.E.; este é um órgão que, mais do que funcionando em duas formações, compreende dois órgãos distintos e com competências diferentes. A C.P.E.E. funciona como Plenário (C.P.E.E.P.) e como Grupo de Gestão (C.P.E.E.G.G.).
– Em matéria disciplinar, a C.P.E.E.P. apenas funciona como órgão de recurso (um recurso hierárquico impróprio, facultativo), para as decisões da C.P.E.E.G.G. que apliquem penas de suspensão e de expulsão (alínea b), do n.º 1, do artigo 69.º-F, do E.C.S. na redação atual).
- É como C.P.E.E.G.G. que a Comissão atua no âmbito da regulação profissional, enquanto a C.P.E.E.P. apenas define orientações gerais e através de recomendações, para além de definir o número de estagiários admitidos e escolher a entidade externa que intervém na avaliação.
– Quanto ao segundo dos equívocos substanciais acima referenciados, deve dizer-se que a C.P.E.E. apenas formalmente está associada à Câmara dos Solicitadores por razões logísticas e de funcionamento administrativo, mas que goza de um estatuto de independência.
– Quanto à questão da ilegalidade por violação da autorização legislativa, verifica-se que o Governo criou, tal como previsto, um órgão destinado a disciplinar a eficácia das execuções (a C.P.E.E.), tendo adotado um esquema orgânico de «órgão complexo» sem discriminar imediatamente a proveniência profissional da totalidade dos membros do órgão com competências de «regulação profissional» (a C.P.E.E.G.G.).
- Esta opção em nada contraria a lei de autorização legislativa, uma vez que o Governo não atribuiu as competências de «regulação profissional» a um órgão com uma composição estranha às profissões de solicitador e de advogado.
– E, apesar de pouco valer, não deixa de ser relevante recordar que o Governo, com a proposta de lei de autorização, enviou ao Parlamento o projeto de decreto-lei autorizado: a «credencial» não só existe como, quando foi aprovada, já se conhecia o que se «credenciava».
– No que respeita especificamente à invocada inconstitucionalidade por violação da norma da formação democrática dos órgãos, não sendo a C.P.E.E. um órgão próprio da estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores, pois não prossegue as atribuições desta, seria estranho que a sua composição resultasse da expressão democrática dos solicitadores.
– Quanto à inconstitucionalidade por violação do limite tutelar de interferência, há que ter presente que a tutela que está prevista na alínea d), do artigo 199.º, da Constituição, é um mecanismo de controlo e de fiscalização da legalidade dos atos e condutas dos sujeitos tutelados (eventualmente aferindo também sobre o exercício «correto» da discricionariedade) e não uma medida que se repercuta na forma como o legislador organiza ou configura normativamente a estrutura desses mesmos sujeitos e a composição dos seus órgãos.
- Sendo a C.P.E.E.P. um órgão praticamente consultivo (emite recomendações) e no que não o é apenas se pronuncia sobre aspetos estratégicos da profissão de agente de execução, pelo que não se vê em que medida pode a presença de membros designados pelo Governo invadir um espaço de autonomia que se possa reconhecer a um órgão independente da administração autónoma.
Concluiu pela improcedência das alegações de ilegalidade e inconstitucionalidade das normas constantes das alíneas a) a j), do artigo 69.º-D, do E.C.S., aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro.
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63.º, da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate, nos termos do n.º 2, do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a orientação que o Tribunal fixou.
Fundamentação
1. As normas questionadas no presente pedido de fiscalização definem somente a composição da Comissão para a Eficácia das Execuções (C.P.E.E.), que é o órgão responsável em matéria de acesso e admissão a estágio, de avaliação dos agentes de execução estagiários e de disciplina dos agentes de execução, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de Novembro, não estando em causa a constitucionalidade da inserção deste órgão na estrutura da Câmara dos Solicitadores (artigo 69.º-B do Estatuto da Câmara dos Solicitadores), uma vez que os poderes de cognição deste Tribunal estão limitados pelo pedido de fiscalização deduzido.
O Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, que alterou o Código de Processo Civil, veio criar, no contexto da chamada “Reforma da Ação Executiva”, a figura do agente de execução, a quem foram atribuídas competências no domínio da ação executiva, com vista à promoção da simplificação, desburocratização e eficácia das execuções judiciais. Deslocou-se para um agente externo, um profissional liberal, o desempenho de um conjunto de tarefas exercidas em nome do tribunal, que anteriormente cabiam ao juiz ou à secretaria do tribunal.
Essas funções foram então atribuídas preferencialmente aos solicitadores de execução (artigo 808.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), ou seja aos solicitadores que reunissem os requisitos exigidos pelo artigo 117.º, do E.C.S., na redação do Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril. Apenas nos casos em que não houvesse solicitador de execução inscrito no círculo judicial onde corria o processo, ou noutros casos de impossibilidade de nomear um desses solicitadores, é que as funções de agente de execução eram exercidas por um oficial de justiça, determinado segundo as regras da distribuição (artigo 808.º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Civil).
Como referia o então artigo 116.º, do E.C.S., “o solicitador de execução é o solicitador que, sob fiscalização da Câmara e na dependência funcional do juiz da causa, exerce as competências específicas de agente de execução e as demais funções que lhe forem atribuídas por lei”. Sendo sempre um solicitador, o solicitador de execução tinha o seu estatuto específico definido no E.C.S., estando sujeito, quer na sua atuação de solicitador, quer enquanto solicitador de execução, à ação fiscalizadora dos órgãos da Câmara de Solicitadores, encontrando-se, nomeadamente, sob o seu poder disciplinar.
Em 15 de janeiro de 2008 o Governo apresentou à Assembleia da República uma Proposta de Lei (n.º 176/X) que visava autorizá-lo a aprovar uma série de medidas destinadas a aperfeiçoar o novo modelo adotado pela “Reforma da ação executiva”, aprofundando-o e criando condições para ser mais simples e eficaz.
Entre essas medidas encontrava-se o reforço do papel do agente de execução na tramitação das ações executivas, alargando-se a possibilidade de desempenho dessas funções a advogados, face à necessidade de aumentar o número de agentes de execução que garantisse uma efetiva possibilidade de escolha pelo exequente.
Este alargamento do espectro de agentes de execução foi acompanhado por propostas de alteração ao regime de incompatibilidades, impedimentos e suspeições dos agentes de execução, visando restringir as condições de exercício desta função, e de criação de um órgão destinado a promover a eficácia das execuções, ao qual também competisse o exercício do poder disciplinar sobre os agentes de execução, de forma a garantir uma maior transparência e confiança no sistema.
Esta proposta foi aprovada pela Lei n.º 18/2008, de 21 de abril, que além do mais, no seu artigo 5.º, autorizou o Governo a alterar o Estatuto da Câmara dos Solicitadores de modo a:
“a) Modificar a estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores e alterar as competências dos órgãos atuais;
b) Criar um órgão destinado a disciplinar a eficácia das execuções ao qual compita o exercício do poder disciplinar sobre os agentes de execução, com possibilidade de delegação, prevendo as suas demais competências e composição, tendo em conta a alínea a) do artigo 2.º;
(…)”
A alínea a), do artigo 2.º, desta Lei dispôs:
“Fica o Governo autorizado a criar o estatuto de agente de execução, adaptando o estatuto do solicitador de execução, nomeadamente para o efeito de:
a) Permitir que advogados e solicitadores possam exercer funções de agentes de execução;
(…)”.
No uso desta autorização legislativa, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, que, nas alterações efetuadas ao E.C.S., separou a função de agente de execução da profissão de solicitador, permitindo o acesso dos advogados, e criou um órgão novo com competências em matéria de acesso e admissão a estágio, de avaliação dos agentes de execução estagiários e de disciplina dos agentes de execução, previsto no artigo 69.º-B e seguintes do E.C.S. – a C.P.E.E.
Esta Comissão funciona em plenário de todos os seus membros, para o exercício das competências definidas no n.º 1, do artigo 69.º-F, do E.C.S., e em grupo de gestão no exercício das competências elencadas no n.º 2, do mesmo preceito.
A composição da C.P.E.E. foi definida no artigo 69.º-D, n.º 1, do E.C.S., que tem o seguinte texto:
“1 — A Comissão para a Eficácia das Execuções é composta pelos seguintes membros:
a) Um vogal designado pelo Conselho Superior da Magistratura;
b) Um vogal designado pelo membro do Governo responsável pela área da justiça;
c) Um vogal designado pelo membro do Governo responsável pela área das finanças;
d) Um vogal designado pelo membro do Governo responsável pela área da segurança social;
e) Um vogal designado pelo presidente da Câmara dos Solicitadores;
f) Um vogal designado pelo bastonário da Ordem dos Advogados;
g) O presidente do Colégio de Especialidade dos Agentes de Execução;
h) Um vogal designado pelas associações representativas dos consumidores ou de utentes de serviços de justiça;
i) Dois vogais designados pelas confederações com assento na Comissão Permanente de Concertação Social do Conselho Económico e Social;
j) Um vogal cooptado por decisão maioritária dos vogais referidos nas alíneas anteriores, que preside.”
É precisamente a legalidade e constitucionalidade da composição deste órgão que é posta em causa no presente recurso, sendo irrelevante, para a apreciação do pedido de fiscalização deduzido, as diferentes modalidades do seu funcionamento.
2. O Requerente questiona, em primeiro lugar, a legalidade destas normas, por entender que o Governo ao definir a composição da C.P.E.E. contrariou o sentido da autorização legislativa concedida pela Assembleia da República, uma vez que dos onze membros que integram este órgão apenas três são designados ou provêm das associações profissionais dos solicitadores e dos advogados. Um vogal é designado pelo Presidente da Câmara dos Solicitadores, outro é designado pelo Bastonário da Ordem dos Advogados, e um terceiro é o Presidente do Colégio de Especialidade dos Agentes de Execução.
Da leitura conjugada das alínea a) e b), do artigo 5.º, da Lei n.º 18/2008, de 21 de abril, conclui-se que o legislador parlamentar autorizou o Governo a criar, no âmbito da estrutura da Câmara dos Solicitadores, um órgão especificamente destinado a disciplinar a eficácia das execuções, ao qual competisse também o exercício do poder disciplinar sobre os agentes de execução, conferindo-lhe poderes para prever estas e outras competências e definir a composição deste novo órgão.
Se o legislador, com a extensão aos advogados do acesso ao cargo de agente de execução, por um lado, sentiu que a supervisão desta função não podia continuar entregue aos órgãos da associação representativa dos interesses dos solicitadores, revelando-se necessária a criação de um novo órgão que desempenhasse especificamente essa atividade fiscalizadora, por outro lado, não quis desligar completamente esse novo órgão da Câmara dos Solicitadores. Daí que a sua previsão (alínea b) do artigo 5.º) implicasse uma modificação da estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores e uma alteração das competências dos seus órgãos (alínea a) do artigo 5.º).
Contudo, apesar da lei de autorização pretender que o novo órgão funcionasse inserido na estrutura da Câmara dos Solicitadores, não definiu a sua natureza, nem o modo como essa inserção se deveria processar, não se tendo imposto que o mesmo assumisse um cariz representativo dos membros desta associação profissional, pelo que não é possível extrair da indicação da localização do órgão a criar uma diretriz no sentido de que a sua composição deveria satisfazer uma representação maioritária de qualquer classe profissional, designadamente a dos solicitadores.
Nos termos da Lei de autorização legislativa a previsão pelo Governo da composição do novo órgão apenas estava obrigada a tomar em consideração que a função de agente de execução passava a poder ser exercida não só por solicitadores, mas também por advogados (artigo 2.º, alínea a), por remissão do artigo 5.º, alínea b), in fine).
Se é admissível pensar-se que a imposição desta ponderação obrigava a que as associações das quais aqueles profissionais liberais obrigatoriamente são membros (Câmara dos Solicitadores e Ordem dos Advogados) participassem na composição do novo órgão, nada permite afirmar que essa participação tivesse que assumir um peso maioritário ou que aquele que lhe foi atribuído pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, fosse insuficiente para satisfazer o sentido da autorização do legislador parlamentar.
Assim, conclui-se que da análise dos termos da Lei n.º 18/2008, de 21 de abril, não resulta que a definição da composição da C.P.E.E. efetuada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, contrarie o sentido da autorização legislativa, pelo que não se verifica o vício apontado.
3. O Requerente invoca também a inconstitucionalidade das normas definidoras da composição da C.P.E.E., por violarem o artigo 267.º, n.º 4, da Constituição, quando dispõe que as associações públicas têm uma organização interna baseada no respeito dos direitos dos seus membros e na organização democrática dos seus órgãos. Defende que não é compatível com este princípio constitucional a previsão da composição de um órgão de uma associação profissional que não conta com uma maioria de representantes da própria classe profissional, eleitos pelos membros dessa associação ou designados pelos seus órgãos eletivos.
O artigo 69.º-D, do E.C.S., aditado pelo artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, optou por uma composição pluralista da C.P.E.E., procurando que nesta estivessem representados todos os setores com interesse na eficácia da ação executiva, como as entidades representativas dos consumidores ou utentes de serviços de justiça, parceiros sociais, o Governo, o Conselho Superior da Magistratura, a Ordem dos Advogados e a Câmara dos Solicitadores. Nas palavras do legislador, pretendeu-se que esta composição plural tornasse a Comissão para a Eficácia das Execuções um fórum privilegiado para a troca de opiniões e de experiências sobre o desempenho dos agentes de execução, facilitando o diálogo entre aqueles que utilizam os serviços destes agentes, os que podem promover a sua eficácia e os próprios operadores judiciários (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 165/2009, de 22 de julho, que regula aspetos relativos ao funcionamento da C.P.E.E.).
Se é verdade que os princípios democráticos impõem que a formação dos órgãos representativos duma associação pública resulte da expressão direta ou indireta da vontade dos seus associados, há que ter presente a natureza e o especial posicionamento da C.P.E.E. no interior da Câmara dos Solicitadores, tendo em atenção o modo como este novo órgão foi configurado pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro, ao efetuar alterações e aditamentos ao E.C.S.
Desde logo o novo artigo 69.º-B, deste diploma, qualifica a C.P.E.E. como um órgão independente da Câmara dos Solicitadores. Esta independência assume-se precisamente face à Câmara dos Solicitadores, pelo que a sua ligação a esta associação pública é meramente formal, tendo apenas reflexos logísticos e financeiros (artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 165/2009, de 22 de julho, e n.º 3 do artigo 127.º do E.C.S.).
Na verdade, a C.P.E.E. destina-se a superintender em matérias de acesso à função e de disciplina dos agentes de execução, tendo por competências, nos termos do artigo 69.º-C, do E.C.S.:
a) emitir recomendações sobre a formação dos agentes de execução e sobre a eficácia das execuções;
b) definir o número de candidatos a admitir em cada estágio de agente de execução;
c) escolher e designar a entidade externa responsável pela elaboração, definição dos critérios de avaliação e avaliação do exame de admissão a estágio de agente de execução;
d) aprovar o relatório anual de atividade;
e) instruir os processos disciplinares de agentes de execução;
f) aplicar as penas disciplinares aos agentes de execução;
g) proceder a inspeções e fiscalizações aos agentes de execução;
h) decidir as questões relacionadas com os impedimentos e suspeições do agente de execução.
Ora, tendo em atenção que os agentes de execução tanto podem ser solicitadores, como advogados, não se podem considerar inseridas nas finalidades específicas da Câmara de Solicitadores tais atribuições, revelando-se por isso de acordo com a sua substância a qualificação da C.P.E.E. como órgão independente da Câmara dos Solicitadores, não sendo possível considerá-lo como representativo da classe profissional solicitadores.
Daí que na enumeração dos órgãos da Câmara constante do artigo 11.º, do E.C.S., a C.P.E.E. não figure.
Deste modo, sendo a C.P.E.E. um órgão independente da Câmara dos Solicitadores, apesar de formalmente nela alojado, a sua composição plural, na qual em onze membros apenas um é designado pelo Presidente da Câmara dos Solicitadores e outro é o Presidente do Colégio da Especialidade dos Agentes de Execução, não infringe os princípios democráticos que devem presidir à formação dos órgãos das associações públicas.
4. O Requerente alega ainda que o disposto no artigo 69.º-D, n.º 1, do E.C.S., viola o disposto no artigo 199.º, d), da Constituição, quando se restringe a tutela do Governo sobre a administração autónoma a uma tutela de legalidade, uma vez que a composição da C.P.E.E. é integrada por três vogais designados pelo Governo.
Integram a C.P.E.E. um vogal designado pelo membro do Governo responsável pela área da justiça, outro pelo membro do Governo responsável pela área das finanças e outro pelo membro do Governo responsável pela área da segurança social (alíneas b), c) e d), do artigo 69.º-D, n.º 1, do E.C.S.).
Mas esta intervenção do Governo cessa com a designação das pessoas que irão ocupar o lugar de vogais da C.P.E.E., não estando estes, no exercício dos seus cargos, sujeitos a quaisquer orientações, diretivas ou recomendações, não respondendo perante o Governo, que os não pode destituir.
Os vogais designados pelos membros do Governo das áreas da justiça, finanças e segurança social agem, no seio da C.P.E.E., com total autonomia e liberdade, não existindo qualquer controlo de conformidade da sua atuação com as políticas governamentais.
Daí que o aludido poder de designação, desacompanhado de um poder de controlo sobre a atuação dos vogais indicados, não corresponda à consagração de qualquer regime de tutela sobre órgãos da administração autónoma que se possa considerar não estar abrangido pelo disposto no artigo 199.º, d), da Constituição, pelo que também não merece acolhimento este fundamento de inconstitucionalidade invocado pelo Requerente.
5. Não procedendo nenhuma das razões invocadas pelo Requerente para fundamentar o seu pedido não deve ser declarada a ilegalidade nem a inconstitucionalidade do artigo 69.º-D, n.º 1, alíneas a) a j), do E.C.S.
Decisão
Nestes termos, o Tribunal Constitucional não declara a ilegalidade, nem a inconstitucionalidade, das normas constantes do artigo 69.º-D, n.º 1, alíneas a) a j), do Estatuto da Câmara dos Solicitadores, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 88/2003, de 26 de abril, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, de 20 de novembro.
Lisboa, 18 de janeiro de 2012. – João Cura Mariano – Ana Maria Guerra Martins – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – J. Cunha Barbosa – Maria João Antunes – Gil Galvão – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido em parte, pois declararia a ilegalidade das normas impugnadas com fundamento na violação da lei de autorização. – Carlos Fernandes Cadilha (vencido conforme declaração em anexo) – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido por considerar que a integração no Estatuto da Câmara dos Solicitadores de um órgão independente e com uma composição difusa, destinado a intervir na regulação da atividade dos agentes de execução (caracterizados como operadores judiciários com uma competência própria distinta da dos solicitadores, ainda que estes possam aceder a essa atividade desde que legalmente habilitados) viola o princípio da especificidade que decorre do artigo 267º, n.º 4, da Constituição.
De facto, quando esse preceito estipula que as associações públicas «só podem ser constituídas para a satisfação de necessidades específicas», aponta não somente para um princípio de excecionalidade ou necessidade, mas também para um princípio de especificidade, que tem subjacente a ideia de que a criação de associações públicas não é livre, devendo ela ser necessária para assegurar uma finalidade pública caracterizada, em regra associada à autorregulação profissional e à defesa de interesses coletivos atinentes a uma dada categoria de pessoas. Por isso se entende que a associação pública não pode ser utilizada para realizar fins múltiplos ou satisfazer interesses genéricos ou de caráter muito amplo ou insuficientemente preciso.
No caso vertente, o legislador pretendeu regular uma nova atividade profissional (que tanto pode ser exercida por advogados como por solicitadores) através da criação de um novo órgão (Comissão para a Eficácia das Execuções), que ainda que seja tido formalmente como um órgão da Câmara dos Solicitadores (artigo 69º-B do Estatuto), não integra materialmente a estrutura orgânica da Câmara, cujos membros não representam os solicitadores nem são por eles eleitos, e que não tem já por função a regulação ou a realização de interesses sócio profissionais do solicitadores.
Ainda que a intervenção desse órgão não ponha em causa o autogoverno da Câmara dos Solicitadores, que mantém os seus órgãos de gestão tradicionais, o certo é que esta entidade, enquanto associação pública representativa dos solicitadores, é utilizada para o exercício de um função que, ainda que seja de interesse público, escapa às atribuições e aos fins específicos para que foi instituída, com uma clara implicação no princípio da especificidade.
Por outro lado, não é válido o argumento de que o Tribunal Constitucional, estando limitado pelo objeto do pedido de fiscalização de constitucionalidade - que incidiu apenas sobre as normas que definem a composição da Comissão para a Eficácia das Execuções -, não poderia averiguar a constitucionalidade da inserção de um órgão dessa natureza na estrutura da Câmara dos Solicitadores. De facto, o pedido, reportando-se apenas à norma do artigo 69º-D do Estatuto dos Solicitadores, na nova redação dada pelo Decreto-Lei n.º 226/2008, tem pressuposta a existência de um novo órgão, que foi criado por esse diploma para passar a integrar a estrutura organizativa da associação pública, e o Acórdão não deixa de analisar a questão de constitucionalidade suscitada à luz de diversos outros dispositivos que caracterizam o órgão em causa, designadamente quando se reporta à norma do artigo 69º-B para dela extrair argumentos destinados a afastar a alegada violação do princípio da democracia interna.
Ora, o Tribunal não está impedido de declarar a inconstitucionalidade de normas com fundamentação diversa daquela que foi invocada pelo requerente (artigo 51º, n.º 5, da Lei do Tribunal Constitucional), e não podendo dissociar-se o objeto do processo da alteração legislativa que implicou a modificação da estrutura orgânica da Câmara dos Solicitadores, através da criação de um novo órgão interno – visto que o pedido incide sobre a composição desse órgão -, nada obstava a que se apreciasse e decidisse no sentido da inconstitucionalidade por violação do princípio da especificidade, ainda que este vício não tivesse sido alegado.- Carlos Fernandes Cadilha.