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Proc. nº 103/94
Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. O SECRETÁRIO ADJUNTO PARA A JUSTIÇA DE MACAU, por
despacho de 31 de Agosto de 1993 e precedendo proposta do TRIBUNAL SUPERIOR DE
JUSTIÇA DE MACAU, autorizou a contratação de M..., para exercer funções de
secretária pessoal do Presidente daquele Tribunal, bem como outras de carácter
técnico, tendo o respectivo contrato sido celebrado em 1 de Setembro de 1993,
atribuindo-se à interessada a categoria de técnica principal, 3º escalão, com o
nível remuneratório correspondente ao índice 490 da tabela.
Submetido o respectivo expediente à fiscalização do
Tribunal de Contas de Macau, o Juiz da Secção de Fiscalização Sucessiva (que
interveio em substituição do Juiz da Secção de Fiscalização Prévia, em virtude
de este se ter declarado impedido, por ser marido da interessada), recusou o
visto à referida contratação, por entender (tal como o Ministério Público) que a
interessada não possui capacidade para o exercício de funções públicas em Macau,
uma vez que é funcionária pública em Portugal na situação de licença sem
vencimento, pelo que está abrangida pela incapacidade do artigo 13º, nº 1,
alínea a), do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau
(aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro).
Desta decisão, interpuseram recurso (para o Colectivo do
Tribunal de Contas de Macau) o Director dos Serviços de Justiça de Macau e a
interessada.
Sem êxito, já que o Tribunal de Contas, por acórdão de
22 de Fevereiro de 1994, negou provimento aos recursos, confirmando a decisão de
recusa do visto à contratação.
Para o efeito, o Tribunal de Contas de Macau, ao
remeter-se para a fundamentação de um anterior acórdão seu, recusou aplicação,
com fundamento em inconstitucionalidade, ao artigo único do Decreto-Lei nº
5/93/M, de 8 de Fevereiro.
2. É deste acórdão do Tribunal de Contas de Macau (de 22
de Fevereiro de 1994) que vem o presente recurso, interposto pelo MINISTÉRIO
PÚBLICO ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal
Constitucional, para apreciação da constitucionalidade da norma constante do
mencionado artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro.
Neste Tribunal, alegou o Procurador-Geral Adjunto,
formulando as seguintes conclusões:
1º - O regime estabelecido no artigo único do Decreto‑Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, não inova no que se refere ao regime jurídico aplicável ao pessoal
dos quadros próprios do território de Macau, plasmado no Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau (aprovado pelo Decreto-Lei nº
87/89/M, de 21 de Dezembro, no exercício da autorização legislativa constante da
Lei nº 9/89/M, de 23 de Outubro).
2º - Na verdade, a norma constante daquele artigo único incide sobre um aspecto
específico da regulamentação do recrutamento de pessoal no exterior, revogando
parcialmente o nº 3 do artigo 1º do Decreto‑Lei nº60/92/M, de 24 de Agosto, ao
estabelecer que a capacidade profissional dos agentes recrutados no exterior não
tem de obedecer aos condicionalismos previstos no artigo 13º, nº 1, do Estatuto
dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau.
3º - O estabelecimento da disciplina jurídica do recrutamento de pessoal no
exterior, mediante densificação e regulamentação da norma constante do artigo
69º, nº 1, do Estatuto Orgânico de Macau, não se situa no âmbito da competência
legislativa reservada da Assembleia Legislativa de Macau, tendo, aliás, o
Decreto-Lei nº 60/92/M sido editado pelo Governador de Macau, no exercício da
sua competência legislativa própria.
4º - Assim sendo, o esgotamento e caducidade da autorização legislativa
concedida pela Lei nº 9/89/M não pode implicar a inconstitucionalidade orgânica
da norma constante do referido artigo único.
5º - A diferenciação de regimes decorrente do artigo único do Decreto-Lei nº
5/93/M não viola os princípios constitucionais da igualdade e da não
discriminação do acesso à função pública, por na sua base se encontrar um
fundamento razoável, que constitui suporte material bastante do regime
instituído quanto à capacidade profissional dos agentes recrutados no exterior.
6º - Tal diferenciação é consentida pelos artigos 68º a 70º do Estatuto Orgânico
de Macau, que instituem uma diversidade de regimes e uma tendencial
estanquicidade entre os quadros do funcionalismo próprios do território e os
quadros dependentes dos órgãos de soberania e das autarquias da República.
7º - O recrutamento de pessoal no exterior, nos termos do artigo 69º, nº 1, do
Estatuto Orgânico de Macau e do estatuído no Decreto-Lei nº 60/92/M, tem
carácter excepcional e visa realizar um interesse público da Administração,
suprindo as carências do território em pessoal dotado das qualificações
necessárias ao cargo a prover.
8º - O regime constante do citado artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M não
implica tratamento discriminatório arbitrário e desrazoável para os funcionários
dos quadros próprios de Macau, prevendo a lei as formas e procedimentos
adequados para voluntariamente poderem reingressar na função pública.
Termos em que deverá proceder o presente recurso determinando-se
a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o juízo de
constitucionalidade da norma desaplicada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir: decidir, desde
logo, se deve conhecer-se do recurso; e, em caso de resposta afirmativa, se a
norma que se contém no referido artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, é (ou não) inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A questão prévia do conhecimento do recurso:
4.1. Preliminarmente, dir-se-á que as decisões do
Tribunal de Contas relativas ao visto prévio são decisões judiciais sujeitas ao
controlo de constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
A propósito, recorda-se aqui o que se escreveu no
acórdão nº 214/90 (Diário da República, II série, de 17 de Setembro de 1990)
acerca do visto do Tribunal de Contas, previsto no artigo 216º da Constituição.
Escreveu-se aí:
O Tribunal de Contas, quando procede à fiscalização prévia da legalidade e da
cobertura orçamental dos documentos geradores de despesas para o Estado,
desempenha uma função própria, típica, que lhe está constitucionalmente
cometida. É a função que certa doutrina designa por função de exame e visto
(...).
O visto é, assim, uma decisão proferida no exercício de uma competência que a
própria Constituição atribui ao Tribunal de Contas. (No mesmo sentido,
também o
acórdão nº 251/90, cujo sumário foi publicado no Boletim do Ministério da
Justiça, nº 399, página 551, e o acórdão nº 253/90, por publicar).
Sendo isto assim, pode, então concluir-se - à semelhança
do que se fez nesse aresto - que, seja qual for, em definitivo, a natureza
jurídica do visto (jurisdicional ou administrativa), o visto, que o Tribunal de
Contas de Macau recusou à contratação de M..., constitui uma verdadeira decisão
judicial para os efeitos do artigo 280º da Constituição da República Portuguesa
- ou seja: para o efeito de se poder interpor dela um recurso de
constitucionalidade.
O exercício das funções de exame e visto relativamente
aos actos e contratos da competência das autoridades do território de Macau
comete-as, na verdade, a lei ao respectivo Tribunal de Contas.
Com efeito, o artigo 10º da Lei nº 112/91, de 20 de
Agosto (Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau) - depois de preceituar,
no nº 1, que o 'Tribunal de Contas tem jurisdição e poderes de controlo
financeiro no âmbito da ordem jurídica de Macau' - prescreve no nº 4, alínea a),
que, funcionando como tribunal singular, compete-lhe 'julgar sobre a concessão
ou recusa de visto de processos de fiscalização prévia'. E o nº 5, alínea a), do
mesmo artigo 10º acrescenta que 'compete ao Tribunal de Contas, funcionando como
tribunal colectivo', 'julgar os recursos das decisões do tribunal singular,
designadamente quanto à concessão e recusa de visto'.
De sua parte, o artigo 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº
18/92/M, de 2 de Março - que veio 'regulamentar a organização, competência,
funcionamento e processo' do Tribunal de Contas de Macau - dispõe que 'a
fiscalização prévia é exercida através da concessão ou da recusa de visto e tem
por fim verificar se os actos ou contratos a ela sujeitos estão conformes com as
leis em vigor e se os respectivos encargos têm cabimento em verba orçamental
própria'.
A recorribilidade da decisão de recusa de visto que aqui
está sub iudicio não oferece, pois, dúvidas.
4.2. Inquestionável é também a competência deste
Tribunal para o julgamento dos recursos de constitucionalidade, interpostos de
decisões proferidas por tribunais de Macau.
No seu acórdão nº 284/89 (Diário da República, II série,
de 12 de Junho de 1989), partindo da ideia de que os princípios fundamentais que
estruturam a Constituição da República Portuguesa (entre os quais o do respeito
e garantia dos direitos e liberdades fundamentais), por um 'evidente imperativo
de coerência', não podem deixar de valer no território de Macau, uma vez que a
respectiva comunidade jurídica 'participa da ordem jurídica portuguesa'; e
considerando, bem assim, que o Tribunal Constitucional exerce 'a sua jurisdição
no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa' (por conseguinte, também em
Macau); concluiu-se que o Estatuto Orgânico de Macau 'aponta para que ao
Tribunal Constitucional caiba, em última instância, e por via de recurso, a
fiscalização em concreto da constitucionalidade material de normas jurídicas
emitidas, quaisquer que elas sejam, pelos órgãos legislativos do território'.
Posteriormente, no acórdão nº 245/90 (Diário da
República, II série, de 22 de Janeiro de 1991), essa competência do Tribunal
Constitucional foi afirmada também quanto às normas que, sendo editadas pelos
órgãos de soberania da República, vigorem em Macau.
Escreveu-se aí, a propósito:
[...] não obstante o caso em apreço respeitar a norma constante dum diploma
legal aplicável (hoje) exclusivamente ao território de Macau, nenhuma dúvida
pode suscitar-se acerca da competência deste Tribunal para dele conhecer.
A competência do Tribunal Constitucional para conhecer
dos recursos de constitucionalidade, interpostos de decisões dos tribunais de
Macau, abrange, pois, os recursos das decisões que desapliquem normas jurídicas,
com fundamento na sua inconstitucionalidade, quer se trate de normas editadas
pelos órgãos de soberania portugueses, quer de normas provenientes dos órgãos
legislativos de Macau.
Essa competência resulta hoje claramente da conjugação
dos artigos 2º, 11º, nº 1, alínea e), 15º, nº 2, 30º, nº 1, alínea a), 40º, nº
3, e 41º, do Estatuto Orgânico de Macau, com o artigo 11º da já citada Lei de
Bases da Organização Judiciária de Macau e com o artigo 3º do Decreto-Lei nº
17/92/M, de 2 de Março, que 'contém a regulamentação geral da nova organização
judiciária'.
De facto, o artigo 41º do Estatuto Orgânico dispõe que
'nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que
infrinjam as regras constitucionais ou estatutárias ou os princípios nelas
consignados' (cf., identicamente, o artigo 3º do Decreto-Lei nº 17/92/M), com o
que não pode deixar de referir-se às normas e princípios relativos aos
'direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República e
no [...] Estatuto', que o artigo 2º deste último manda observar. E essa
observância é assegurada, em última instância, pelo Tribunal Constitucional,
cuja competência, em via de recurso, é ressalvada pelo artigo 11º da Lei de
Bases da Organização Judiciária de Macau, quando dispõe que 'o Tribunal Superior
de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais de Macau, sem prejuízo
da competência [...] do Tribunal Constitucional em matéria de recursos'. E é por
ele assegurada também em sede de fiscalização abstracta, já que os artigos 11º,
nº 1, alínea e), 15º, nº 2 (conjugado com o artigo 40º, nº 3) e 30º, nº 1,
alínea a), do Estatuto Orgânico lhe cometem tal controlo.
4.3. Mas, pergunta-se: das decisões do Tribunal de
Contas de Macau, que recusem o visto com fundamento em inconstitucionalidade da
norma ao abrigo da qual foi praticado o acto a ele sujeito, poder-se-á recorrer,
directamente, para o Tribunal Constitucional? Não terá que recorrer-se,
previamente, para o Tribunal de Contas da República?
É que - como, adiante, melhor se verá - 'as divergências
entre o Governo de Macau e o Tribunal de Contas deste território em matéria de
exame ou visto' são decididas, em via de recurso, pelo Tribunal de Contas da
República, tendo legitimidade para interpor tal recurso o respectivo Governador
(cf. artigo 10º, nº 6, da citada Lei de Bases e artigos 46º, nº 2, e 49º, nº 4,
do Decreto-Lei nº 18/92/M, de 2 de Março).
Pois bem: a Constituição de Macau é, verdadeiramente, o
seu Estatuto Orgânico. A Constituição da República Portuguesa só se aplica em
Macau por devolução desse Estatuto - ou seja, nos casos e termos em que ele,
explícita ou implicitamente, para ela remeter.
Este Tribunal, no seu acórdão nº 292/91 (publicado no
Diário da República, II série, de 30 de Outubro de 1991), já teve ocasião de
ponderar a tal propósito o seguinte:
De acordo com a Constituição vigente (artigo 5º, a silentio, e artigo 292º, nº
1) - e de acordo agora, também, coma Declaração Conjunta do Governo da República
Portuguesa e do Governo da República Popular da China sobre a Questão de Macau,
ratificada pelo Decreto do Presidente da República nº 38-A/87, de 14 de Dezembro
(nº 1) -, Macau não é território português: é unicamente território 'sob
administração portuguesa', regendo-se por 'estatuto adequado à sua situação
especial' (cf. artigo 292º, nº 1, cit.).
Significa isto - como o Tribunal já teve ocasião de dizer, seguindo a lição da
doutrina - que, salvo quando ela própria o diga, a 'Constituição não rege
directa e automaticamente para o território de Macau e que este tem a sua
'Constituição', verdadeiramente, no respectivo Estatuto': só, pois, onde o
Estatuto 'devolva', explícita ou implicitamente, para a Constituição da
República, a mesma se aplicará a Macau (v. por último, o acórdão nº 245/90, no
Diário da República, II série, de 22 de Janeiro de 1991; e, antes, o acórdão nº
284/89, no Diário da República, II série, de 12 de Junho de 1989; e, na
doutrina, AFONSO R. QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, 1976, páginas 382
e seguintes).
Há-de ser, pois, no Estatuto Orgânico de Macau que, em primeira linha, terá de
procurar-se o regime não apenas de produção de normas jurídicas no próprio
território, mas igualmente do seu controlo: só subsidiariamente, e por devolução
(explícita ou implícita) do estatuto, a Constituição da República intervirá na
regulamentação de tal matéria.
Ora, o Estatuto Orgânico de Macau - depois de, no artigo
64º, prescrever que 'o exercício das funções de exame e visto relativamente aos
actos e contratos que forem da competência das autoridades do território,
incumbem ao seu Tribunal Administrativo' - acrescenta, no artigo 66º, que 'ao
Tribunal de Contas da República compete decidir, em via de recurso, as
divergências entre o Governo de Macau e o Tribunal Administrativo deste
território em matéria de exame e visto'.
Estes artigos 64º e 66º do Estatuto deixaram, no
entanto, de vigorar com a entrada em vigor do já mencionado Decreto-Lei nº
17/92/M, de 2 de Março (o que sucedeu 30 dias após a data da sua publicação: cf.
artigo 59º).
Na verdade, o artigo 48º da Lei nº 13/90, de 10 de Maio
- que, recorda-se, alterou o Estatuto Orgânico - dispôs que 'a vigência dos
artigos [...] 64º [...] e 66º do Estatuto Orgânico de Macau cessa com a entrada
em vigor da lei que desenvolve as bases do sistema judiciário de Macau' (que é
aquele Decreto-Lei nº 17/92/M), 'a qual definirá a composição, competência e
regras de funcionamento da entidade, dotada de autonomia, encarregada da
fiscalização financeira das pessoas colectivas públicas que a lei determinar'.
A Lei de Bases da Organização Judiciária de Macau (Lei
nº 112/91, de 29 de Maio, editada para cumprimento do disposto no artigo 51º, nº
2, do Estatuto Orgânico), cometeu ao Tribunal de Contas de Macau (em vez de ao
seu Tribunal Administrativo) 'jurisdição e poderes de controlo financeiro no
âmbito da ordem jurídica de Macau' (cf. artigo 10º, nº 1), atribuindo-lhe,
designadamente, a competência para julgar 'sobre a concessão ou recusa de visto
de processos de fiscalização prévia' [cf. o artigo 10º, nº 4, alínea a), e nº 5,
alínea a)].
Esta Lei de Bases - à semelhança do que fazia o artigo
66º do Estatuto Orgânico - atribui ao Tribunal de Contas da República, como se
disse já, a competência para, em via de recurso, decidir 'as divergências entre
o Governo de Macau e o Tribunal de Contas deste território em matéria de exame
ou visto' (cf. artigo 10º, nº 6).
Significa isto que a matéria do 'controlo financeiro no
âmbito da ordem jurídica de Macau' foi objecto de desconstitucionalização, pois
que é a lei ordinária - e não já o Estatuto Orgânico de Macau - que atribui ao
Tribunal de Contas do território a competência para 'julgar sobre a concessão ou
recusa de visto de processos de fiscalização prévia' e que comete ao Tribunal de
Contas da República a competência para 'decidir, por via de recurso, as
divergências entre o Governo de Macau e o Tribunal de Contas deste território em
matéria de exame ou visto' (cf. artigo 10º da citada Lei de Bases; cf. também o
artigo 46º, nº 2, do Decreto-Lei nº 18/92/M, de 2 de Março).
Das decisões do Tribunal de Contas de Macau, que recusem
o visto à contratação de alguém para exercer funções públicas no território -
visto a que essa contratação está sujeita nos termos do artigo 38º, nº 1, alínea
c), do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado
pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro -, há, pois, recurso para o
Tribunal de Contas da República, o qual só pode ser interposto pelo Governador
(cf. artigo 10º, nº 6, da Lei de Bases e artigos 46º, nº 2, e 49º, nº 4, do
Decreto-Lei nº 18/92/M).
Se, no entanto, a recusa do visto se fundar na
inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual o Governo de Macau pretende
fazer a nomeação ou celebrar o contrato, de tal decisão do Tribunal de Contas do
território, pode recorrer-se directamente para o Tribunal Constitucional (sem
necessidade, portanto, de se recorrer, primeiro, para o Tribunal de Contas da
República).
É certo que o artigo 10º, nº 6, da Lei de Bases e o
artigo 46º, nº 2, do Decreto-Lei nº 18/92/M não excepcionam do recurso para o
Tribunal de Contas da República os casos em que a divergência entre o Governo de
Macau e o Tribunal de Contas do território decorre da recusa de aplicação de uma
norma legal com fundamento na sua inconstitucionalidade.
Simplesmente, o artigo 11º da Lei de Bases, que começa
por preceituar que o Tribunal Superior de Justiça é o órgão superior da
hierarquia dos tribunais de Macau, acrescenta: 'sem prejuízo da competência
[...] do Tribunal Constitucional em matéria de recursos' (cf. também o artigo
34º da mesma Lei de Bases).
Ora, das decisões dos outros tribunais que recusem
aplicação de qualquer norma, com fundamento em inconstitucionalidade, ainda que
seja admissível recurso ordinário, pode recorrer-se, directamente, para o
Tribunal Constitucional, sendo esse recurso obrigatório para o Ministério
Público [cf. o nº 1, alínea a), em confronto com os nºs 2, 3 e 4 do artigo 70º e
com o artigo 72º, nº 2, da Lei do Tribunal Constitucional].
Não havendo razões para que tal disciplina não valha
também para os tribunais de Macau (Tribunal de Contas incluído), pode, então,
concluir-se nada haver que obste a que se conheça do objecto do recurso.
5. Objecto do recurso:
5.1. A questão da inconstitucionalidade orgânica do
Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro:
5.1.1. O artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, preceitua como segue:
Artigo único. As situações constituídas no âmbito dos quadros dependentes dos
órgãos de soberania ou das autarquias da República Portuguesa, nomeadamente de
licença de curta ou longa duração, licença ilimitada, aposentação, reforma ou
reserva não constituem incapacidade para o exercício de funções públicas no
território de Macau, em qualquer dos regimes previstos no Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº
87/89/M, de 21 de Dezembro.
Com este normativo, o legislador pretendeu (segundo diz)
'esclarecer o alcance e âmbito de aplicação do disposto no nº 1 do artigo 13º do
Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro' (cf. o preâmbulo), uma vez que 'têm
surgido dúvidas e interpretações divergentes, no tocante ao universo pessoal de
aplicação das normas atinentes à capacidade para o exercício de funções públicas
no território de Macau' (cf. citado preâmbulo).
Ao editar o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, o
legislador diz ter pretendido fazer interpretação autêntica ('clarificação
legislativa autêntica') do nº 1 do artigo 13º do mencionado Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau [cuja alínea a) - única que aqui
interessa considerar - fere de incapacidade para o exercício das funções
públicas em Macau os funcionários que se encontrem, entre outras, na situação de
licença sem vencimento de curta ou longa duração], vindo estatuir que essa
incapacidade atinge apenas os funcionários pertencentes aos quadros do
território de Macau, e não também os funcionários pertencentes aos quadros da
República.
5.1.2. O tribunal recorrido pondera que 'o artigo 13º do
ETAPM era e é claro quando enumera as situações susceptíveis de travar o
ingresso nos serviços da Administração Pública de Macau', valendo a disciplina
nele consagrada para 'todos os servidores públicos, independentemente da sua
origem', como, de resto, vinha entendendo 'larga jurisprudência tirada no
território'. Por isso - acrescenta -, como 'só há lei interpretativa quando o
legislador, através de novo diploma, clarifica, esclarece, diploma anterior de
conteúdo incerto ou controvertido', e como o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, o que fez foi alterar aquele artigo 13º, nº 1, do Estatuto,
'dando-lhe um conteúdo que ele não comportava' (pois que veio dizer que esse
normativo 'se restringia ao universo dos quadros de Macau', desse modo abrindo,
'aos quadros dependentes da República a possibilidade de exercerem no território
funções públicas em situações que não são permitidas aos quadros locais'), é ele
um diploma legislativo inovador. E, como foi editado sem autorização legislativa
(a que fora concedida pela Lei nº 9/89/M, de 23 de Outubro, esgotou-se,
'gastou-se') e versa matéria que (segundo o tribunal recorrido) o Governador só
poderia tratar legislativamente se estivesse munido de tal autorização, há que
concluir - diz o aresto sob recurso - que ele é organicamente inconstitucional.
5.1.3. O Procurador-Geral Adjunto - depois de ponderar
ser irrelevante que o preâmbulo do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro,
diga que ele é lei interpretativa do artigo 13º, nº 1, do Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau, uma vez que 'a verdadeira
natureza e função por ele substancialmente desempenhadas' 'sempre terá de ser
alcançada através da análise do conteúdo material da norma editada' - anota que
o que esta norma, em direitas contas, fez foi 'interpretar, integrar ou,
porventura, modificar, o estatuído no Decreto-Lei nº 60/92/M, no que se refere
ao estatuto do pessoal recrutado no exterior, ao abrigo do artigo 69º, nº 1, do
Estatuto Orgânico de Macau, e não inovar em sede do regime aplicável ao pessoal
dos serviços públicos dos quadros próprios do território de Macau, a que alude o
artigo 68º do Estatuto Orgânico de Macau e que está estabelecido no citado
Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau'.
Aquele Magistrado precisou que, como o artigo único do
Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, aqui sub iudicio, 'tem directa conexão
com o estatuto do pessoal recrutado no exterior, não envolvendo qualquer
definição do estatuto do pessoal dos quadros próprios do território de Macau',
'o que, afinal, se vai integrar ou, mais precisamente, modificar, através da
edição do referido artigo único, é o estatuído no artigo 1º, nº 3, do
Decreto-Lei nº 60/92/M - dispondo-se que a capacidade de exercício de funções
públicas do pessoal recrutado no exterior é determinada pelo nele expressamente
estatuído, e não pela aplicação supletiva do regime da função pública de Macau -
como resultava do preceituado na norma legal atrás citada - assim se afastando a
aplicação subsidiária ou supletiva do estatuído no artigo 13º, nº 1, do Estatuto
dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau'.
Disse ainda o Procurador-Geral Adjunto que 'o diploma
verdadeiramente 'interpretado' (em termos seguramente inovatórios) pela norma
questionada foi editado no exercício da competência legislativa própria do
Governador de Macau, não incidindo, afinal, sobre matéria situada no âmbito da
competência reservada da Assembleia Legislativa'.
Por isso - concluiu -, não tendo o mencionado
Decreto‑Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, nada 'a ver com a definição do
estatuto do pessoal dos quadros próprios de Macau, nem com os três diplomas
credenciados pela autorização legislativa constante da Lei nº 9/89/M, é evidente
que o 'esgotamento' e 'caducidade' desta se revelam, neste caso [...],
perfeitamente irrelevantes'.
5.1.4. Enunciada a posição do tribunal recorrido e a do
Magistrado recorrente, vejamos, então, se o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, é (ou não) organicamente inconstitucional.
Começando por recordar que o legislador apresenta o
Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, como lei interpretativa do nº 1 do
artigo 13º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau
(aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro), dir-se-á que é de
considerar como lei interpretativa (por natureza) aquela que, com o fim de pôr
cobro à controvérsia (ou, pelo menos, à incerteza) sobre o sentido de certa
regra jurídica, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter
adoptado: não, necessariamente, uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou
uma forte corrente jurisprudencial anterior - que, até, podem não existir -, mas
um sentido que os operadores jurídicos podiam ter extraído da norma.
Claro é que, se se formou uma corrente jurisprudencial
de tal modo forte que possa dizer-se que o sentido da norma se tornou
praticamente certo, a lei nova que, acaso, venha consagrar uma interpretação
diferente, já não pode ser considerada realmente como interpretativa, embora o
legislador a possa qualificar como tal, antes tendo que ser havida como
inovadora (cf. J. BAPTISTA MACHADO, in Introdução ao Direito e ao Discurso
Legitimador, Coimbra, 1983, página 246).
Escreve este Autor:
Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto,
dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo
menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos
quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou o intérprete a ela poderiam
chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e
aplicação da lei. Se o julgador ou o intérprete, em face de textos antigos, não
podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então
esta é decididamente inovadora (cf. obra cit. página 247).
Mesmo quando a nova lei é inovadora, o legislador pode
declarar, no texto do diploma ou no respectivo preâmbulo, que ela é
interpretativa. Em tal caso, do que, ao cabo e ao resto, se trata é de uma lei
retroactiva disfarçada.
A propósito deste último tipo de leis, escreve J.
BAPTISTA MACHADO (ob. cit., página 245):
Quando não existe norma de hierarquia superior que proíba a retroactividade, tal
qualificação do legislador deve ser aceite para efeito de dar a tal disposição
um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13º [do
Código Civil]. Na verdade, o legislador teria, na hipótese, o poder de declarar
retroactiva a LN e definir os limites desta retroactividade (sobre o tema,
cf.
também JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENÇÃO, in O Direito. Introdução e Teoria Geral, 2ª
edição, Lisboa, 1980, páginas 197 e 199 e 439 a 444, sp. página 444).
A interpretação autêntica é algo que integra o próprio
exercício da função normativa; por isso, só quem tem competência para, ab
initio, produzir uma norma a pode interpretar autenticamente [cf. acórdãos nºs
32/87, 157/88, 372/91, 139/92 e 805/93 (Diário da República, II série, de 7 de
Abril de 1987, I série, de 26 de Julho de 1988, I-A série, de 7 de Novembro de
1991, II série, de 21 de Agosto de 1992 e I-A série, de 4 de Janeiro de 1994,
respectivamente)].
5.1.5 Expostos estes princípios, vejamos, então, se o
Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, versa matéria que se inscreva na
reserva de competência legislativa da Assembleia Legislativa de Macau e, bem
assim, se, tal como se diz no preâmbulo, é ele uma lei interpretativa do artigo
13º, nº 1, do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau,
aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro.
Se ele tiver natureza de lei interpretativa do
mencionado artigo 13º, nº 1, ou, sendo inovador, se versar matéria da
competência reservada da Assembleia Legislativa de Macau, é ele
inconstitucional.
De facto, em qualquer dessa hipóteses, o Governador só
podia editá-lo munido de autorização legislativa, que, no caso, não tinha.
Prosseguindo, pois.
O Estatuto Orgânico de Macau (aprovado pela Lei nº 1/76,
de 17 de Fevereiro) dispõe, no artigo 67º, que 'os serviços públicos de Macau
são organismos privativos deste território, podendo constituir entidades
autónomas, dotadas de personalidade jurídica, sem prejuízo do disposto no artigo
51º'. (Este artigo 51º preceitua que 'a administração da justiça ordinária no
território de Macau continua a regular-se pela legislação emanada dos órgãos de
soberania da República'). E, no artigo 68º, acrescenta que 'o pessoal dos
serviços públicos, seja qual for a sua categoria, integra-se nos quadros
próprios do território, ficando apenas sujeito à autoridade e fiscalização dos
seus órgãos' (cf., identicamente, os artigos 67º e 68º do referido Estatuto,
após as alterações introduzidas pela Lei nº 13/90, de 10 de Maio).
Correspondentemente com o que se preceitua neste artigo
68º, prescreve-se, no artigo 31º, nº1, alínea e), e 2 (conjugado com o artigo
13º, nº 2), que só a Assembleia Legislativa (ou o Governador por ela autorizado)
pode 'criar novas categorias ou designações funcionais ou alterar as tabelas que
definem aquelas categorias e fixar os vencimentos, salários e outras formas de
remuneração do pessoal dos quadros' [cf., identicamente, após as alterações
introduzidas pela Lei nº 13/90, o artigo 31º, nºs 1, alínea q), e 3, conjugado
com o artigo 13º, nº 2].
O Governador de Macau, para legislar sobre o estatuto do
pessoal dos quadros próprios dos serviços públicos do território, tem, pois, que
munir-se de autorização legislativa. De contrário, invade,
inconstitucionalmente, a área de reserva legislativa da respectiva assembleia.
Justamente por isso, a Assembleia Legislativa de Macau,
pela Lei nº 9/89/M, de 23 de Outubro, concedeu ao Governador autorização
legislativa para: (a). Estabelecer o Estatuto dos Trabalhadores da Administração
Pública; (b). Rever o regime das carreiras do pessoal da Administração Pública;
(c). Rever o regime do pessoal de direcção e chefia dos Serviços da
Administração Pública.
Foi no uso desta autorização legislativa que o
Governador editou o Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro, que aprovou o
Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, a que pertence o
mencionado artigo 13º, que o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, diz vir
interpretar autenticamente.
Este artigo 13º, dispõe, na alínea a) do nº 1 - única
que aqui interessa considerar - o seguinte:
Artigo 13º (Capacidade profissional)
1. Não têm capacidade para o exercício de funções públicas:
a). Os funcionários na situação de licença sem vencimento de curta ou longa
duração ou por interesse público ou que hajam requerido a passagem a uma destas
situações.
A incapacidade para o exercício de funções públicas que
aqui se prevê, directamente, aplica-se apenas ao pessoal dos quadros próprios
dos serviços públicos de Macau, pois que é para eles que este Estatuto rege,
como, desde logo, resulta do seu artigo 1º, nº 1.
Aliás, só para esses funcionários tal disciplina poderia
valer directamente.
Na verdade, o Estatuto em causa foi editado para dar
execução à alínea e) do nº 1 do artigo 31º do Estatuto Orgânico (cf. a Lei nº
9/89/M, de 23 de Outubro - autorização legislativa), que está em correspondência
com o respectivo artigo 68º, que - recorda-se - trata do pessoal dos quadros
próprios dos serviços públicos do território de Macau.
A situação do pessoal dos quadros dependentes dos órgãos
de soberania da República, essa está prevista no artigo 69º do mesmo Estatuto
Orgânico, aí se dispondo que tal pessoal pode, ' a seu requerimento e com
autorização do respectivo Ministro e concordância do Governador, prestar serviço
por tempo determinado no território de Macau, contando‑se, para todos os
efeitos, como efectivo serviço no seu quadro e categoria, o tempo de serviço
prestado nessa situação' (cf. nº 1 do citado artigo 69º).
Este pessoal é aquele a que o Decreto-Lei nº 53/89/M, de
28 de Agosto (editado pelo Governador, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo
13º do Estatuto Orgânico, ou seja, no exercício da sua competência legislativa
própria, embora cumulativa), chama pessoal recrutado no exterior: a ele deve
recorrer-se excepcionalmente e sem exceder nunca o contingente que, anualmente,
é fixado pelo Governador (cf. o preâmbulo e o artigo 4º). O seu recrutamento -
que tem que ser autorizado pelo Governador (cf. artigo 6º, nº 1) - faz-se para
exercer funções em Macau, por um período de três anos (renovável por um período
igual ou inferior), em regime de comissão de serviço (tratando‑se de lugares de
direcção ou de chefia) e, nos restantes casos, em regime de contrato além do
quadro ou de assalariamento (cf. artigo 8º, nºs 1 e 2).
Na vigência deste Decreto-Lei nº 53/89/M, de 28 de
Agosto, para o pessoal a que ele se refere (o pessoal recrutado no exterior para
exercer funções públicas em Macau), valiam as incapacidades profissionais que a
lei fixasse para o pessoal dos quadros próprios do território (cf. artigo 3º).
Com uma excepção, contudo: nos termos do artigo 7º, nº 4, do Decreto-Lei nº
86/84/M, de 11 de Agosto (na redacção do Decreto-Lei nº 15/88/M, de 29 de
Fevereiro), 'a situação de licença ilimitada nos quadros dependentes dos órgãos
de soberania da República Portuguesa não prejudica[va] o desempenho de funções
públicas no Território'.
O Decreto-Lei nº 15/88/M, de 29 de Fevereiro - que
introduziu a ressalva que acaba de referir-se - foi, no entanto, revogado pelo
já mencionado Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro [cf. artigo 28º, nº 1,
alínea 59)].
De sua parte, o Decreto-Lei nº 53/89/M, de 28 de Agosto,
veio a ser revogado pelo Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto (cf. artigo
24º), que passou a regular o recrutamento de pessoal no exterior, que continua a
ser uma 'forma excepcional de dotar a Administração dos meios humanos
indispensáveis às tarefas que lhe incumbe desenvolver' (cf. o respectivo
preâmbulo).
Este Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto (editado
pelo Governador no exercício da sua competência legislativa própria, embora
cumulativa, ou seja, ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 13º do Estatuto
Orgânico), veio, na verdade, estabelecer 'as normas que regem o recrutamento de
pessoal ao abrigo do nº 1 do artigo 69º do Estatuto Orgânico de Macau para
exercer funções nos serviços e organismos públicos [...]' (cf. artigo 1º, nº 1).
É este um recrutamento que - além de continuar a ter que
ser autorizado pelo Governador (cf. artigo 4º, nº1) - mantém o seu carácter
excepcional, pois que, com ele, visa-se 'suprir as carências do território de
pessoal com qualificações necessárias ao desempenho das atribuições que incumbem
à Administração' (cf. artigo 3º). Faz-se para que o pessoal recrutado no
exterior preste serviço em Macau, em regra, durante dois anos (cf. artigo 7º, nº
2), em regime de comissão de serviço, contrato além do quadro (excepcionalmente,
assalariamento) e contrato individual de trabalho (cf. artigo 7º, nº 1).
A este pessoal 'aplica-se, supletivamente, o regime da
função pública de Macau' - dispõe o artigo 1º, nº 3. Ou seja: para o pessoal
recrutado no exterior, valem as incapacidades profissionais previstas no artigo
13º (do citado Estatuto), cuja alínea a) do nº 1 se transcreveu atrás.
É no seguimento desta evolução legislativa que é
publicado o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro - aqui sub iudicio -,
dispondo que as situações de licença de curta ou longa duração, de licença
ilimitada, aposentação, reforma ou reserva ('constituídas no âmbito dos quadros
dependentes dos órgãos de soberania ou das autarquias da República Portuguesa')
'não constituem incapacidade para o exercício de funções públicas em Macau, em
qualquer dos regimes previstos no Estatuto dos Trabalhadores da Administração
Pública de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro'.
Este Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, veio, no
fundo, reeditar a disciplina que já havia sido lei no território, durante a
vigência do Decreto-Lei nº 15/88/M, de 29 de Fevereiro, alargando-a a outras
situações, para além da de 'licença ilimitada nos quadros dependentes dos órgãos
de soberania da República'. E, desse modo, afastou a aplicação da alínea a) do
nº 1 do artigo 13º daquele Estatuto, que se aplicava ao pessoal recrutado no
exterior para a Administração Pública de Macau, não directamente, mas por
remissão do artigo 1º, nº 3, do Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto.
5.1.6. Do excurso que acaba de fazer-se pela legislação
que tem regulado a matéria, pode, assim, assentar-se no seguinte:
(a). O Governador de Macau só pode legislar sobre o estatuto do pessoal dos
quadros próprios dos serviços públicos do Território, munido de autorização
legislativa, uma vez que se trata de matéria que se inscreve na reserva de
competência legislativa da Assembleia Legislativa [cf. artigo 31º, nºs 1, alínea
q), e 3, conjugado com o artigo 13º, nº 2, do Estatuto Orgânico de Macau];
(b). O Governador de Macau pode, porém, legislar sobre o estatuto do pessoal
recrutado no exterior para exercer funções na Administração Pública do
Território, sem necessidade de se munir de autorização da Assembleia Legislativa
[cf. artigo 13º, nº 1, conjugado com o artigo 30º, nº 1, alínea c), do mesmo
Estatuto Orgânico];
(c). O Decreto-Lei nº 87/89/M, de 21 de Dezembro - que aprovou o Estatuto dos
Trabalhadores da Administração Pública de Macau - versa matéria reservada à
Assembleia Legislativa de Macau [cf. artigo 31º, nº 1, alínea e) e, hoje, alínea
q)];
(d). O Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto, estabelecendo normas relativas
ao recrutamento de pessoal no exterior para o exercício de funções públicas em
Macau, versa matéria que pode ser tratada legislativamente, tanto pela
Assembleia Legislativa, como pelo Governador,.sem necessidade, para este, de
autorização legislativa [cf. artigo 69º, nº 1, com referência aos artigos 13º,
nºs 1 e 2, 30º, nº 1, alínea c), e 31º, nºs 1, alínea q) e 3, do Estatuto].
(e). O Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, dispondo que a incapacidade
profissional [prevista no artigo 13º do Estatuto dos Trabalhadores da
Administração Pública de Macau, maxime na alínea a) do seu nº 1], não é
aplicável aos funcionários recrutados no exterior - recte, nos quadros de
pessoal dependente dos órgãos de soberania ou das autarquias locais da República
Portuguesa -, vem modificar a disciplina que se contém no nº 3 do artigo 1º do
Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto, só indirectamente atingindo o artigo
13º do citado Estatuto;
(f). Tal Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, contém, pois, disciplina
referente ao recrutamento no exterior de pessoal para exercer funções públicas
em Macau - disciplina que é inovatória, mas versa matéria sobre que o
Governador, como se viu, pode legislar sem necessitar de autorização
legislativa.
O Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro - tal como
sustenta o Ministério Público - veio, assim, modificar a disciplina que se
contém no artigo 1º, nº 3, do Decreto-Lei nº 60/92/M, de 24 de Agosto:
dispõe-se, com efeito, neste normativo que, ao pessoal recrutado no exterior
para o desempenho de funções públicas em Macau, se aplica 'supletivamente, o
regime da função pública de Macau'.
Ora, com a entrada em vigor daquele Decreto-Lei nº
5/93/M, tal regime deixou de aplicar-se aos funcionários oriundos dos quadros do
funcionalismo da República, no tocante às incapacidades profissionais previstas
no artigo 13º do Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M.
O regime de incapacidades previsto no citado artigo 13º
continuou, no entanto, a ser inteiramente aplicável, desde logo, aos
funcionários a que o Estatuto se aplica directamente, que são os funcionários
dos quadros próprios dos serviços públicos de Macau.
Vale isto por dizer que o Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, só indirectamente restringiu o campo de aplicação do artigo 13º do
Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei nº 87/89/M, já que a remissão, que para ele
faz o nº 3 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 60/92/M, passou a ter um alcance mais
limitado.
O artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de
Fevereiro, não é, assim, interpretativo do artigo 13º do mencionado Estatuto.
Ele restringiu antes o domínio de aplicação do artigo 1º, nº 3, do Decreto-Lei
nº 60/92/M.
Embora sendo um diploma inovatório, como a matéria de
que trata se inscreve na competência legislativa do Governador de Macau, não
viola ele qualquer norma de competência constante do Estatuto Orgânico de Macau,
atinente à produção legislativa no Território.
Tal diploma legislativo não é, por isso, organicamente
inconstitucional.
5.2. A questão da violação do princípio da igualdade:
Entende o acórdão recorrido que a norma aqui sub iudicio
(dito artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro) viola o
princípio da igualdade e, em particular, a igualdade no acesso à função pública,
afirmado no nº 2 do artigo 47º da Constituição.
De facto - diz-se aí -, ela consagra uma discriminação
que 'não assenta em nada de sólido, estruturando-se apenas na diferença do
território de origem dos quadros em presença', pois que permite que
'funcionários dos quadros de Portugal concorram a lugares da Administração de
Macau em pé de desigualdade com os do próprio Território, beneficiando de
facilidades que a estes últimos são negadas'.
O Procurador-Geral Adjunto, ao contrário, pronuncia-se
no sentido de que a norma sob apreciação não viola o princípio da igualdade,
pois que a 'diferenciação de regime terá, afinal, na sua base um suporte
material bastante': desde logo, é o próprio Estatuto Orgânico de Macau - que é
uma 'verdadeira 'mini-Constituição' do Território' - que, nos artigos 68º e 69º,
'legitima a diferenciação entre os agentes administrativos ao serviço de Macau,
dispensando a existência de um sistema unitário no que se refere à organização e
regime da função pública do Território, instituindo, pelo contrário, uma
dualidade de quadros do funcionalismo e prevendo uma tendencial estanquicidade
entre os quadros próprios de Macau e os quadros do funcionalismo da República'.
Depois - acrescenta o mesmo Magistrado - 'o recrutamento
de pessoal no exterior, para além de ter carácter excepcional, pressupõe que
inexista no Território pessoal com as qualificações necessárias ao desempenho do
cargo a prover. Ou seja: a 'ratio' do regime instituído não seria operar uma
'discriminação' em desfavor dos agentes integrados nos quadros próprios do
Território, mas suprir 'carências' em pessoal qualificado, que apenas no
exterior seria possível encontrar, realizando, pois, um interesse público
relevante da própria Administração'. Ao que acresce que, se se compreende que
certos funcionários dos quadros da República, cujo vínculo se encontra suspenso
ou, mesmo, extinto, possam exercer funções para que estão particularmente
habilitados em Macau, já não se entenderia facilmente que 'funcionários dos
quadros próprios de Macau', 'mantendo-se a referida suspensão ou extinção do
vínculo' passassem 'a exercer as funções que voluntariamente houvessem cessado
ou interrompido', até porque 'existem outras formas adequadas para satisfazer o
interesse do funcionário que quer reingressar no quadro de que saiu'.
Também aqui a razão está com o Ministério Público.
De facto, o princípio da igualdade, consagrado no artigo
13º da Constituição (e, no que particularmente concerne ao acesso à função
pública, no artigo 47º, nº 2), não proíbe que se estabeleçam tratamentos
diferenciados; proíbe tão-só o arbítrio, as distinções de tratamento
irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material ou racional.
A ideia de igualdade, com efeito, impõe se dê tratamento
igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferenciadamente o que for
diferente.
O princípio da igualdade (maxime, a ideia de igualdade
no acesso à função pública) vale, obviamente, no espaço jurídico de Macau, pois
que o respectivo Estatuto Orgânico - que é a sua Constituição (cf. o já citado
acórdão nº 292/91) - fez seus, justamente, os princípios e os direitos,
liberdades e garantias estabelecidas na Constituição da República (cf. artigo
2º).
Mas, o facto de a lei permitir que funcionários dos
quadros de funcionalismo da República na situação de licença sem vencimento (e
de outras situações que, agora, não interessa considerar) exerçam funções
públicas em Macau no regime de contrato além do quadro e de não permitir outro
tanto aos funcionários dos quadros próprios do Território, não representa uma
solução arbitrária ou discriminatória.
Desde logo (e como sublinha o Ministério Público), é a
própria Constituição do território que estabelece uma distinção de regimes entre
os funcionários de Macau e aqueles que são recrutados no exterior para aí
exercerem funções públicas. Depois, o recrutamento destes últimos tem carácter
excepcional, é contingentado, faz-se para um curto período de tempo (em regra,
dois anos) e visa suprir carências do próprio território; ou seja: com ele, o
que se pretende é a satisfação de interesses públicos que, de outro modo,
ficariam por satisfazer, justamente, por não haver, no território, quem tivesse
as qualificações necessárias para os cargos a prover.
O acesso à função pública, que a norma do artigo único
do Decreto-Lei nº 5/93/M, de 8 de Fevereiro, abre exclusivamente para os
funcionários oriundos dos quadros do funcionalismo da República, cujo vínculo se
encontre suspenso ou extinto, não representa, assim, uma distinção de tratamento
assente no Território de origem. A distinção de tratamento, que essa norma
introduz no ordenamento jurídico de Macau, conferindo àqueles funcionários um
direito que as leis não reconhecem os funcionários dos quadros próprios do
Território, funda-se, antes, no facto de aqueles possuirem qualificações ou
habilitações que estes não detêm.
Assentando a diferenciação de tratamento num motivo
razoável, que é o possuirem melhor título, a norma que a consagra não afronta o
princípio da igualdade.
6. Uma última nota: o facto de o ordenamento jurídico
português não prever que um funcionário de Macau, que, acaso, se encontre
nalguma das situações para que provê o artigo único do Decreto-Lei nº 5/93/M,
possa exercer funções públicas na República, é irrelevante do ponto de vista da
igualdade: como Macau é um território que apenas está sob administração
portuguesa, se as qualificações de uns funcionários fossem idênticas às dos
outros (e já se viu que o não são), o que poderia era colocar-se um problema de
reciprocidade. Não de igualdade, pois que a força irradiante da ideia de
igualdade não se estende a espaços jurídicos diferentes daqueles para que as
normas são editadas.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência,
revoga-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de
constitucionalidade, a fim de ser reformulado em conformidade com o aqui
decidido sobre essa questão.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 1995
Ass) Messias Bento
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luis Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
José Manuel Cardoso da Costa