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Processo: n.º 138/93.
Recorrente: Ministério Público.
Relator: Conselheiro Messias Bento.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — A. interpôs recurso contencioso de anulação do despacho da Comissão
Instaladora do Centro Regional de Segurança Social de Lisboa, de 28 de Maio de
1991 (praticado ao abrigo de subdelegação de competência do Secretário de Estado
da Segurança Social), que indeferiu a reclamação por si apresentada contra a
lista de transição para o sistema retributivo fixado pela Portaria n.º 100/91,
de 4 de Fevereiro — portaria que, em seu entender, padece de
inconstitucionalidade.
Por sentença de 28 de Dezembro de 1992, o Juiz do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa anulou o acto impugnado, com fundamento em violação de lei,
decorrente da inconstitucionalidade da Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro.
2 — O Ministério Público interpôs, então, recurso da sentença para este
Tribunal, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, com vista à apreciação da constitucionalidade da Portaria n.º
100/91, de 4 de Fevereiro.
Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto concluiu as suas alegações do modo
que segue:
1.º A Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, que actualiza as remunerações
dos trabalhadores abrangidos pela Portaria n.º 193/79, de 21 de Abril, não
enferma de inconstitucionalidade, designadamente por violação dos artigos 115.º,
n.os 5, 6 e 7, e 56.º, n.º 2, alínea a), da Constituição.
2.º Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso, determinando-se
a reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
De sua parte, a recorrida A. formulou as seguintes conclusões:
1.ª Atenta a Lei Fundamental — e face ao disposto no n.º 4 do artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção dada pelo Decreto-Lei
n.º 887/76, de 29 de Dezembro —, o Governo, em 1991, e no tocante às matérias
reguladas na Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, poderia introduzir
novidade, no domínio do regime jurídico da regulamentação colectiva de trabalho
para os trabalhadores das instituições de Previdência, mas, conquanto
utilizasse, no exercício do seu poder regulamentar, a forma mais solene dos
regulamentos: o decreto regulamentar — próprio para os regulamentos
independentes (n.º 6 do artigo 115.º da Lei Fundamental) —; nunca, como o fez,
através de uma portaria: a Portaria n.º 100/91, acima citada, que não tem
idoneidade, do ponto de vista constitucional, para funcionar como regulamento
independente.
2.ª Por força da conclusão anterior, a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro,
ao introduzir novidade no regime jurídico da regulamentação colectiva de
trabalho para os trabalhadores das instituições de previdência, abrangidos pela
Portaria n.º 193/79, de 21 de Abril — o que sucede, v. g., em matéria de
promoções, carreiras, regime de transição para a nova estrutura salarial, etc.
—, comporta-se, materialmente, como um regulamento independente, que não
reveste, contudo, a forma de um decreto regulamentar, pelo que padece de
inconstitucionalidade formal (por violação do artigo 115.º, n.º 6, da
Constituição da República);
3.ª A Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, aludindo, embora, ao Decreto
Regulamentar n.º 68/77, de 17 de Outubro, não indica, expressamente, como o
exige o artigo 115.º, n.º 7, da Constituição da República, qual a lei — a lei
habilitante — que visa regulamentar — e que, no caso, seria o artigo 1.º, n.º 4,
do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção que lhe foi
concedida pelo Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro —, o que determina que
a mesma padeça de inconstitucionalidade formal.
Termos em que, nos melhores de direito, e com o mui douto suprimento de vossas
Excelências, deve ser julgado improcedente o presente recurso; e, em
consequência, mantida a douta decisão recorrida.
3 — Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber se a Portaria n.º
100/91, de 4 de Fevereiro, é (ou não) inconstitucional.
II — Fundamentos
4 — A génese da Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro:
O Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, veio regular as relações
colectivas de trabalho dos trabalhadores das instituições de previdência social,
prescrevendo, no n.º 4 do artigo 1.º, que «as instituições de previdência social
ficarão submetidas às normas deste diploma, sem prejuízo das alterações que lhe
vierem a ser introduzidas em decretos regulamentares a publicar pelos
Ministérios do Trabalho e dos Assuntos Sociais».
Este Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, foi alterado, sucessivamente,
pelos Decretos-Leis n.os 887/76, de 29 de Dezembro, e 353-G/77, de 29 de Agosto,
acabando por ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 519-C1/79, de 29 de Dezembro
(cfr. artigo 45.º, n.º 3), que é o diploma que, posteriormente, passou a regular
a matéria (cfr. artigos 1.º e 2.º).
Após as alterações introduzidas pelo citado Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de
Dezembro, o já referido n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28
de Fevereiro, passou a dispor como segue:
4 — O regime jurídico da regulamentação colectiva de trabalho para os
trabalhadores das instituições de previdência será objecto de diploma específico
dos Ministérios da Administração Interna, das Finanças, do Trabalho e dos
Assuntos Sociais. (Cfr., identicamente, o n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei
n.º 519-C1/79, de 29 de Dezembro).
Ao abrigo do n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro
(redacção do Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro), foi justamente editado
(pela Presidência do Conselho de Ministros e pelos Ministérios das Finanças, do
Trabalho e dos Assuntos Sociais) o Decreto Regulamentar n.º 68/77, de 17 de
Outubro, cujo artigo 1.º prescreve:
Artigo 1.º
A regulamentação de trabalho dos trabalhadores das instituições de previdência
social será fixada por portaria conjunta dos Ministros das Finanças, do
Trabalho, dos Assuntos Sociais e da Secretaria de Estado da Administração
Pública.
Em cumprimento e ao abrigo do disposto no Decreto Regulamentar n.º 68/77, de 17
de Outubro, foi editada (pela Presidência do Conselho de Ministros e pelos
Ministérios das Finanças, do Trabalho e dos Assuntos Sociais) a Portaria n.º
38-A/78, de 19 de Janeiro, que «actualiza os vencimentos e a definição das
principais regras respeitantes às carreiras e à reestruturação das profissões
dos funcionários das instituições de previdência social».
Posteriormente — e também em cumprimento do mesmo Decreto Regulamentar n.º
68/77, de 17 de Outubro —, foi publicada (pelos Secretários de Estado da
Administração Pública, do Orçamento, do Trabalho e da Segurança Social) a
Portaria n.º 193/79, de 21 de Abril, que, «actualizando as condições de trabalho
dos trabalhadores das instituições de previdência, se traduz já numa
aproximação, muito importante, ao regime de trabalho da função pública».
Esta Portaria foi, posteriormente, alterada pelas Portarias n.os 38-A/80, de 12
de Fevereiro, 600/80, de 12 de Setembro, 820/89, de 15 de Setembro, e 703/81, de
17 de Agosto.
Mais tarde, a Portaria n.º 576/79, de 2 de Novembro (editada também em
cumprimento do Decreto Regulamentar n.º 68/77 pela Presidência do Conselho de
Ministros e pelos Ministérios das Finanças, dos Assuntos Sociais e do Trabalho),
veio regulamentar o trabalho do pessoal técnico de construção e conservação de
edifícios ao serviço de instituições de previdência. A Portaria n.º 962/89, de
31 de Outubro (editada pelos Ministérios das Finanças e do Emprego e da
Segurança Social), actualizou os vencimentos (para o ano de 1989) dos
trabalhadores das instituições de previdência. A Portaria n.º 974/80, de 13 de
Novembro (editada pela Presidência do Conselho de Ministros e pelos Ministérios
das Finanças e do Plano, e do Trabalho e dos Assuntos Sociais) reestruturou as
carreiras do pessoal de informática do sector da segurança social. Finalmente,
a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro (editada também «ao abrigo do Decreto
Regulamentar n.º 68/77, de 17 de Outubro») veio fazer a integração «do pessoal
abrangido pela Portaria n.º 193/79, de 21 de Abril, no novo sistema retributivo
da função pública», actualizar as respectivas remunerações e dispor sobre
promoções, carreiras e regime de transição para o novo sistema retributivo.
Procede ela dos Ministérios das Finanças e do Emprego e da Segurança Social e
foi emitida depois de «ouvidas as organizações sindicais do sector».
5 — A questão da constitucionalidade da Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro:
5.1 — A sentença recorrida, como se disse já, concluiu pela
inconstitucionalidade (formal) da Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro. E
fê-lo, por entender que, sendo ela um regulamento independente, pois que contém
«um regime normativo novo, balizado só por uma norma legal atributiva de
competência objectiva e subjectiva» [no caso, pela norma do n.º 4 do artigo 1.º
do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção do Decreto-Lei n.º
887/76, de 29 de Dezembro], tinha que revestir a forma de decreto regulamentar,
e não a de portaria.
O raciocínio desenvolvido na sentença é, esquematicamente, o seguinte:
a) O artigo 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro
(redacção inicial), ao dispor que «as instituições de previdência social ficarão
submetidas às normas deste diploma, sem prejuízo das alterações que lhe vierem a
ser introduzidas em decretos regulamentares […]» — ou seja: ao prescindir «de
regular totalmente a matéria seu objecto, permitindo que um regulamento, sem
integrar a lei, a modifique» — terá procedido àquilo que a Doutrina qualifica de
remissão ou reenvio normativo;
b) O mesmo artigo 1.º, n.º 4 (agora, na redacção do Decreto-Lei n.º
887/76, de 29 de Dezembro), ao dispor que «o regime jurídico da regulamentação
colectiva de trabalho para os trabalhadores das instituições de previdência será
objecto de diploma específico […]» — ou seja: ao preceituar que «aquilo que
até agora era regulado por lei (ainda que podendo ser alterado por regulamento),
deixa de todo de ser tratado por lei, e passa a reger-se só por regulamento» —
procede àquilo que a Doutrina denomina por deslegalização: «a lei habilitadora,
sem regular a matéria, nem no todo, nem em parte, abre ao regulamento essa
regulação, degradando o grau hierárquico normativo relativamente a essa
matéria»;
c) É, neste quadro de deslegalização, que surge o Decreto Regulamentar
n.º 68/77, de 17 de Outubro, editado «ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo
1.º do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 4 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada
pelo artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro». Trata-se de um
regulamento independente, pois que «não constitui o simples desenvolvimento ou
aplicação de lei anterior, não regulamenta o conteúdo dela, mas estabelece, ele
mesmo, originariamente, o regime das relações que constituem o seu objecto
normativo», como, aliás, não podia deixar de ser, uma vez que aquele artigo 1.º,
n.º 4, do Decreto-Lei n.º 164-A/76 (redacção do Decreto-Lei n.º 887/76) «nada
estatuía no tocante àquela regulamentação»;
d) Este Decreto Regulamentar n.º 68/77, de 17 de Outubro, em vez de
regular, ele próprio, o regime das relações de trabalho nas instituições de
previdência social, como podia fazer (de facto, os regulamentos independentes
são admitidos pela Constituição e há lei habilitante que define a competência
objectiva — que é aquele regime jurídico —, e, bem assim, a competência
subjectiva — que é atribuída aos Ministérios da Administração Interna, das
Finanças, do Trabalho e dos Assuntos Sociais), em vez disso, remeteu a fixação
daquele regime jurídico para uma portaria conjunta. E é assim que surgem, entre
outras, as Portarias n.os 38-A/78, 193/79 e 100/91, que, por isso, são, elas
também, regulamentos independentes;
e) Ora — já se disse — os regulamentos independentes têm que assumir a
forma de decreto regulamentar, não podendo apresentar-se sob a forma de
portaria.
5.2 — Diferentemente, o Procurador-Geral Adjunto em exercício neste Tribunal
concluiu que a Portaria aqui sub iudicio não é inconstitucional: aceitando o
enquadramento doutrinal feito pela sentença, entende, no entanto, que nela se
não aprofundou «suficientemente a análise dos efeitos da deslegalização» e se
omitiu «o facto — e respectivas implicações — de o artigo 115.º da Constituição
apenas ter sido introduzido pela revisão de 1982».
Argumenta, dizendo em síntese:
a) O artigo 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro
(na redacção do Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro), ao remeter para
diploma específico a regulamentação colectiva de trabalho nas instituições de
previdência social, deslegalizou tal matéria — o que, constitucionalmente, podia
fazer, uma vez que «não havia obstáculo legal à utilização desta técnica
legislativa, pois não se ultrapassaram os limites da deslegalização traduzidos
na existência de reserva natural de lei»;
b) Deslegalizada a matéria em causa, passou ela a poder ser regulada (e
alterada) por via regulamentar — o que veio a suceder com a edição, primeiro, do
Decreto Regulamentar n.º 68/77, de 17 de Outubro, e, depois [utilizando, a
abertura (o reenvio) constante do seu artigo 1.º], pelas Portarias n.os 38-A/78,
de 19 de Janeiro, 193/79, de 21 de Abril, e 100/91, de 4 de Fevereiro, entre
outras;
c) Todos estes regulamentos — que são regulamentos independentes, uma
vez que a respectiva «lei habilitante (no caso, o citado n.º 4 do artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção do Decreto-Lei n.º
887/76, de 29 de Dezembro) se limita a definir a competência subjectiva e
objectiva para a sua emissão» —, são anteriores à revisão constitucional de
1982, com excepção da Portaria n.º 100/91, aqui sub iudicio, que lhe é
posterior;
d) O n.º 6 do artigo 115.º da Constituição (introduzido pela revisão
constitucional de 1982) dispõe, é certo, que «os regulamentos do Governo
revestem a forma de decreto regulamentar […] no caso de regulamentos
independentes».
Apesar disso, porém, a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, não viola este
normativo constitucional: é que, sendo válidas as Portarias n.os 38-A/78 e
193/79 (em virtude de, como se disse, serem anteriores a essa exigência
constitucional) e «tendo a regulação da matéria atinente ao regime
jurídico-laboral dos trabalhadores da previdência social sido rebaixada para o
nível regulamentar» (em consequência da apontada deslegalização, operada pelo
n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 164-A/76, na redacção do Decreto-Lei n.º
887/76) «são igualmente válidos os actos regulamentares que, mesmo após a
entrada em vigor da revisão Constitucional de 1982, modificaram (interpretaram,
integraram, suspenderam ou revogaram) os preceitos daquelas portarias. Isto é,
se antes da revisão constitucional de 1982, determinada matéria é validamente
regulada por actos regulamentares, nenhum vício de ilegalidade ou de
inconstitucionalidade se comete se, mesmo após a entrada em vigor daquela
revisão, tais regulamentos forem modificados (interpretados, integrados,
suspensos ou revogados) por actos igualmente regulamentares, isto é, por actos
com o mesmo nível hierárquico»;
e) A Portaria n.º 100/91 também não viola o n.º 5 do artigo 115.º da
Constituição, igualmente introduzido pela revisão de 1982 — que dispõe que
«nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a
actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar,
modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos» —, pois que este
n.º 5 «vale apenas para os actos legislativos e não proíbe a modificação de
actos de natureza regulamentar através de outros actos de natureza regulamentar»
(cfr. Acórdãos deste Tribunal n.os 303/85, 270/88, 389/89, publicados no Boletim
do Ministério da Justiça, n.os 360, suplemento, p. 826; 381, p. 267; e 387, p.
119; e n.º 458/89, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Janeiro
de 1990);
f) A Portaria n.º 100/91 também não viola o n.º 7 do artigo 115.º da
Constituição — que dispõe que «os regulamentos devem indicar expressamente as
leis que visam regulamentar ou que lhes definem a competência subjectiva e
objectiva para a sua emissão» —, uma vez que ela indica expressamente ter sido
emitida «ao abrigo do Decreto Regulamentar n.º 68/77, de 17 de Outubro», o qual,
por sua vez, invoca o «disposto no n.º 4 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
164-A/76, de 28 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1.º do
Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro»;
g) Por último, a Portaria n.º 100/91 também não viola o artigo 56.º,
n.º 2, alínea a), da Constituição — que dispõe que «constituem direitos das
associações sindicais: a) participar na elaboração da legislação do trabalho» —,
já que, como consta expressamente do respectivo preâmbulo, foram «ouvidas as
organizações sindicais do sector».
5.3 — Assinala-se, antes de mais, que não está aqui em causa a questão da
constitucionalidade do artigo 1.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 164-A/76, de 28 de
Fevereiro, quer na sua redacção originária, quer na que lhe foi introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 887/76, de 29 de Dezembro (designadamente, não há que ponderar
as implicações do n.º 5 do artigo 115.º da Constituição sobre tal preceito), nem
tão-pouco a questão da constitucionalidade do Decreto Regulamentar n.º 68/77, de
17 de Outubro. Em causa está tão-somente a Portaria n.º 100/91, de 4 de
Fevereiro.
Pois bem: entende-se, com o Ministério Público, e pelas razões acabadas de
indicar, que a mencionada Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, não viola os
n.os 5 e 7 do artigo 115.º, nem a alínea a) do n.º 2 do artigo 56.º, preceitos
ambos da Constituição.
Diferentemente daquele Magistrado, entende-se, no entanto, que a referida
Portaria n.º 100/91 viola o n.º 6 do artigo 115.º da Constituição.
Aceitando-se, como se aceita, que, se determinada matéria foi validamente
deslegalizada antes da revisão constitucional de 1982, ela pode, depois dessa
data, continuar a ser tratada por via regulamentar; e suposto que a matéria
versada pela Portaria n.º 100/91 podia, de facto, ser objecto de regulamento —
questão, esta última, que em direitas contas, se reconduz à da legitimidade
constitucional do mencionado artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 164-A/76 e à do
artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 68/77, e que aqui não está em causa — uma
coisa é certa. E é esta: esse regulamento tinha que revestir a forma de decreto
regulamentar, e não, como sucedeu, a de portaria.
A regularidade formal dos actos normativos, com efeito, rege-se sempre pelas
normas constitucionais que estiverem em vigor à data da respectiva formação e
que lhes digam respeito. E outro tanto se diz quanto às regras de competência
que igualmente digam respeito à formação dos actos.
Ora, o n.º 6 do artigo 115.º da Constituição dispõe que os regulamentos do
Governo, no caso de serem regulamentos independentes, devem revestir a forma de
decreto regulamentar, e tal norma achava-se em vigor aquando da edição daquela
Portaria.
Impunha-se, por isso, que, em vez de uma portaria, o Governo tivesse editado um
decreto regulamentar.
A circunstância de a dita Portaria n.º 100/91 ter vindo modificar portarias
anteriores, aliada ao facto de estas terem sido editadas de forma
constitucionalmente válida, não é, de per si, razão bastante para dispensar o
Governo de adoptar essa forma regulamentar mais solene (a forma de decreto
regulamentar). Tanto mais que, com tal exigência, o que a Constituição pretende
é passar a submeter os regulamentos do tipo do que está em causa (os
regulamentos independentes) a um regime mais exigente, sujeitando-os,
designadamente, a promulgação pelo Presidente da República [cfr. artigo 137.º,
alínea b), da Constituição].
Conclui-se assim que a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro, é
inconstitucional, por violar o artigo 115.º, n.º 6, da Constituição.
III — Decisão
Pelos fundamentos expostos:
a) julga-se inconstitucional — por violação do artigo 115.º, n.º 6, da
Constituição — a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro;
b) em consequência, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a
sentença recorrida.
Lisboa, 9 de Fevereiro de 1995. — Messias Bento — José de Sousa e Brito — Luís
Nunes de Almeida — Bravo Serra (com a declaração de que me sobram bastantes
dúvidas sobre se não será manifestamente excessivo exigir-se que revista a forma
de decreto regulamentar a um diploma como o dos autos, que se limita a efectuar
pequenas alterações a anteriores portarias, nas quais não introduziu,
manifestamente, normação nova) — Fernando Alves Correia [vencido. Seguiria, no
caso, a tese defendida pelo Ex.mo Procurador-Geral Adjunto (ponto 5.2. do
acórdão)] — Guilherme da Fonseca (vencido, conforme declaração de voto junta) —
José Manuel Cardoso da Costa (com dúvidas semelhantes à do Ex.mo Conselheiro
Bravo Serra, votei o acórdão).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, por entender, na linha do posicionamento do Ministério Público,
largamente referenciado no acórdão, que o recurso merecia provimento, pois devia
julgar-se conforme à Constituição a Portaria n.º 100/91, de 4 de Fevereiro.
É que, contrariamente à tese defendida, aliás com pouca convicção, no acórdão,
porquanto não se discute sequer a natureza de regulamento independente atribuída
implicitamente àquela Portaria, não me parece ter havido violação do artigo
115.º, n.º 6, da Constituição, gerando um mero vício de inconstitucionalidade
formal, pois que não se impunha que, in casu, em vez de uma portaria, o Governo
tivesse editado um decreto regulamentar, sujeito às exigências deste tipo de
acto normativo.
Partindo dos mesmos pressupostos do acórdão, ou seja, de que a matéria em causa
«foi validamente deslegalizada antes da revisão constitucional de 1982» e que,
por isso, «podia de facto, ser objecto de regulamento», e aceitando que se trata
de regulamento independente, não me parece que se possa chegar à conclusão
forçada do acórdão de uma exigência fortemente formal de edição de um decreto
regulamentar. Quando, como vinha acontecendo, e certamente tendo em conta o
Governo a disciplina do Decreto-Lei n.º 215/87, de 29 de Maio, sobre a produção
de normas regulamentares, a mesma matéria da regulamentação colectiva de
trabalho nas instituições de previdência social constava anteriormente de
portarias, pelo menos, as citadas no acórdão (a que acrescem as portarias
identificadas pelo Ministério Público).
Como, de forma impressiva, diz aquele Magistrado:
Isto é, se antes da revisão constitucional de 1982, determinada matéria é
validamente regulada por actos regulamentares, nenhum vício de ilegalidade ou de
inconstitucionalidade se comete se, mesmo após a entrada em vigor daquela
revisão, tais regulamentos forem modificados (interpretados, integrados,
suspensos ou revogados) por actos igualmente regulamentares, isto é, por actos
com o mesmo nível hierárquico. Foi o que aconteceu.
O acórdão presta, pois, «uma homenagem excessiva ao formalismo» (linguagem de
António Cândido de Oliveira, Direito das Autarquias Locais, Coimbra Editora, p.
294, a propósito da omissão de formalidades em regulamentos de assembleia
municipal). E esquece a nota típica dos regulamentos independentes que «é por
eles criarem disciplina ‘inicial’ de relações jurídicas e, em regra, com larga
margem de liberdade ou discricionaridade» (cfr. Jorge Manuel Coutinho de Abreu,
Sobre os Regulamentos Administrativos e o Princípio da Legalidade, Almedina, p.
83), nota que no caso presente se degrada, face à deslegalização da matéria,
sucessivamente tratada por via regulamentar, sendo que a tal disciplina
«inicial» de relações jurídicas não foi o tema da Portaria n.º 100/91, limitada,
como se reconhece no acórdão, a «modificar portarias anteriores», editadas de
forma constitucionalmente válida. — Guilherme da Fonseca.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 28 de Abril de 1995.