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Processo n.º 859/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por decisão da primeira instância proferida em processo penal, foi o arguido A. condenado na pena única de 17 anos de prisão.
Declarada a especial complexidade do processo, por despacho proferido nos autos, foi, com tal fundamento, nos termos do disposto no artigo 107.º, n.º 6, do Código de Processo Penal (CPP), prorrogado de 20 para 30 dias o prazo de recurso previsto no artigo 411.º, nºs. 1 e 3, CPP «sem prejuízo do alargamento do prazo em mais 10 dias no caso de o recurso ter por objeto a reapreciação da prova gravada».
O arguido, não se conformando com a decisão condenatória, dela interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que foi admitido pelo Tribunal a quo mas rejeitado, por intempestivo, por decisão sumária do relator no Tribunal ad quem, que considerou não ter sido interposto, nos termos legais, recurso para reapreciação da prova gravada, pelo que, à data da interposição do recurso, já se havia esgotado o prazo de 30 dias (20 +10) que havia sido concedido por força da especial complexidade do processo.
Notificado desta decisão, dela reclamou o arguido, alegando ter interposto recurso para reapreciação da prova gravada, com observância dos requisitos para tanto legalmente exigidos, mas a conferência, por Acórdão de 11 de maio de 2011, indeferiu a reclamação, por considerar que «[n]o estádio atual do ordenamento jurídico nacional, o prazo máximo de recurso de qualquer decisão judicial nunca poderá exceder 30 (trinta) dias (…)» já que o n.º 6 do artigo 107.º do CPP «apenas excecionalmente permite a prorrogação até àquele limite de 30 dias dos prazos de 20 dias prevenidos nos ns. 1 e 3 do (…) artigo 411.º (…), cuja eventual/arbitrária alteração por decisão judicial, porque invasiva da exclusiva competência legislativa sobre a matéria da Assembleia da República, se haverá axiomaticamente por inconstitucional e juridicamente inexistente (…)».
O arguido interpôs ainda recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o relator no tribunal da Relação de Coimbra, por despacho de 28 de setembro de 2011, rejeitado o recurso nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal (CPP).
Deste último despacho apresentou, então, o recorrente reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 405.º do CPP, que foi, contudo, indeferida por despacho de 15 de novembro de 2011.
É desta última decisão que recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), a fim de ver apreciadas as seguintes questões de inconstitucionalidade:
- a norma do artigo 107.º, n.º 6, do CPP, interpretada no sentido de que se «limita a permitir a prorrogação do prazo de recurso de 20 para 30 dias e que, mesmo havendo impugnação da matéria de facto, o prazo de recurso não pode exceder os 30 dias», por violação dos artigos 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
- a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, interpretada «no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que considera intempestivo o recurso que fora admitido na 1ª instância», por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, conforme esclarecimento prestado, por convite, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC.
O recurso prosseguiu seus termos, tendo o recorrente apresentado alegações onde conclui:
1- A interpretação normativa, no nosso entender inconstitucional, que se pretende que seja apreciada por V. Exas. é a interpretação feita tanto pelo Tribunal da Relação de Coimbra, bem como pelo Supremo Tribunal de Justiça à norma constante do art.º 400.º n.º 1 alínea c) do CPP.
2- Ambos os Tribunais interpretam a referida norma no sentido ser irrecorrível para o Supremo Tribunal de Justiça os Acórdãos proferidos pelas Relações que não conheçam a final do objeto do processo, entendendo por isso que os Acórdãos das Relações que rejeitem os recursos por extemporâneos não conhecem a final do objeto do processo, e por conseguinte são irrecorríveis para o STJ.
3- A Lei não distingue a forma como os Acórdãos da Relação não conhecem a final do objeto do processo. Devendo pois, no nosso entender, tal norma ser interpretada restritivamente, sob pena de violação do direito ao recurso.
4- Deve distinguir-se formas adjetivas e substantivas de não se conhecer a final do objeto do processo, e neste caso em concreto, parece-nos que esta foi uma causa adjetiva atentatória dos mais elementares princípios e normas constitucionais, nomeadamente dos art.ºs 32.º n.º 1 e 20.º n.º 1 da CRP.
5- Assim, por via da aplicação do art.º 400.º n.º 1 c) do CPP e da interpretação que lhe foi dada, resulta coartado o direito de recurso do ora recorrente, e, com isso, mostra-se violado um direito fundamental constitucionalmente consagrado.
6- O recurso para o STJ não visava a apreciação do objeto do processo, apenas que aquele Tribunal considerasse o recurso tempestivo, e em consequência o Tribunal da Relação de Coimbra fosse obrigado a apreciar o recurso tempestivamente interposto pelo arguido (garantindo, desta forma, um grau de jurisdição, ou seja, o direito ao recurso que está previsto no art.º 32.º n.º 1 da CRP).
7- O objeto do presente recurso prende-se com o despacho que desatendeu a reclamação em apreço, por ter efetuado uma interpretação normativa do art. 400º nº 1-c) do C.P.P. no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que considera intempestivo o recurso que fora admitido na 1ª instância, a qual se julga inconstitucional por violação do direito ao recurso previsto no art. 32º nº 1 da CRP.
8- As normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal Constitucional são as dos artigos 107.º n.º 6 e 400.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Penal, com o entendimento que lhes foi dado pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, que infra se exporá, que por sua vez foi reafirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça na Douta Decisão que indeferiu a reclamação apresentada pelo arguido, entendimento que na opinião do ora recorrente, salvo Melhor e Mais Douto entendimento, fazem uma errada e inconstitucional interpretação dos art.º 107.º n.º 6 e 400.º n.º 1 al, c), ambos do CPP, por violação dos art.ºs 203.º, 20.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
9- O recurso da decisão da 1ª instância foi interposto tempestivamente.
10- Entende o Venerando Tribunal que o art.º 107.º n.º 6 do CPP limita-se a permitir a prorrogação do prazo de recurso de 20 para 30 dias e que mesmo havendo reapreciação da matéria de facto, o prazo de recurso não pode exceder os 30 dias. Este entendimento é ilegal e inconstitucional por violação das garantias de defesa do arguido, nomeadamente o direito ao recurso, consagrado no art.º 32.º da nossa Lei Fundamental e a segurança e confiança das Decisões dos Tribunais.
11- Está violado o direito constitucionalmente consagrado ao recurso, tratando-se neste caso do direito a um único grau de recurso, sob pena de violação dos art.º 32.º n.º 1, 20.º e 202.º, todos da CRP.
12- Daí que não sejam admissíveis, numa perspetiva dos direitos de defesa, as rejeições formais que limitem intoleravelmente, dificultem excessivamente, imponham entraves burocráticos ou restringem desproporcionadamente tal direito. É exatamente o que está a suceder no presente caso. Um indivíduo foi condenado a 17 anos de prisão pela Primeira Instância (Tribunal Judicial de Mangualde) e por razões adjetivas/processuais erradas e inconstitucionais (por interpretações inconstitucionais das normas), está a ver o seu direito ao recurso coartado, impedindo-se desta forma, que tal Decisão seja examinada por um Tribunal Superior, por um único grau de recurso.
13- É certo que o direito ao recurso só pode ser cabalmente exercido uma vez verificados e cumpridos todos os pressupostos e condições de que depende (nomeadamente, o prazo de interposição). Contudo, também é certo que tais pressupostos e requisitos foram cabalmente respeitados pelo ora recorrente, tendo sempre por base a confiança na tutela jurisdicional e nas Decisões dos nossos Tribunais, mormente na Decisão da 1ª instância que prorrogou o prazo de recurso.
14- Por isso e em sede interpretativa do citado art. 107.º, n.º 6, e 400.º n.º 1 c) do CPP, afigura-se-nos que está vedado um entendimento ou interpretação mediante o qual se fixem preceitos tão restritivos que, na prática, suprimem esse direito de recurso, quando essa faculdade está legalmente prevista, mormente quando se pretende assegurar de modo pleno as garantias de defesa do arguido. Mas não só,
15- Sucede que o Acórdão do Tribunal da Relação conhece ex novo da questão. Estamos perante um Acórdão – o Acórdão da Relação de Coimbra de 11 de maio de 2011 – que decide ex novo a questão da extemporaneidade do recurso, razão pela qual – e em relação a todos os arguidos – não se aplica qualquer uma das exceções previstas no art. 400.º nº 1 do C.P.P., sob pena de violação do direito ao recurso.
16- Foi o que entendeu a 2.º Secção do Tribunal Constitucional no Ac. 597/00, que decidiu julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação do artigo 400.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal, segundo a qual não são suscetíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que versem sobre questões de direito processual penal.
17- O entendimento dado pelo Supremo Tribunal de Justiça ao artigo 400.º n.º 1 c) do CPP, para não admitir o Recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional, por violação dos art.ºs 32.º n.º 1 e 20.º n.º 1 da CRP. Uma vez mais se frisa, ao recorrer-se para o STJ não se estava a utilizar um segundo grau de recurso, apenas se recorria da Decisão que não apreciou o recurso por o considerar intempestivo, o recurso para o STJ não visava a apreciação do objeto do processo, apenas que aquele Tribunal considerasse o recurso tempestivo, e em consequência o Tribunal da Relação de Coimbra fosse obrigado a apreciar o recurso tempestivamente interposto pelo arguido (garantindo, desta forma, um grau de recurso, ou seja, o direito ao recurso que está previsto no art.º 32.º n.º 1 da CRP.
18- O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra conheceu ex novo de um pressuposto adjetivo, argumentou-se dele para rejeitar a apreciação do recurso pelo STJ, que por sua vez, vem tomar a mesma posição assumida pela Relação de Coimbra, não admitindo um recurso do mesmo para o STJ, fazendo desta forma, uma errada e inconstitucional interpretação dos art.º 107.º n.º 6 e 400.º n.º 1 al. c), ambos do CPP, por violação dos art.ºs 203.º, 20.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e art.º 6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Assim,
19- É da aplicação pela Relação de Coimbra dos arts. 107.º n.º 6 e 400.º n.º 1 c) do CPP, que desde que tal errada interpretação/aplicação foi feita e conhecida pelo ora recorrente, desde logo se arguiu a sua inconstitucionalidade, por violação dos art.ºs 203.º, 20.º n.º 1 e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. A sua arguição foi suscitada a partir do momento que a Relação de Coimbra rejeita o recurso por extemporaneidade, com base no art.º 107.º n.º 6 do CPP, inconstitucionalidade desde logo arguida, nomeadamente no recurso para o STJ e na reclamação apresentada ao Presidente do STJ. Não podendo ter sido arguida na interposição de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, uma vez que foi o Tribunal de 1ª Instância que concedeu o referido prazo e acertadamente admitiu o recurso por tempestivamente interposto, tendo tal questão sido, apenas, suscitada na Decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, arguindo-se desde logo a sua inconstitucionalidade.
20- Uma última nota nos cabe relembrar, não obstante a decisão que indeferiu a reclamação não se referir expressamente ao entendimento dado ao art.º 107.º n.º 6 do CPP, certo é que esta Decisão vem confirmar e servir de fundamento às Decisões anteriores, pelo que conforme o disposto no n.º 6 do art.º 70.º da LTC, uma vez que de tais decisões cabia recurso ordinário, o facto de não se ter recorrido de imediato para o Tribunal Constitucional não fez precludir o direito de interpor o recurso quanto a essa questão.
21- Face ao supra exposto e por se entender que a interpretação do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, bem como do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça é inconstitucional e por tal inconstitucionalidade ter sido arguida, tempestivamente, tanto no recurso por si interposto para o STJ, bem como na reclamação para o Presidente do STJ, se requer que seja dado provimento ao presente recurso, e em consequência ser declarada a inconstitucionalidade dos art.º 400.º n.º 1 c) e 107.º n.º 6, ambos do CPP, por violação dos artigos 20.º e 32.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.
O Ministério Publico contra-alegou em sentido divergente do propugnado pelo recorrente, concluindo do seguinte modo:
1.º Segundo a delimitação realizada pelo próprio recorrente, constitui objeto do recurso a questão de inconstitucionalidade da “interpretação normativa do art.º 400.º, n.º 1, c) do CPP, no sentido de não haver recurso para o STJ do Acórdão da Relação que considera intempestivo o recurso que fora admitido na 1ª instância”.
2.º No nosso regime processual penal, apesar de um recurso ser admitido em 1ª instância, na Relação, o recurso deve ser rejeitado por decisão sumária do relator (artigo 417.º, n.º 6, alínea b), do CPP), se tiver sido interposto fora do prazo (artigo 420.º, n.º 1, alínea b) em conjugação com o artigo 414.º, n.º 2, ambos do CPP).
3.º Dessa decisão sumária cabe reclamação para a conferência (n.º 8 do artigo 417.º do CPP) com a composição e competência que lhe é fixada pelo artigo 419.º do CPP.
4.º Este regime, em que a conferência no tribunal competente para conhecer do recurso, tem a última palavra sobre a admissibilidade do mesmo, não viola as garantias de defesa do arguido, nas quais se inclui o recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).
5.º Assim, a norma do artigo 400.º n.º 1, alínea c), do CPP, na interpretação que constitui objeto do recurso (artigo 1.º), não é inconstitucional, devendo, consequentemente, negar-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
2. Delimitação do objeto do recurso
Pretende o recorrente ver apreciada, além do mais, a inconstitucionalidade da norma do artigo 107.º, n.º 6, do CPP, interpretada no sentido de que se «limita a permitir a prorrogação do prazo de recurso de 20 para 30 dias e que, mesmo havendo impugnação da matéria de facto, o prazo de recurso não pode exceder os 30 dias», por violação do disposto nos artigos 20.º, n.º 1, 32.º, n.º 1, e 203.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Não é possível, contudo, nesta parte, conhecer do objeto do recurso.
Com efeito, tendo o recurso de constitucionalidade natureza instrumental, apenas se justifica apreciar a inconstitucionalidade da norma (ou interpretação normativa) nele sindicada quando esta constitua efetivo fundamento jurídico da decisão recorrida, pois que, em tal caso, a eventual procedência do recurso, com a consequente invalidação das razões jurídicas da decisão, implicará necessariamente a alteração do julgado.
Não é, contudo, o que sucede quando o critério normativo que a parte reputa inconstitucional não foi usado na resolução da questão sub judicio, caso em que, em contraponto, se revelará inconsequente o eventual juízo de inconstitucionalidade que sobre ele venha a recair.
Com efeito, o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no despacho de que vem interposto o presente recurso de constitucionalidade, apenas se pronunciou quanto à recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que indeferiu, por intempestivo, recurso antes apresentado contra a decisão condenatória da primeira instância, tendo-se limitado a aplicar a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP.
Não vinha, portanto, aí posto em causa o prazo dentro do qual seria possível interpor recurso da decisão de primeira instância para a Relação ou qualquer questão atinente à prorrogação desse prazo, à luz disposto no artigo 107º, n.º 6, do CPP, mas tão somente a regra processual da não recorribilidade para o STJ dos acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que não conheçam do objeto do processo, a que se reporta a citada alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º desse diploma.
O recorrente, convidado a pronunciar-se sobre esta questão prévia, reconhece que «a decisão que indeferiu a reclamação não se [refere] expressamente ao entendimento dado ao artigo 107.º n.º 6 do CPP»; defende, porém, que «esta decisão vem confirmar e servir de fundamento às decisões anteriores, pelo que conforme o disposto no n.º 6 do artigo 70.º da LTC, uma vez que de tais decisões cabia recurso ordinário, o facto de não se ter recorrido de imediato para o Tribunal Constitucional não fez precludir o direito de interpor o recurso quanto a essa questão».
Mas assim não é.
Com efeito, ainda que se verificasse o específico condicionalismo processual previsto na invocada norma do n.º 6 do artigo 70.º da LTC – o que não é o caso, pois não está em causa a não interposição de recurso de constitucionalidade de decisão que o admite, por se ter optado por prévio recurso ordinário ou para uniformização de jurisprudência –, certo é que a citada norma legal «(…) não constitui qualquer exceção à regra que se extrai da alínea b) do n.º 1: a de que a decisão da qual se interpõe recurso de constitucionalidade há de ter aplicado a norma que constitui o objeto do próprio recurso de constitucionalidade» (cf., neste sentido, Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 587/07, 133/09 e 57/2012).
É que, como se explicita no citado Acórdão n.º 133/09, «daquele n.º 6 apenas decorre que a não interposição de recurso de constitucionalidade de certas decisões que o admitem, por se ter optado por recurso ordinário ou por recurso para uniformização de jurisprudência, não impede que, na improcedência deste recurso, se recorra da decisão que o julgue para o Tribunal Constitucional. Mas já não decorre daquele n.º 6 qualquer ficção de aplicação, na ulterior decisão, de todas as normas que haviam sido aplicadas na primeira decisão».
Neste conspecto, não se apreciará, por inútil, a questão de inconstitucionalidade atinente à norma do artigo 107.º, n.º 6, do CPP.
3. Do mérito do recurso
Delimitado, nos termos expostos, o objeto do recurso, cumpre apreciar se a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, quando interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que considera intempestivo o recurso que fora admitido na 1ª instância», viola o direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da CRP.
Constituindo a alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 9 de novembro, a base legal em que assenta a interpretação ora sindicada, importa, preliminarmente, sublinhar que ela, no contexto sistemático em que se insere, constitui expressa exceção ao princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais, enunciado no artigo 399.º do CPP, representando, pois, uma opção legal clara no sentido de, em desvio àquele princípio, não admitir recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de «acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objeto do processo».
Por outro lado, confrontando as redações vigente e pretérita do preceito ora em referência, verifica-se que este, após a reforma de 2007, deixou de enunciar como critério de insindicabilidade dos acórdãos das relações o que assentava no respetivo efeito (não pôr termo ao processo), substituindo-o por um critério objetivo que assenta no respetivo conteúdo decisório (não conhecer, a final, do objeto do processo).
Ora, havendo decisões que põem termo à causa mas não conhecem do objeto do processo, parece que se restringiu o elenco das decisões da Relação recorríveis para o STJ, ampliando-se, desse modo, o âmbito da exceção de irrecorribilidade, que passou a integrar, não apenas os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações, que não ponham termo à causa, mas também todos aqueles que ponham termo à causa mas não conheçam do objeto do processo, o que antes não estava, pelo menos na previsão literal da lei, previsto como fundamento de irrecorribilidade (cf., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, pág. 1002; José de Souto Moura, Recursos – A disciplina dos recursos em processo penal segundo a reforma da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, em Revista da Universidade Portucalense, n.º 13, 2008; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2009, pág. 318).
Não admitem, pois, recurso, no atual quadro legal de definição, positiva e negativa, das competências do Supremo Tribunal de Justiça, os acórdãos das relações que não julgam o mérito da causa (cf. artigos 97.º, n.º1, alínea a), e 419.º, n.º 3, alínea b), do CPP), sendo que foi com esse fundamento que a decisão recorrida considerou ser, no caso, irrecorrível o Acórdão da Relação de Coimbra que julgou intempestivo o recurso antes admitido pela 1ª instância.
A questão essencial que importa, assim, apreciar, à luz do parâmetro de constitucionalidade enunciado pelo recorrente (artigo 32.º, n.º 1, da CRP), é a de saber se o direito ao recurso, na sua expressão garantística máxima, confere ao arguido o direito de ver reapreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, não a decisão que o condena, no caso na pena de 17 anos de prisão, mas aquela que não admite, por intempestivo, o recurso dela interposto, fazendo, desse modo, operar o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida em primeira instância.
O instituto recursório, no âmbito do sensível domínio normativo em que nos movemos, encerra, como todos os demais institutos que nele se enquadram, uma tensão dialética permanente e nunca integralmente harmonizável entre duas finalidades antinómicas do direito processual penal: por um lado, a realização da justiça penal e, com ela, a efetivação do poder punitivo do Estado; por outro, a garantia de que tal desiderato não é alcançado com o sacrifício dos direitos fundamentais da pessoa humana, desde logo, do arguido, a quem a Lei Fundamental expressamente reconhece, no seu artigo 32.º, um direito fundamental de defesa (sublinhado, em geral, tal traço antinómico do direito processual penal, cfr. Figueiredo Dias, Código de Processo Penal. Processo Legislativo, Assembleia da República, 1999, fls. 31-30).
É, pois, na tentativa constitucionalmente imposta de realizar a concordância prática dos valores, de sinal inverso, que estruturam o processo penal, que o Tribunal Constitucional tem, na vasta jurisprudência sobre o tema, solucionado as diversas questões de inconstitucionalidade normativa suscitadas por alegada violação do direito fundamental ao recurso, parametrizando nuclearmente a sua apreciação à luz da injunção constitucional de que o arguido seja «julgado no mais curto prazo», o que só se alcança com um processo célere e eficaz, «compatível com as garantias da defesa» (entre elas, o direito ao recurso), que se prefiguram, assim, como limite imanente, aferido em concreto, de realização do processo penal (artigo 32.º, n.º 2, da CRP).
Os recursos são «meios de obter a reforma da sentença injusta, da sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Reimpressão, Coimbra, 1984, pág. 212), pretendendo-se, através deles, um novo exame da causa, por parte do órgão jurisdicional hierarquicamente superior.
Tal definição, embora construída no contexto processual civil, tem o mérito de sublinhar que o recurso é, antes de mais, um meio de reação contra a decisão de mérito que, no termo final do processo destinado a realizar a justiça do caso, resolve o litígio, condena ou absolve o arguido; por outro lado, traduzindo o recurso, em análise estrutural, «uma nova apreciação judicial de matéria já julgada» por instância jurisdicional superior (Manuel Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, volume 2.º, Lisboa, 1986, pág. 280), o que a expressa consagração constitucional do direito do arguido ao recurso quer significar e garantir é, nuclearmente o direito de ver reapreciada, pelo menos num grau de recurso, a sentença final condenatória contra si proferida (princípio do duplo grau de jurisdição).
Assim, situando o recurso nessa sua área nuclear de justificação e operacionalidade – enquanto meio primacialmente dirigido à correção de erros ou vícios das decisões de mérito ou de fundo –, sublinhou o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 118/90, constituir «a faculdade de recorrer da condenação (…) peça dominante do quadro dialético em que se desenvolve o processo penal: é ela que permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma da sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento», pelo que «a faculdade de recorrer da sentença condenatória proferida em primeiro julgamento, qualquer que seja a dimensão dada ao recurso, há de inserir-se naquele complexo de garantias que caracterizam o direito de defesa».
Reconhecendo-se, porém, que o recurso é, no seu contexto constitucional, um instrumento de garantia do direito de defesa do arguido, é este último que deve substantivamente nortear a maior ou menor latitude do meio garantístico, expandindo-o para outros domínios decisórios quando se demonstre, na dinâmica do processo, que só pela garantia do recurso se efetiva o direito de defesa.
Assim sendo, integrar-se-á também no âmbito nuclear de tutela constitucional do direito ao recurso, em tal perspetiva substantiva, a garantia de que se poderá recorrer perante um diferente e hierarquicamente superior órgão jurisdicional, não apenas da decisão final condenatória, mas também de todos os «atos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido» (Acórdão n.º 31/87 e, reiterando-o, acórdãos n.º 259/88, 265/94 e 610/96, entre outros).
Como estará dela excluída, por desnecessariamente compressora de outros direitos fundamentais cuja efetiva proteção implica uma eficaz repressão do crime, a pretensão de sindicar perante um tribunal superior «todo e qualquer ato do juiz», não podendo, pois, entender-se que «o legislador (esteja) constitucionalmente adstrito a consagrar a garantia de recurso constitucional quanto a todos os despachos proferidos em processo penal» (Acórdãos nºs. 31/87, 118/90, 332/91, 189/92 e 265/94).
A essa luz conciliatória, «se há de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos atos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, «se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido» (citado acórdão 31/87).
O Tribunal Constitucional, em concretização de tais premissas, de ordem axiológica e conceitual, não tem, assim, censurado, na perspetiva da sua conformação constitucional, variadíssimas soluções normativas, inclusive de índole interpretativa, que, relativamente a determinados atos judiciais situados afora daquele nuclear perímetro decisório, vedam ao arguido o direito ao recurso: irrecorribilidade do despacho do juiz que designa dia para julgamento em processo correcional (Acórdãos nºs. 31/87 e 118/90); irrecorribilidade do despacho que recebe a acusação por crime de emissão de cheque sem provisão (Acórdão n.º 259/88); irrecorribilidade do despacho de pronúncia (Acórdãos nºs. 353/91, 265/94, 610/96, 468/97, 30/01), irrecorribilidade do despacho de pronúncia, na parte em que decide de questões prévias ou incidentais (Acórdãos nºs. 216/99 e 387/99); irrecorribilidade do despacho do juiz que indefere requerimento de realização de diligências instrutórias (Acórdãos nºs. 371/00 e 375/00); irrecorribilidade do despacho que nega a liberdade condicional (Acórdão n.º 321/93); irrecorribilidade do despacho que declara a incompetência em razão do território (acórdão n.º 158/2003); irrecorribilidade dos acórdãos das relações proferidos em incidente de recusa de juiz (Acórdão n.º 565/2007).
Mas, em aplicação do mesmo critério de apreciação, o Tribunal não deixou de julgar inconstitucional a interpretação que, fundada na norma legal ora em apreço, na redação anterior à entrada em vigor da Reforma de 2007, considerou ser irrecorrível decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, pois que aqui, ao contrário do que se entendeu ocorrer nos recursos decididos pelos citados arestos, o direito de defesa do arguido, face à intensidade lesiva de uma tal decisão inovatória, que implicava a ampliação dos prazos de duração máxima da prisão preventiva, impunha, como condição da sua efetivação no processo, a possibilidade de contra ela reagir através de um grau de recurso (Acórdão n.º 686/04).
Do mesmo modo, apreciando interpretação normativa do mesmo artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, na sua anterior redação, que distinguia, para efeitos de admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, as decisões das relações que, por razões de natureza adjetiva, punham termo ao processo daquelas que operavam tal efeito mas pela apreciação do mérito do recurso, considerando apenas estas últimas sindicáveis, considerou o Tribunal Constitucional tratar-se de uma «distinção arbitrária ou injustificada quanto ao exercício do direito ao recurso que o n.º 1 do artigo 32.º abre ao arguido», pois que, «pondo a decisão questionada (…) realmente termo ao processo, é arbitrário ou injustificado, na perspetiva das garantias de defesa do arguido, distinguir entre pôr termo à causa por razões de direito penal substantivo e pôr termo à causa por razões de direito processual penal», para o efeito de sujeitar esta última categoria de decisões ao regime de insindicabilidade consagrado na citada norma legal (Acórdão n.º 597/00).
Os citados exemplos jurisprudenciais demonstram, pese embora a diversidade normativa dos recursos neles apreciados e o diferente sentido do juízo final de constitucionalidade neles formulado, que a razão da conformidade ou desconformidade constitucional das opções normativas então em apreciação, embora emergente da análise do conteúdo decisório do ato judicial de que se pretendia recorrer, assentava fundamentalmente na onerosidade dos efeitos dele decorrentes, na concreta dinâmica processual em que foram praticados, apenas se admitindo como constitucionalmente legítimas soluções de irrecorribilidade que não afetassem o núcleo essencial do direito de defesa do arguido (designadamente, por estarem em causa meras questões incidentais ou interlocutórias cuja decisão por uma única instância não comprometia a possibilidade de reagir, a final, pela via do recurso, contra a decisão de mérito) e postergando, por ilegítimas, todas aquelas que, por inviabilizarem a reapreciação de decisões de expressiva intensidade lesiva, atingiam a essência de um tal direito fundamental de defesa.
É também em função de uma tal perspetiva das coisas que se impõe analisar o presente recurso.
Sustentou a decisão recorrida, para justificar o juízo de não inconstitucionalidade ora em apreço, além do mais, que «o direito ao recurso só pode ser cabalmente exercido uma vez verificados e cumpridos todos os pressupostos e condições de que depende» e que «o artigo 32.º, n.º 1, da CRP (…) não dispensa o respeito por exigências e pressupostos processuais que os interessados devem satisfazer, como seja a interposição do recurso dentro do prazo legalmente estabelecido».
Sucede que, não se pondo em causa que assim seja, a questão que aqui se coloca é a de saber se é constitucionalmente legítimo que, tal como resulta da interpretação normativa sob recurso, a decisão da relação que julga inverificados os pressupostos processuais de um recurso antes admitido pela primeira instância seja, ela própria, insindicável por via de recurso, sobretudo quando, como é o caso, dela resultará o imediato trânsito em julgado da decisão da primeira instância que condena o arguido numa pena de prisão superior a 8 anos de prisão, da qual seria possível recorrer caso a relação confirmasse, em apreciação de mérito, essa mesma condenação (artigo 400º, n.º 1, alínea f), do CPP).
É que não está em causa, no caso vertente, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da relação que reaprecia, em sede de recurso, decisão da primeira instância que não conhece, a final, do objeto do processo, caso em que seria incontroversa, por manifestamente satisfeito o duplo grau de jurisdição, a não inconstitucionalidade da solução expressamente imposta pela alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP (cf., neste sentido, Acórdão n.º 44/2005, apreciando questão de inconstitucionalidade atinente à irrecorribilidade de acórdão da relação que reapreciou, em sede de recurso interlocutório, decisão da primeira instância que não julgou nulas escutas telefónicas).
Na situação processual dos autos, o arguido, depois de ver admitido pela primeira instância o recurso por si interposto da decisão condenatória (no prazo de 40 dias que lhe havia sido, por despacho, concedido, por força da especial complexidade do processo, caso viesse a requerer a reapreciação da prova gravada), vê-se confrontado com uma decisão da relação que, sem prévio contraditório, considerou que o n.º 6 do artigo 107.º do CPP apenas permite a prorrogação do prazo de recurso até ao limite máximo de 30 dias, não admitindo, com fundamento em extemporaneidade, o recurso.
Ora, se é certo que a questão da tempestividade do recurso foi apreciada pela primeira instância e pela relação, ainda que em sentidos divergentes, a verdade é que, sendo o recurso um meio de impugnação das «decisões cujos efeitos se repercutam negativamente na (…) esfera [do arguido]» (José Manuel Vilalonga, Direito de recurso em processo penal, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, págs. 368-369) só faz sentido equacionar o surgimento do correspondente direito na esfera jurídico-processual do arguido quando é proferida a primeira decisão desfavorável.
E, encarando o recurso como instrumento de garantia de um direito fundamental de defesa, só deverá ser reconhecido ao arguido, em tal caso, o poder de ver reapreciada a decisão por tribunal superior quando não lhe foi dada a prévia possibilidade de, expondo as suas razões de defesa, influir nessa primeira apreciação judicial desfavorável (assim é que, em jurisprudência constante, tem o Tribunal Constitucional decidido não violar o direito de recurso do arguido, entendido como direito a um duplo grau de jurisdição, a interpretação normativa que considera irrecorrível o acórdão condenatório da relação proferido no recurso interposto de decisão absolutória, pois que, pese embora a novidade da condenação pela relação, teve o arguido a possibilidade de expor previamente perante esta instância de recurso as suas razões de defesa; cf., entre outros, Acórdãos nºs. 682/06 e 424/09).
Sucede que, no caso sub judicio, como ressalta da dinâmica processual que precedeu a prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, não teve o arguido a possibilidade prévia de exercer o contraditório quanto à questão da intempestividade do recurso, cuja apreciação não se bastava, aliás, com a mera contagem do respetivo prazo, por forma a poder invocar perante a Relação, antes da tomada da decisão que julgou intempestivo o recurso, as razões que poderiam infirmar esse entendimento.
Sendo assim, o que se sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional, no presente recurso, é saber se a solução normativa de irrecorribilidade da decisão da relação que julga intempestivo recurso admitido pela primeira instância é, ou não inconstitucional, sendo certo que, relativamente a esta decisão, não pode o arguido, na interpretação normativa sindicada, dela recorrer num único grau, não sendo também válido, em tal contexto, o argumento invocado pela decisão recorrida de que, bastando-se o direito ao recurso, garantido no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, o arguido «já (o) utilizou ao recorrer para o tribunal da Relação».
Ora, feitas tais precisões, não se pode ignorar as particularidades processualmente relevantes do presente recurso, pelo que, sem risco de descaracterização da natureza necessariamente normativa da questão de constitucionalidade, é de ponderar, de um lado, a intensidade lesiva/ofensiva da decisão que, na interpretação sindicada, não admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça e, por outro, a circunstância de o arguido não ter tido a oportunidade de apresentar as suas razões de defesa antes de a mesma ser proferida.
Quanto ao primeiro aspeto, a necessidade do recurso deve aferir-se em função da sua utilidade como instrumento de garantia do direito de defesa do arguido. Ora, a efetivação do direito de defesa do arguido torna-se tão mais premente quanto mais intensos forem os efeitos que da decisão judicial decorrem para a sua esfera jurídica, sendo que nesta se incluem, não apenas os direitos fundamentais que a Constituição reconhece a qualquer cidadão, mas também aqueles que esta especialmente concede ao arguido enquanto visado por um concreto processo penal.
E nesta última categoria necessariamente se integra o próprio direito ao recurso, tendo em linha de conta que é tão gravosa a decisão condenatória como aquela que não admite o recurso dela interposto.
Ora, o Tribunal Constitucional, no já citado Acórdão n.º 597/00, embora não tenha perspetivado o objeto do recurso nos precisos termos ora equacionados, julgou efetivamente inconstitucional a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, na anterior redação, quando interpretada no sentido de serem insuscetíveis de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que versem sobre questões de direito processual penal.
Nesse recurso, tal como no presente, o que se discutia era precisamente interpretação normativa que, tendo por fonte norma que (apenas) não admitia recurso para o Supremo dos acórdãos, em recurso, das relações que não pusessem termo ao processo, considerava serem (também) irrecorríveis os acórdãos das relações que, por razões de natureza processual, põem termo ao processo, sendo praticamente idêntico ao dos presentes autos o contexto processual em que foi acolhida uma tal interpretação da lei.
E para o juízo então formulado quanto ao caráter «arbitrário» e «injustificado» dessa interpretação, na perspetiva das garantias de defesa do arguido, não pôde ter deixado de concorrer a perceção de que o efeito preclusivo de um acórdão da relação que, por razões de natureza processual, põe termo ao processo (aí, como aqui, o acórdão da relação rejeitou, por razões de forma, o recurso interposto da decisão de primeira instância que condenou o arguido por crime punível com pena superior a oito anos) não é equiparável, em termos de gravidade decisória, ao que decorre de um acórdão que não conhece do objeto do processo mas não lhe põe termo.
No primeiro caso, encerra-se a discussão quanto ao mérito da condenação, pois que da decisão da relação que rejeita o recurso inevitavelmente decorre o trânsito em julgado da decisão condenatória proferida pela primeira instância; no segundo, apenas transita a decisão quanto à questão adjetiva, de natureza interlocutória ou incidental, nela resolvida, mantendo-se aberta a possibilidade de discussão quanto à justiça material da condenação pela primeira instância.
Ora, fazendo apelo à apreciação conciliatória dos valores antinómicos do processo penal, que a Constituição impõe, não pode admitir-se, em nome de um processo penal célere e eficaz, a insindicabilidade da decisão da relação que rejeita, por intempestivo, sem contraditório, o recurso interposto de decisão da primeira instância que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a 8 anos de prisão.
Os efeitos altamente gravosos de uma eventual decisão errada ou ilegal, quanto a tal matéria, devem ser prevenidos pela garantia, nesse caso, de um grau de recurso, sendo certo que é precisamente em razão da gravidade de uma decisão condenatória da relação que aplica ao arguido pena de prisão em medida igual ou superior a 8 anos de prisão que a lei lhe confere o direito de dela recorrer até ao Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo-lhe, em tais casos, um triplo grau de jurisdição (artigo 400.º, n.º 1, alínea f), a contrario, do CPP).
O direito de defesa do arguido impõe, pois, que, pelo menos nos casos em que o Supremo teria competência, a final, para conhecer do mérito do recurso, se reconheça ao arguido o direito de ver por esta instância reapreciada a decisão da relação que, sem prévio contraditório, rejeitou, por intempestivo, o recurso interposto da decisão condenatória da primeira instância que foi por esta última admitido.
É que à gravidade da decisão acresce a circunstância de ao arguido não ter sido previamente facultada a possibilidade de expor as suas razões de defesa perante a instância decisória (a relação).
Assim, retomando a segunda variável de análise acima enunciada, o único modo de garantir ao arguido o efetivo exercício do seu direito fundamental de defesa é permitir que este possa sindicar perante o tribunal superior (o Supremo) a bondade de tão gravosa decisão de forma, expondo no respetivo recurso as razões de defesa que antes não teve a oportunidade de invocar.
Por tais razões, justifica-se a formulação de um juízo de inconstitucionalidade que, embora recaindo sobre a interpretação normativa sindicada, restrinja a sua amplitude, pois que, se não merece censura constitucional a interpretação que vede a reapreciação pela mais alta instância ordinária de recurso de todo e qualquer acórdão da relação que não admita, por intempestivo, recurso para si interposto, é já de admitir a desconformidade com a Lei Fundamental quando a decisão da relação que, com esse fundamento de natureza processual, rejeita o recurso interposto de sentença que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos, operando o respetivo trânsito, sem antes lhe dar a possibilidade de se pronunciar sobre essa questão prévia.
Se é constitucionalmente exigível que os autores de crimes sejam julgados e punidos, com celeridade e eficácia, pela sua prática, não é aceitável, também na perspetiva constitucional, que isso se consiga com um intolerável sacrifício do direito de defesa do arguido.
É o que sucederia, pelas enunciadas razões, com a adoção do entendimento normativo ora em apreço, pelo que cumpre julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não conhecer da questão de inconstitucionalidade atinente à norma do artigo 107.º, n.º 6, do CPP, interpretada no sentido de que se «limita a permitir a prorrogação do prazo de recurso de 20 para 30 dias e que, mesmo havendo impugnação da matéria de facto, o prazo de recurso não pode exceder os 30 dias»;
b) julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º1, da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de Acórdão da Relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido na 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena de prisão igual ou superior a oito anos de prisão;
c) consequentemente, conceder provimento ao recurso, devendo a decisão recorrida ser reformada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 6 de março de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento do recurso, no essencial porque, no sistema de recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade vigente em Portugal, não é admissível o recurso de amparo, sendo certo que o recorrente tinha a possibilidade de recurso direto de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação)