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Processo n.º 409/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Ponta Delgada julgou improcedente a impugnação deduzida por A., SA, ora recorrente, contra os atos de liquidação adicional de IRC, e respetivos juros compensatórios, relativos aos anos de 2003, 2004 e 2005, praticados em execução de Decisão da Comissão Europeia que declarou incompatível com o mercado comum a parte do regime fiscal que, adaptando o sistema fiscal nacional às especificidades da Região Autónoma dos Açores, reduziu as taxas do imposto sobre o rendimento (Decisão n.º 2003/442/CE de 11 de dezembro de 2002),
O impugnante recorreu desta sentença para o Supremo Tribunal Administrativo, que, por acórdão de 22 de março de 2011, concedeu parcial provimento ao recurso, julgando a impugnação procedente quanto aos juros compensatórios, por não devidos, e confirmando-a no mais, ainda que com diferente fundamentação.
O A. recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), requerendo:
«a) Seja reconhecida e declarada a inconstitucionalidade do disposto nos artigos 2.º e 3.º da Decisão da Comissão Europeia C (2002) 4487 «Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, e consequentes atos de liquidação de IRC, por violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, nomeadamente dos princípios da legalidade fiscal, da não rectroactividade das leis fiscais, da segurança jurídica e da confiança legítima dos cidadãos, constantes dos artigos 103.º, n.º 2 e n.º 3, e 2.º, ambos da CRP;
b) Seja, consequentemente, julgada inaplicável na ordem jurídica interna o disposto nos artigos 2.º e 3.º da Decisão da Comissão Europeia C (2002) 4487 «Auxílio Estatal C 35/2001 (EX NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 4, da CRP, por violação dos referidos princípios fundamentais do Estado de direito democrático; Ou
c) Subsidiariamente, seja declarada inconstitucional a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Administrativo ao n.º 2 do artigo 3.º da Decisão da Comissão Europeia C (2002) 4487 «Auxílio Estatal C 35/2001 (EX NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, no sentido em que considerou que esta Decisão, na parte em que determina a recuperação dos referidos auxílios, pode ser executada pelo Estado Português mediante simples atos de liquidação adicional de IRC, sem que tivesse sido previamente, de acordo com as formalidades do nosso direito constitucional, emitido ato legislativo que sustentasse essas liquidações adicionais, por violação do disposto nos números 2 e 3 do artigo 103.º e do disposto no artigo 2.º, todos da CRP.
2. O recurso foi admitido e prosseguiu para alegações, apenas tendo alegado o recorrente.
Após alegações, o relator proferiu despacho a ouvir as partes sobre a hipótese de não dever conhecer-se do recurso por razões similares às explicitadas no Acórdão n.º 588/2011, proferido num caso em que igualmente era impugnante o A. e que só diverge do presente por respeitar a diferente período tributário.
O recorrente respondeu nos seguintes termos:
«29. Em síntese, a ora Recorrente vem manifestar a sua oposição à hipótese levantada no despacho proferido pelo Exmo. Juiz Conselheiro Relator proferido em 16.12.2012, pelos seguintes motivos,
i. O presente recurso é o único meio processual de que o Recorrente dispõe para submeter ao Tribunal Constitucional a fiscalização concreta da constitucionalidade da Decisão da Comissão Europeia (2002) 4487 «Auxilio Estatal C 35/2002 (Ex NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, nos termos do disposto no número 4 do artigo 8º da CRP, pelo que, caso o mesmo não seja apreciado, estaremos perante uma clara violação do direito à jurisdição efetiva;
ii Ao contrário do que se encontra referido no acórdão n.º 588/11, o Tribunal recorrido apreciou e (des)aplicou efetivamente a Decisão da Comissão Europeia aqui em apreço, como resulta inequívoco do facto de ter considerado ilegais as liquidações de juros emitidas em execução da mesma, pelo que, não vislumbramos que o conhecimento do recurso possa ser inútil, porquanto, a inconstitucionalidade da Decisão comunitária implicará necessariamente a ilegalidade das liquidações do imposto emitidas ao seu abrigo, produzindo os mesmos efeitos da ilegalidade das liquidações dos juros (que também resultaram da execução da Decisão comunitária - vide fundamentação da Administração tributária e segunda parte do número 2 do artigo 3° da Decisão), conforme decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo;
iii. Subsidiariamente, foi ainda alegada a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 3º da Decisão pelo Supremo Tribunal Administrativo, no sentido em que este julgou aquela norma corretamente executada através da emissão de meros atos de liquidação, com prejuízo do princípio da legalidade fiscal ínsito no artigo 103º da CRP, em função da atual vigência (e abrangência) no nosso ordenamento jurídico do disposto no artigo 50 do Decreto Legislativo Regional n.º 2/99/A;
30. Terminamos citando o Prof. Paulo Otero, quando relembra que, a este respeito, só nos resta confiar no poder judicial, exercido pelos tribunais portugueses, que, aproveitando a cláusula de salvaguarda da nossa soberania, expressa na exigência de respeito pelo Direito da União Europeia dos princípios fundamentais do Estado de Direito democrático (artigo 8.º, n.º 4), exerça uma função de controlo da validade do Direito da União Europeia que forem chamados a aplicar no respeito pelo princípio democrático, pelo princípio do Estado de Direito e pelo princípio do Estado Social reside hoje o núcleo axiológico da soberania portuguesa insuscetível de derrogação pelo Direito da União Europeia aplicável em Portugal - aqui se encontra o cerne da identidade axiológica da Constituição de 1976. expressando o mínimo da soberania portuguesa, face à Constituição material da União Europeia.” (Paulo Otero, Direito Constitucional Português, Volume 1, pág. n.º 137).
Pelos motivos expostos, reitera-se todo o teor do requerimento de recurso apresentado e já admitido (que pelo Supremo Tribunal Administrativo quer pelo Tribunal Constitucional), pugnando-se para que o mesmo seja efetivamente apreciado e conhecido pelo Tribunal Constitucional e em consequência:
a) Seja reconhecida e declarada a Inconstitucionalidade do disposto nos artigos 2º e 3º da Decisão da Comissão Europeia C(2002) 4487 “Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, e consequentes atos de liquidação de IRC por violação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, nomeadamente dos princípios da legalidade fiscal, da não retroatividade das leis fiscais, da segurança jurídica e da confiança legitima dos cidadãos, constantes dos artigos 103º, n.º 2 e nº 3, e 2º, ambos da CRP;
b) Seja, consequentemente, julgada inaplicável na ordem jurídica interna o disposto nos artigos 2º e 3º da Decisão da Comissão Europeia C(2002) 4487 .Auxilio Estatal C 35/2002 (Ex NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, nos termos do disposto no artigo 8º n.º4, da CRP, violação dos referidos princípios fundamentais do Estado de direito democrático
Ou,
c) Subsidiariamente, seja declarada inconstitucional a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Administrativo ao n.º 2 do artigo 3º da Decisão da Comissão Europeia C(2002) 4487 “Auxílio Estatal C 35/2002 (EX NN 10/2000), de 11 de dezembro de 2002, no sentido em que considerou que esta Decisão, na parte em que determina a recuperação dos referidos auxilias, pode ser executada pelo Estado Português mediante simples atos de liquidação adicional de IRC, sem que tivesse sido previamente, de acordo com as formalidades do nosso direito constitucional, emitido ato legislativo competente nos termos da CRP que legitimasse essas liquidações adicionais, por violação do disposto nos números 2 e 3 do artigo 103º e do disposto no artigo 2°, todos da CRP.»
II. Fundamentos
4. O conhecimento de mérito do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC pressupõe que a decisão recorrida tenha adotado como ratio decidendi a norma ou interpretação normativa cuja inconstitucionalidade o recorrente submete a apreciação do Tribunal Constitucional, pois que só nos casos em que se questiona a constitucionalidade do fundamento normativo da decisão opera, em caso de procedência do recurso, modificação de julgado.
Ora, em primeiro lugar, o recorrente pretende que o Tribunal aprecie a conformidade aos “princípios fundamentais do Estado de direito democrático” (artigo 8.º, n.º 4, da CRP) dos artigos 2.º e 3.º da Decisão da Comissão Europeia, de 11 de dezembro de 2002 (Decisão n.º 2003/442/CE). Desde logo e independentemente de saber se e com que alcance compete ao Tribunal Constitucional proceder ao controlo de compatibilidade do direito da União Europeia com a Constituição da República Portuguesa, em nenhuma hipótese tais disposições da referida Decisão poderiam caber nesse âmbito de fiscalização. Efetivamente, a competência do Tribunal só poderia respeitar a normas e no caso não se trata de disposições normativas de direito derivado, mas de disposições inseridas num ato de natureza não normativa de que a República Portuguesa é destinatário, proferido pela Comissão ao abrigo das disposições de direito comunitário nela referenciadas (artigos 88.º, n.º 2, do Tratado que institui a Comunidade Europeia e 62.º, n.º 1, alínea a), do Acordo sobre o Espaço Económico Europeu) e do Regulamento (CE) nº 659/1999 do Conselho, de 22 de março de 1999 (artigos 1.º, 2.º, 3.º e 14.º).
De todo o modo, o acórdão recorrido, na parte em que julga o recurso improcedente, assenta na ideia fundamental, extraída do n.º 1 do artigo 154.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), de que os vícios de violação de lei assacados a meros atos de execução por efeito ou decorrência dos vícios de que originalmente padece o ato exequendo não são passíveis de conhecimento na impugnação deduzida contra aqueles primeiros, porquanto os atos de execução, desde que se contenham nos limites da estatuição contida no ato exequendo e não padeçam de vícios próprios, não têm autónoma virtualidade lesiva relativamente aos atos que executam.
Socorrendo-se de jurisprudência anterior também do Supremo Tribunal Administrativo, o acórdão recorrido considera que os atos de liquidação adicional impugnados não são mais do que atos de execução da referida decisão da Comissão, que qualifica como ato definitivo e executório e só sindicável perante os tribunais comunitários (Refira-se, a propósito, que a referida Decisão foi objeto de apreciação pelo acórdão do TJUE, de 6 de setembro de 2006, Proc. n.º C-88/03 em recurso instaurado pela República Portuguesa contra a Comissão das Comunidades Europeias e pelo acórdão de 10 de setembro 2009, do Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias, Proc. T-75/03). O acórdão entende que os vícios que o impugnante alega respeitam à Decisão executada, que qualificara o desagravamento fiscal decorrente da legislação de que o recorrente beneficiara como “auxílio de Estado” não autorizado e determinara a sua recuperação, pelo que não conhece deles por não serem vícios próprios dos atos impugnados.
Assim, as razões essenciais de decidir quanto à não anulação do montante de imposto situam-se a montante da questão de direito substantivo suscitada pela recorrente – porque atinentes às condições prévias de recorribilidade contenciosa dos concretos atos tributários sob recurso – e não foram questionadas na perspetiva da sua constitucionalidade, sendo claramente outro o objeto normativo sobre que recaíram as suspeitas de inconstitucionalidade que a recorrente invocou no recurso interposto junto do Supremo Tribunal Administrativo e agora renova no presente recurso de constitucionalidade.
Deste modo, como se disse no Acórdão n.º 588/2011, não tendo a decisão do presente recurso a virtualidade de, em caso de procedência da questão de constitucionalidade, inverter o sentido da decisão do caso, que se manteria incólume no que respeita ao juízo de irrecorribilidade – ou de inimpugnabilidade parcial – dos atos tributários impugnados, atenta a sua mera natureza executiva/confirmativa, não se justifica, por inútil, conhecer do objeto do recurso. Para o acórdão recorrido, a Decisão é um precedente decisório fora do objeto da impugnação, não um parâmetro normativo de validade dos atos tributários impugnados. Assim, o que poderia utilmente discutir-se, na perspetiva da tutela judicial efetiva, seria a constitucionalidade das normas de que o acórdão retirou a limitação do âmbito da impugnabilidade das liquidações.
4. Contra esta conclusão não procede o argumento do recorrente no sentido de que o acórdão recorrido aceitou conhecer e recusou aplicação à Decisão da Comissão Europeia, tanto que julgou indevidos os juros compensatórios. Mesmo que pudesse afirmar-se que o decidido relativamente aos juros o acórdão se afastou da estatuição contida no ato comunitário, trata-se de questão autónoma e, aliás, decidida favoravelmente ao recorrente face às normas de direito ordinário interno. Ainda que, porventura, houvesse nisso alguma incoerência na apreciação de uma e outra questão, continua a ser verdadeiro que, no que respeitava aos aspetos discutidos da recuperação do “auxílio de Estado” emergente do desagravamento fiscal, o acórdão considerou que as liquidações impugnadas não têm lesividade própria.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condenar o recorrente nas custas, com 12 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.