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Proc. nº 372/94
Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O arguido A. - que, em 11 de Janeiro de 1989, foi
condenado na pena única de 18 anos de prisão, dos quais, entretanto, lhe foram
perdoados 2 anos e 3 meses (despacho de 10 de Julho de 1991) - interpôs recurso
do despacho do Juiz da comarca de Penacova (de 13 de Maio de 1994), que decidiu
não beneficiar ele 'de qualquer perdão no âmbito da Lei nº 15/94, de 11 de
Maio', alegando no recurso que o artigo 9º, nºs 2 e 3, desta Lei, em que o juiz
se baseou, viola os artigos 13º e 164º, alínea g), da Constituição.
A Relação de Coimbra, por acórdão de 13 de Julho de
1994, depois de ponderar que se não verifica a invocada inconstitucionalidade,
julgou o recurso improcedente.
2. É deste acórdão da Relação (de 13 de Julho de 1994)
que vem interposto o presente recurso pelo arguido, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, o recorrente concluiu as suas alegações
do modo seguinte:
a). Segundo o art. 13º da Constituição da República, todos os cidadãos têm a
mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
b). E a al. g) do art. 164º da mesma Constituição determina, além do mais, que
'compete' à Assembleia da República conceder perdões genéricos.
c). O artigo 8º da Lei nº 15/94 (Lei da Amnistia) concedeu, na verdade um perdão
genérico.
d). Mas, o nº 2 e 3 do art. 9º desta mesma Lei nº 15/94, veio restringir a
aplicação daquele perdão genérico, a algum dos cidadãos, nomeadamente ao ora
recorrente.
e). E tal restrição ofende estes comandos consagrados naqueles nº 2 e 3 do art.
9º, al g) do art. 164º e o nº 1 do art. 13º ambos da Constituição da República.
f). Logo, o nº 2 e 3 do art. 9º da Lei nº 15/94, na medida em que restringe a
aplicação do art. 8º da mesma Lei, têm de se considerar inconstitucionais.
g). E em consequência, aplicar-se o perdão, previsto no art. 8º da Lei nº 15/94,
ao suplicante.
O Procurador-Geral Adjunto, por sua parte, concluiu como
segue:
1º - A norma da alínea d) do nº 3 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio
(Amnistia diversas infracções e outras medidas de clemência), não viola qualquer
norma ou princípio constitucional, designadamente, a alínea g) do artigo 164º,
ou o princípio da igualdade, consagrado no nº 1 do artigo 13º, ambos da
Constituição.
2º - Deve, em consequência, negar-se provimento ao recurso e confirmar-se a
decisão recorrida, na parte impugnada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma que se
contém na alínea d) do nº 3 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio, é ou
não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. O objecto do recurso:
O artigo 9º, nºs 2 e 3, da Lei nº 15/94, de 11 de Maio,
preceituam como segue:
Artigo 9º
2 - Não beneficiam da amnistia nem do perdão decretados na presente lei:
a) Os deliquentes habituais ou por tendência ou alcoólicos habituais e
equiparados;
b) Os membros das forças policiais e de segurança ou funcionários e guardas dos
serviços prisionais relativamente à prática, no exercício das suas funções, de
delitos que constituam violação de direitos, liberdades ou garantias pessoais
dos cidadãos, independentemente da pena;
c) Os transgressores ao Código da Estrada e seu Regulamento, quando tenham
praticado a infracção sob a influência do álcool, ou com abandono de sinistrado,
independentemente da pena.
3 - Não beneficiam do perdão previsto no artigo anterior:
a) Os condenados pela prática de crimes contra a economia ou fiscais, de burla
ou abuso de confiança, quando cometidos através de falsificação de documentos;
b) Os condenados pela prática dos crimes previstos no artigo 37º do Decreto-Lei
nº 28/84, de 20 de Janeiro, quando os subsídios, subvenções ou créditos sejam
provenientes de fundos comunitários ou da respectiva contrapartida nacional;
c) Os condenados em pena de prisão superior a três anos pela prática de crimes
sexuais de que tenham sido vítimas menores de 12 anos;
d) Os condenados pela prática de crimes contra as pessoas a pena de prisão
superior a 10 anos, que já tenha sido reduzida por perdão anterior;
e) Os condenados a pena de prisão superior a sete anos pela prática de crime de
tráfico de estupefacientes.
Do artigo 9º, parcialmente acabado de transcrever,
apenas constitui objecto do recurso a norma constante da alínea d) do nº 3 -
como já atrás se deixou assinalado -, uma vez que só ela foi aplicada pelo
acórdão recorrido.
Na verdade, o perdão concedido pela mencionada Lei nº
15/94 não foi aplicado ao recorrente pelo facto de ele ter sido condenado em
pena superior a 10 anos pela prática de crimes contra as pessoas (rapto de
menor, atentado ao pudor com violência e homicídio) e ter já beneficiado do
perdão concedido pela Lei nº 23/91, de 4 de Julho, como tudo bem resulta do
acórdão recorrido, que transcreve a referida alínea d) do nº 3 do artigo 9º.
5. A questão da constitucionalidade da norma que se
contém na alínea d) do nº 3 do artigo 9º da Lei nº 15/94, de 11 de Maio:
A norma sub iudicio exclui do número dos beneficiários
do perdão concedido pela alínea d) do nº 1 do artigo 8º da Lei (perdão de 'um
oitavo ou um ano e seis meses das penas de prisão de oito ou mais anos,
consoante resulte mais favorável ao condenado') 'os condenados pela prática de
crimes contra as pessoas a pena de prisão superior a 10 anos, que já tenha sido
reduzida por perdão anterior'.
É, assim, uma norma que reveste carácter geral e
abstracto, pois que, ao definir o âmbito da exclusão do perdão, concedido pela
alínea d) do nº 1 do artigo 8º, faz apelo à espécie de pena aplicada, ao tipo de
crime por que os arguidos foram condenados e ao facto de eles já terem
beneficiado de perdão anterior; e, por outro lado, ela aplica-se a todos os
arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número
indeterminado.
A norma sub iudicio consagra, pois, uma excepção geral
ao perdão genérico concedido pelo artigo 8º, nº 1, alínea d) [sobre o conceito
de perdão genérico e sua distinção da amnistia, do indulto e da comutação de
penas, vide: J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA (Constituição da República
Portuguesa Anotada, 3ª edição, Coimbra, 1993, página 650); FIGUEIREDO DIAS
(Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, 1993,
páginas 688 e seguintes); MAIA GONÇALVES ('As medidas de graça no Código Penal e
no Projecto de Revisão', in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 4, 1,
1994, páginas 8 e seguintes). E, especificamente sobre a amnistia, JOSÉ DE SOUSA
E BRITO ('Sobre a Amnistia', in Revista Jurídica, nº 6, 1986, páginas 15 e
seguintes)].
Tal norma não viola, por isso, o artigo 164º, alínea g),
da Constituição, que prescreve competir à Assembleia da República 'conceder
amnistias e perdões genéricos'.
A norma em causa também não viola o princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
A ideia de igualdade, com efeito, só recusa o arbítrio,
as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis.
Ora, a dita norma, de um lado, trata por igual todos os
que se encontram nas mesmas condições; e, de outro, a distinção que estabelece
entre os que já beneficiaram de um perdão anterior (aos quais, agora, o recusa)
e os restantes condenados, inclusive aqueles que, havendo sofrido o mesmo tipo
de punição, não tenham sido objecto de perdão (aos quais ele é agora concedido)
assenta num critério objectivo e materialmente fundado.
Do que se trata, com efeito, é de evitar que, pela
aplicação de sucessivos perdões, as penas aplicadas por crimes graves acabem por
ficar esvaziadas do seu sentido punitivo.
É que, tal sucedendo, essas penas deixariam de cumprir a
função de castigar em razão da culpa, do grau de ilicitude e das exigências de
prevenção de futuros crimes. E, com isso, provocar-se-ia o amolecimento ósseo do
sistema penal; e, com ele, a perda do sentido da gravidade dos comportamentos
que violam bens jurídicos tão importantes como a vida e a liberdade humanas - o
que abalaria os fundamentos da sociedade democrática e livre, própria de um
Estado de direito. Numa sociedade assim, a pessoa, na sua eminente dignidade de
ser livre e responsável, deve ser o gonzo em torno do qual devem girar as
instituições e à volta de quem se deve organizar o poder, maxime o poder de
punir. É por isso mesmo necessário que o Estado a proteja eficazmente no seu
direito de viver com liberdade e segurança, sem consentir que estes valores
percam a sua força irradiante.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o
acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 1995
Messias Bento
José de Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
José Manuel Cardoso da Costa