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Processo: n.º 522/94.
Requerente: Presidente da República.
Relator: Conselheiro Sousa e Brito.
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — Em 14 de Dezembro de 1994 o Presidente da República requereu ao Tribunal
Constitucional, nos termos dos n.os 1 e 3 do artigo 278.º da Constituição da
República e dos artigos 51.º, n.º 1, e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade dos artigos 5.º, n.º
2, e 8.º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto n.º 185/VI da Assembleia da República sobre
o «controlo público de rendimentos e património dos titulares de cargos
públicos», recebido em 6 do corrente na Presidência da República para
promulgação.
2 — O Presidente da República afirma preliminarmente que o Decreto n.º 185/VI
foi aprovado na sequência da nova apreciação do anterior Decreto n.º 174/VI,
sobre a mesma matéria, por si solicitada em mensagem fundamentada ao exercer o
direito de veto relativamente a esse diploma, e que mantém, na sua maior parte,
quanto ao novo Decreto, as reservas que anteriormente formulara. Há, todavia,
dúvidas de natureza jurídico-constitucional, que crê resultarem de uma opção que
consistiu em «tratar de forma uniforme situações e cargos que pela sua
especificidade exigiam, salvo melhor opinião, tratamento diferenciado». Essas
dúvidas constam dos fundamentos do requerido, que são as seguintes:
1 — O artigo 5.º, n.os 1 e 2, do Decreto em apreço, prevê, para o caso de
incumprimento culposo, a aplicação de sanções pela não apresentação das
declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º, após notificação para cumprimento
em determinado prazo.
Salvo quanto ao Presidente da República e ao Primeiro-Ministro, o incumprimento
culposo fará incorrer os infractores em declaração de perda do mandato, demissão
ou destituição judicial, consoante os casos, ou quando se trate da situação
prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º, em inibição por período de 1
a 5 anos para o exercício do cargo que obrigue à referida declaração e que não
corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira.
2 — As medidas sancionatórias previstas neste artigo 5.º parecem visar um efeito
claramente punitivo, assumindo a natureza de verdadeiras sanções penais, face ao
carácter de reprovação que implicitamente possuem e aos fundamentos
ético-jurídicos em que se baseiam.
Estas sanções envolvem, para os infractores, a privação ou restrição de direitos
fundamentais, como sejam os direitos de participação na vida pública e de acesso
a cargos públicos, constantes dos artigos 48.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da
Constituição.
3 — Por sua vez, o artigo 8.º do mesmo Decreto atribui competência:
— ao Tribunal Constitucional, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.º
aos titulares dos cargos referidos nas alíneas b), c) (com excepção do
Primeiro-Ministro), d), e) (relativamente aos juízes do Tribunal Constitucional
e do Tribunal de Contas), f) a l) do artigo 2.º;
— aos tribunais administrativos, para aplicar as sanções referidas no artigo 5.º
aos titulares dos cargos referidos na alínea m) do artigo 2.º;
— à entidade que detém poder disciplinar, para aplicar sanções aos juízes dos
tribunais supremos, dos tribunais judiciais de primeira e segunda instância, dos
demais tribunais administrativos e fiscais, dos tribunais militares e dos
tribunais marítimos.
4 — A opção pela atribuição de competência para a aplicação de sanções a
diferentes categorias de tribunais, e a entidades que detenham poder
disciplinar, definida apenas em função do estatuto pessoal dos titulares de
cargos públicos, poderá acarretar diferenciações de tratamento, sem fundamento
material bastante:
a) desde logo, em matéria de recurso das decisões punitivas. Os
titulares de cargos públicos que vejam as suas causas julgadas nos tribunais
administrativos, ou pelas entidades que sobre eles tenham poder disciplinar, têm
asseguradas, pelo menos, duas vias de recurso das decisões que lhes apliquem
sanções, sendo tal garantia negada aos titulares de cargos públicos sujeitos à
jurisdição do Tribunal Constitucional, o que poderá configurar violação do
princípio constitucional da igualdade;
b) e também relativamente ao Juiz Presidente do Supremo Tribunal
Militar e aos juízes vogais. As razões que levaram o legislador a sujeitar os
juízes do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas à jurisdição do
Tribunal Constitucional e que, aparentemente se prendem com o modo de designação
e o regime de exercício dos respectivos cargos, pareceria justificar para o Juiz
Presidente do Supremo Tribunal Militar e para os juízes vogais, idêntico
tratamento, o que não se verifica.
Para eles, a competência punitiva é cometida à entidade que detém poder
disciplinar, o que poderá configurar também, violação do princípio
constitucional da igualdade, desde logo, face ao diferente sistema de garantias
de independência, imparcialidade e isenção;
c) o mesmo se poderá passar relativamente aos gestores e aos
administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública, de
empresas de capitais públicos ou de economia mista. Parece não se descortinar,
com efeito, fundamento material bastante para subtrair a apreciação dos seus
casos à competência da entidade que sobre eles detém poder disciplinar
(claramente abrangido nos poderes de tutela), pela mesma ordem de razões —
profissionalidade, estatuto profissional próprio e carreira — que terão levado o
legislador a prever tal solução para os juízes;
d) que concluir, finalmente, da situação dos magistrados de
carreira que exercem funções no Tribunal Constitucional e no Tribunal de Contas,
relativamente aos restantes juízes?
5 — A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções a
entidades que detenham o poder disciplinar, poderá envolver também delicadas
questões de natureza jurídico-constitucional.
Prendem-se tais questões com a circunstância de esta opção do legislador o ter
obrigado a configurar como sanções de natureza disciplinar (v. artigo 5.º, n.º
2), verdadeiras sanções de natureza penal.
A degradação de sanções de natureza penal em sanções de natureza disciplinar em
função apenas das pessoas a quem se irão aplicar, poderá envolver, na
circunstância, não só violação do princípio constitucional da igualdade, como
também violação do princípio do Estado de direito democrático, na sua dimensão
de Estado de Justiça.
Acresce que, a não serem configuradas como sanções disciplinares, sempre sairia
violado o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição — reserva de juiz.
6 — A opção pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções aos
tribunais administrativos, poderá vir a ser também passível de censura
jurídico-constitucional, se se atentar no disposto no artigo 214.º, n.º 3, da
Constituição, na natureza penal das sanções e na circunstância do incumprimento
culposo resultar da prática (por acção ou omissão) de factos totalmente
estranhos ao exercício das funções, mesmo até após o termo desse exercício.
7 — Problemática poderá ser também a atribuição de competência para a aplicação
destas sanções ao Tribunal Constitucional.
Sendo inquestionável poder a competência do Tribunal Constitucional ser ampliada
por via da lei (artigo 225.º, n.º 3, da Constituição), afigura-se que tal
possibilidade terá sempre como limite as competências constitucionalmente
cometidas a outros tribunais. Ora, no caso em apreço, a aplicação de sanções de
natureza penal parece estar reservada pelo artigo 213.º, n.º 1, da Constituição
aos tribunais judiciais, como tribunais comuns em matéria criminal.
8 — No caso do infractor ser juiz, salvo tratando-se de juiz do Tribunal
Constitucional ou do Tribunal de Contas, o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto,
qualifica o incumprimento culposo, para efeitos disciplinares, como grave
desinteresse pelo cumprimento do dever profissional.
Ora, nos termos do artigo 94.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aos casos
de «grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais», correspondem
as sanções disciplinares de suspensão de exercício e de inactividade.
Poderá resultar daqui diferente tratamento consequente apenas da opção em
abranger, debaixo da mesma disciplina, cargos e situações que, pela sua
especificidade, aí parece não caberem — relativamente aos restantes titulares de
cargos públicos, os quais pelo mesmo incumprimento culposo estão sujeitos à
aplicação de sanções bem mais pesadas.
9 — Finalmente, sendo negado ao titular de cargos públicos sujeitos à jurisdição
do Tribunal Constitucional a garantia de recurso das decisões punitivas, a norma
constante do artigo 8.º, n.º 1, poderá violar o disposto no artigo 20.º, n.º 1,
da Constituição.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem, com efeito, reconhecendo de
forma uniforme que o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa dos
direitos e interesses legítimos dos cidadãos, previsto no referido artigo 20.º,
n.º 1, da Constituição, abrange a garantia do duplo grau de jurisdição quanto às
decisões relativas a quaisquer direitos fundamentais.
Em conclusão, o Presidente da República requer «a apreciação da
constitucionalidade dos artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto n.º
185/VI acima identificado, face às duvidas colocadas sobre a sua conformidade
com os princípios da igualdade e do Estado de direito democrático (artigos 13.º
e 2.º da Constituição), com a reserva de juiz (artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição), e ainda com o disposto nos artigos 214.º, n.º 3, 225.º, n.º 3 —
com referência ao artigo 213.º, n.º 1 —, e 20.º, n.º 1, da Constituição da
República».
3 — Notificado o Presidente da Assembleia da República, nos termos e para os
efeitos do disposto no artigo 54.º da Lei do Tribunal Constitucional, veio
oferecer o merecimento dos autos, juntando ainda os exemplares do Diário da
Assembleia da República relativos ao processo legislativo do Decreto n.º 185/VI.
II — Fundamentação
A) A regularidade formal do Decreto n.º 185/VI
4 — Importa, em primeiro lugar, averiguar se o processo de formação do Decreto
n.º 185/VI foi regular, tendo em vista que a Assembleia da República não apurou
a existência de maioria absoluta ao votar na generalidade o Decreto n.º 174/VI.
Pode, com efeito, perguntar-se se a Assembleia da República não deveria ter
confirmado, primeiro, por maioria absoluta, o vetado Decreto n.º 174/VI, só
depois podendo aprovar as alterações do mesmo, de que resultou o Decreto n.º
185/VI. Caso se entenda que o n.º 2 do artigo 139.º da Constituição proíbe a
introdução de alterações em novo decreto, sem prévia confirmação do decreto
vetado, teria havido por isso violação da norma constitucional. A consequência
seria a inconstitucionalidade formal de todas as normas do diploma, que conviria
apreciar, quanto a todas as normas que são objecto do processo, antes de passar
às questões de inconstitucionalidade material suscitadas relativamente a cada
uma dessas normas. E caso se entendesse que, nessa hipótese, o Decreto n.º
185/VI seria não apenas inconstitucional, mas inexistente, poderia questionar-se
a competência do Tribunal Constitucional para o apreciar, o que seria uma
questão prévia, a resolver igualmente em primeiro lugar. Caso se entenda que
não houve violação do n.º 2 do artigo 139.º, torna-se desnecessário apurar se a
consequência sancionatória da violação é a inconstitucionalidade formal ou a
inexistência, deixando de ser posta a referida questão de competência.
5 — Esta questão da regularidade formal do processo de formação do Decreto n.º
185/VI não foi suscitada pelo Presidente da República, o que não seria, aliás,
obstáculo à sua apreciação pelo Tribunal (cfr. o n.º 5 do artigo 51.º da Lei n.º
28/82). Mas foi-o perante a Assembleia da República, pelo seu Presidente,
depois de terminada a discussão na generalidade do Decreto n.º 174/VI, no âmbito
da nova apreciação do mesmo, solicitada na mensagem fundamentada do Presidente
da República que acompanhou o veto do diploma (e que foi publicada no Diário da
Assembleia da República, II Série-A, de 22 de Setembro de 1994, p. 1100). O
Presidente da Assembleia da República viu-se então «confrontado com uma dúvida
jurídica», em face da informação dos serviços jurídicos da Assembleia de que
«não é habitual a votação na generalidade versar sobre a confirmação do diploma
vetado», visto que «tendo sido apresentadas propostas de alteração, não seria
necessária, nos termos regimentais e constitucionais, uma confirmação do decreto
com 116 votos favoráveis» (Diário da Assembleia da República, I Série, de 23 de
Novembro de 1994, p. 521). No seguimento da discussão desta dúvida, o
Presidente da Assembleia declarou seguir a interpretação contrária à sua, mas
«correspondente à generalidade da doutrina aqui firmada. Nesses termos —
concluiu — procederemos à votação, na generalidade, deste decreto, para, por
maioria simples, apurar a vontade da Câmara e, de seguida, passarmos à discussão
na especialidade». O sentido da votação foi, portanto, nas anteriores palavras
do deputado Guilherme Silva, que declarou exprimir o entendimento da bancada do
PSD, «não para confirmar o decreto mas para passarmos à sua discussão na
especialidade» (ibidem).
O decreto «foi aprovado com votos a favor do PSD e votos contra do PS, do PCP,
do CDS-PP, de Os Verdes e dos Deputados independentes João Corregedor da Fonseca
e Mário Tomé» (ibidem). Seguiu-se a discussão na especialidade, em que a única
proposta de alteração aprovada foi a da eliminação do n.º 2 do artigo 3.º do
Decreto n.º 174/VI — apresentada pelo PCP, e coincidente com proposta idêntica
do PSD, que ficou prejudicada —, o qual dispunha:
Artigo 3.º
2 — O titular de cargo público no estado civil de casado apresenta os elementos
referidos nas alíneas a), b) e c) do número anterior quando sejam próprios e
quando, sendo comuns, deles detenha a administração.
A aprovação desta alteração foi por unanimidade e na votação final global do
Decreto n.º 174/VI com as alterações já aprovadas foi o mesmo «aprovado, com
votos a favor do PSD e votos contra do PS, PCP, do CDS-PP e de Os Verdes»
(ibidem p. 527). O novo Decreto resultante foi enviado ao Presidente da
República com o n.º 185/VI.
Temos, assim, por certo que o Decreto n.º 185/VI foi votado sem apuramento de
maioria absoluta e sem confirmação, como um novo decreto, como tal foi também
processado, voltou à Comissão competente para efeito de redacção final (artigo
169.º, n.º 5, do Regulamento da Assembleia da República), cujo texto, foi
publicado com o novo n.º 185/VI no Diário da Assembleia da República (II
Série-A, de 9 de Dezembro de 1994) e foi enviado ao Presidente da República para
promulgação, nos termos do n.º 2 do artigo 170.º do Regimento, e não para
promulgação no prazo de oito dias a contar da sua recepção, nos termos do n.º 1
do mesmo artigo, como aconteceria se tivesse havido confirmação.
6 — Comparando o conteúdo dos dois decretos, verifica-se que a eliminação do n.º
2 do artigo 3.º é uma alteração substancial, que visou aparentemente aceitar uma
das críticas do Presidente da República na sua mensagem sobre o Decreto n.º
174//VI, nomeadamente quando dizia que «do conteúdo de algumas das suas normas
se pode concluir que passará a ser maior a possibilidade de fugir à exigência de
declaração dos reais rendimentos e património dos titulares de cargos públicos —
o que é susceptível de pôr em causa na prática, a utilidade e eficácia de tal
declaração» (Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 22 de Setembro de
1994, p. 1100). Ora o n.º 2 do artigo 3.º foi precisamente criticado na
discussão parlamentar por proporcionar um meio de ocultar os reais rendimentos e
património dos declarantes, tendo o seu texto sido votado em Comissão só com os
votos dos deputados do PSD, que inicialmente também se opuseram à sua avocação
pelo Plenário na votação na especialidade (veja-se o Diário da Assembleia da
República, II Série-A, de 14 de Julho de 1994, p. 942(32) — votação do projecto
de lei n.º 330/VI. Diário da Assembleia da República, I Série, de 14 de Julho
de 1994, p. 520 — deputado António Filipe, p. 2982 — deputado José Vera Jardim
—; cfr. ainda o Diário da Assembleia da República, I Série, de 23 de Novembro de
1994, p. 520 — deputado Narana Coissoró, p. 523 — deputado António Filipe). É,
assim, de admitir, que esta disposição era visada na mensagem do Presidente da
República e que a maioria parlamentar concordou com esse fundamento da mensagem.
7 — Tendo sido estes os factos do processo legislativo, deverá dizer-se que não
houve violação do artigo 139.º, n.º 2 da Constituição.
A interpretação que a Assembleia da República seguiu, em conformidade com a sua
prática, corresponde à doutrina anteriormente defendida por este Tribunal no
Acórdão n.º 320/89 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º Vol., Tomo I, pp.
7 e segs.), perante dúvida então suscitada, e não repetida agora, do Presidente
da República. Tem sido também defendida, antes e depois daquele acórdão, por
Jorge Miranda (cfr., por último, Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1990, pp.
438 e segs.) e por Gomes Canotilho e Vital Moreira (cfr., por último,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., 1993, nota IX ao artigo
139.º) entre outros. O argumento principal do Acórdão n.º 320/89 é o seguinte:
Por maiores que sejam as diferenças entre a reapreciação de decretos vetados
(conforme eles tenham sido vetados nos termos do artigo 139.º, n.º 1, ou no
quadro dos artigos 278.º e 279.º), o facto é que, em qualquer caso, se abrem
três possibilidades à Assembleia da República (ou seja, à maioria interessada no
decreto): ou tentar confirmar o decreto com a maioria qualificada
constitucionalmente exigida, ou conformar-se com o veto (não insistindo na
confirmação ou arriscando a não obtenção desta) ou, finalmente, reformular o
decreto, tentando afastar os motivos que fundamentaram o veto.
Não existe nenhuma justificação para encerrar a Assembleia da República (ou a
maioria parlamentar) no dilema de confirmar o decreto pela maioria
constitucionalmente exigida ou vê-lo rejeitado, se a não conseguir reunir.
Justifica-se por isso a aplicação analógica do princípio constante do artigo
279.º, quanto à possibilidade de reformulação (p. 48).
Pode mesmo acontecer, acrescente-se, que o Presidente da República concorde com
a oportunidade, ou mesmo necessidade, de legislar sobre a matéria, divergindo,
porém, em maior ou menor medida, quanto ao conteúdo do diploma. Mesmo que a
maioria parlamentar estivesse disposta a reformular o diploma de acordo com as
objecções do Presidente da República, estaria impedida de fazê-lo se, por
qualquer motivo, não obtivesse a maioria qualificada exigível para a
confirmação. E, não poderia tão-pouco ser renovado na mesma sessão legislativa
(n.º 3 do artigo 170.º do Regimento da Assembleia da República). Ainda que se
duvidasse que este regime legal fosse imposto pela Constituição (Gomes Canotilho
e Vital Moreira, ob. cit., nota IX ao artigo 170.º, in fine, parecem ter
dúvidas), sempre estariam subvertidos os critérios de formação democrática da
vontade legislativa nomeadamente previstos na Constituição, sem razão plausível.
A solução de «reabertura do processo legislativo» (Gomes Canotilho e Vital
Moreira, ibidem) é, assim, a que menos restringe a competência legislativa da
Assembleia sem prejudicar as competências do Presidente da República (ver,
quanto ao último ponto, o referido Acórdão, pp. 42, 48-9). É, também, a que
mais respeita a liberdade política da maioria parlamentar na gestão da sua
divergência com o Presidente da República, suscitado pelo veto, e que não lhe
impõe o ónus injustificado de alargar a maioria quando estiver disposta a
aceitar as razões do veto.
Reconhece-se que esta interpretação permite que a maioria da Assembleia
reformule o decreto, sem atender a todas, ou a nenhumas, objecções do Presidente
da República. Abstraindo da hipótese de uma alteração das circunstâncias que
possa ter retirado a base a todas ou a algumas das objecções, a reformulação
ainda pode ter o sentido útil de adiar o conflito institucional para mais tarde,
sobretudo se houver razões para pensar que um segundo veto pode então ser
evitado, ou pode ser substituído pela fiscalização preventiva da
constitucionalidade, e tal parecer politicamente preferível. Não deixam estas
razões de ser ainda atendíveis, dado que o Presidente da República recupera
então perante o novo decreto os seus poderes normais de vetar ou de requerer a
fiscalização preventiva. Só haveria «fraude à Constituição» (a expressão é do
Conselheiro Nunes de Almeida, na declaração de voto no citado Acórdão n.º
320/89), se o «novo decreto» não tivesse qualquer novidade normativa em relação
ao que foi vetado, tornando ineficaz o veto, mas então seria também, por isso
mesmo, inconstitucional, (ou até inexistente, para alguns) violando o n.º 2 ou o
n.º 3 do artigo 139.º, que nessa hipótese não dispensam a maioria qualificada de
confirmação.
8 — Estas razões, no essencial, justificam também a possibilidade de
reformulação especialmente prevista no n.º 3 do artigo 279.º para a hipótese de
veto por inconstitucionalidade. Também aí pode a maioria parlamentar aceitar a
razão do veto, expurgando pura e simplesmente a norma inconstitucional ou
deixando caducar o projecto ou proposta de lei, opor-se através da confirmação
por maioria qualificada ou enveredar pela terceira via da reformulação. Só que
a razão da inconstitucionalidade tem compreensivelmente mais força, porque
confirmada por acórdão do Tribunal Constitucional e, por isso, não só a
confirmação apenas tem o efeito de permitir a promulgação, que não é
obrigatória, como também a reformulação não dispensa o expurgo [cfr., sobre o
último ponto, o Acórdão n.º 334/94, Diário da República, II Série, de 30 de
Agosto de 1994, pp. 8996(10) e segs.], pelo que não pode deixar de dar inteira
satisfação à razão do veto. Não é porque o expurgo de norma inconstitucional
pode implicar alterações na redacção ou na substância de outras normas, que se
admite no n.º 3 do artigo 279.º a reformulação. Se fosse esse o fundamento só
seriam permitidas as alterações implicadas pelo expurgo. Ora, no novo diploma,
não só todas as alterações são permitidas, como todas as suas normas, mesmo as
imodificadas, podem ser sujeitas a apreciação preventiva da constitucionalidade,
precisamente porque se quer permitir um novo diploma. Justifica-se, portanto, a
analogia a partir do artigo 279.º para preencher a lacuna do artigo 139.º
9 — Finalmente, não se pode dizer que a solução adoptada fomente um conflito
institucional entre o Presidente da República e o Parlamento, quando ela vem
permitir um meio de o sanar por acordo entre ambos os órgãos (de outro modo
dificultado), nem que assim se inicie um círculo vicioso. O círculo só seria
vicioso se o decreto apresentado como novo não contivesse qualquer novidade
normativa, mas como então haveria violação da Constituição, a sanção jurídica da
violação logo quebraria o círculo ainda que com eventuais custos políticos. Se
as alterações não forem aparentes, mas reais, mas ainda assim insuficientes para
afastar as razões do veto, então não será de prever que a maioria parlamentar
inicie uma rota de colisão, a não ser que esteja segura da não
inconstitucionalidade do diploma e da própria capacidade de o confirmar, ou que
pretenda indirectamente transferir o conflito político para o plano jurídico,
esperando uma decisão do Tribunal Constitucional na segunda volta… Em qualquer
caso, sempre se quebraria o círculo.
10 — É claro que o Regimento da Assembleia da República não pode ser invocado
contra a Constituição. Há antes que interpretá-lo em conformidade com a
Constituição, o que já foi feito no Acórdão n.º 320/89, relativamente aos
artigos 165.º e 166.º, da redacção então vigente, de teor idêntico aos artigos
169.º e 170.º, actualmente em vigor. Há que fazer a «conjugação» das duas
disposições (como disse o deputado Narana Coissoró na discussão: Diário da
Assembleia da República, I Série, de 23 de Novembro de 1994, p. 522),
entendendo-se que o n.º 3 do artigo 169.º («a votação na generalidade versa
sobre a confirmação do decreto da Assembleia da República») se refere às
hipóteses expressamente reguladas no artigo 139.º da Constituição e nos n.os 1 e
3 do artigo 170.º, deixando em aberto, tal como a letra da Constituição, a
possibilidade da aprovação na generalidade de um novo decreto, se forem
introduzidas alterações. No n.º 2 do artigo 170.º reconhece-se, porém, que, se
a Assembleia introduzir alterações, o decreto é «novo», sendo enviado ao
Presidente da República «para promulgação» nos termos gerais do n.º 1 do artigo
139.º e não nos do n.º 2 do mesmo artigo e do n.º 1 do artigo 170.º («para
promulgação no prazo de oito dias») relativos a decretos confirmados. É que o
decreto não se considera como confirmado, mesmo que tenha havido uma votação de
confirmação na generalidade, a partir do momento em que forem aprovadas
alterações.
11 — Demonstrado que o processo legislativo do Decreto n.º 185/VI foi regular e
que não houve violação do n.º 2 do artigo 139.º da Constituição, é certo que não
há por isso, inconstitucionalidade formal do decreto, independentemente das
questões conceptuais e de competência do Tribunal conexas com a violação, e de
que o Tribunal tratou no Acórdão n.º 320/89.
B) A questão da inconstitucionalidade material do n.º 2 do artigo 5.º
12 — Dispõe o artigo 5.º, n.os 1 e 2, do Decreto n.º 185/VI, relativo ao
incumprimento dos deveres por parte dos titulares de cargos públicos previstos
no artigo 2.º, e de apresentação da declaração dos seus rendimentos, bem como do
seu património e cargos sociais, nos termos do artigo 3.º, e da apresentação da
nova declaração pelas mesmas pessoas, nos termos do artigo 4.º:
Artigo 5.º
(Incumprimento)
1 — Em caso de não apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º,
a entidade competente para o seu depósito notificará o titular do cargo a que se
aplica a presente lei para a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos, sob
pena de em caso de incumprimento culposo, salvo quanto ao Presidente da
República e ao Primeiro-Ministro, incorrer em declaração de perda do mandato,
demissão ou destituição judicial, consoante os casos, ou quando se trate da
situação prevista na primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º, incorrer em inibição
por período de 1 a 5 anos para o exercício de cargo que obrigue à referida
declaração e que não corresponda ao exercício de funções como magistrado de
carreira.
2 — No entanto, no caso de o infractor ser juiz, a notificação é efectuada sob
cominação de o incumprimento culposo ser qualificado, para efeitos
disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional,
salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas,
aos quais se aplica o regime geral.
As dúvidas suscitadas pelo Presidente da República quanto ao n.º 2 têm a ver com
a qualificação como infracção disciplinar, quando praticada por juiz, do mesmo
facto ilícito que, quando praticado por qualquer outro destinatário da norma nos
termos do n.º 1, seria de qualificar, segundo pressupõe o Presidente da
República, como infracção penal. Em consequência do n.º 2 do artigo 5.º,
«verdadeiras sanções de natureza penal», seriam configuradas como sanções de
natureza disciplinar. Haveria assim uma «degradação de sanções de natureza
penal em sanções de natureza disciplinar em função apenas das pessoas a quem se
irão aplicar». Tal implicaria:
— a violação do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da
Constituição), na sua dimensão de Estado de Justiça;
— a subtracção aos tribunais de competência para reprimir infracções penais, e,
por isso, «sempre seria violado o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição — reserva
de juiz», a não serem configuradas como sanções disciplinares as sanções das
infracções qualificadas no n.º 2 do artigo 5.º
Acresce que tanto a diferente qualificação do mesmo facto ilícito, como a
diferente natureza de sanções, uma e outra coisa em função apenas das qualidades
das pessoas, violaria o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da
Constituição).
Além disso, através da qualificação como infracção disciplinar de «grave
desinteresse pelo cumprimento dos deveres profissionais», tornam-se aplicáveis
as sanções disciplinares de suspensão de exercício e de inactividade (artigo
94.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais), em vez das «sanções bem mais
pesadas» de perda de mandato, demissão ou destituição judicial, ou de inibição
por período de 1 a 5 anos para o exercício de cargo, pelo que seria de novo
violado o princípio da igualdade (artigo 13.º da Constituição).
13 — Importa saber, antes de mais, se o incumprimento culposo dos deveres de
apresentação de declaração dos artigos 3.º e 4.º do Decreto é uma infracção
penal e se as penas correspondentes são de direito penal. Todas as dúvidas
suscitadas acerca da constitucionalidade do artigo 5.º, n.º 2, partem
implicitamente do pressuposto de que há um conceito constitucional de direito
penal, que impõe um regime jurídico uniforme, quer de direito substantivo, quer
processual, das respectivas infracções. Com efeito todas elas, excepto a última
dúvida sobre a igualdade de «peso» das sanções, abstraindo da sua natureza,
dependem logicamente: primeiro, da tese de que há limites constitucionais à
qualificação da referida infracção como disciplinar e ao regime de
correspondente sanção como sanção disciplinar, limites que só podem derivar de
um conceito material de direito penal; segundo, da tese de que quer as
infracções quer as sanções previstas no n.º 1 do artigo 5.º têm natureza penal.
E mesmo o «peso» dessas sanções do n.º 1 do artigo 5.º, em que se baseia o
último argumento a favor da violação do princípio da igualdade, acaba por ser
afastado pela natureza penal, e não apenas disciplinar das sanções.
14 — Haverá sanções que pelas características que integram a sua natureza ou
essência são penais, correspondentes a infracções que também são essencialmente
penais, e que a Constituição impõe que sejam reconhecidas como tais? O
Presidente da República aponta no n.º 2 do seu requerimento três características
essenciais do direito penal, que caracterizariam as normas do artigo 5.º:
— o «carácter de reprovação que implicitamente possuem» as sanções, que têm
nessa medida carácter repressivo e não preventivo;
— «os fundamentos ético-jurídicos em que se baseiam», isto é, em relação com a
reprovação que exprimem, a culpa referida ao facto, que é a base, critério ou
fundamento de um juízo ético de reprovação, reconhecido pelo direito, o que
pressupõe a violação de normas éticas e não meramente jurídicas; isto é,
seguindo uma caracterização corrente, de normas que consagram interesses ou
valores universais, que não são apenas funcionais de uma instituição particular;
— a sanção tem como efeito «a privação ou restrição de direitos fundamentais,
como sejam os direitos de participação na vida pública e de acesso a cargos
públicos, constantes dos artigos 48.º, n.º 1, e 50.º, n.º 1, da Constituição».
Estas características, assim interpretadas, servem, segundo alguns (como, por
exemplo, Maurach-Zipf, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 10.ª ed., 1983, pp. 8 e
segs.), de critério material de distinção entre o direito penal e o direito
disciplinar. Este último teria carácter preventivo, visando a protecção dos
interesses particulares de certa instituição, ou grupo social — e não a defesa
de valores éticos ou de interesses gerais da sociedade —, com base na
perigosidade do agente para aqueles interesses particulares revelada no seu
comportamento, ou na necessidade preventiva, para os membros de instituições ou
grupos, da sua punição, e tendo as suas sanções como efeito a privação ou
modificação das posições ou direitos dos indivíduos dentro das instituições ou
grupos em causa, por cujos órgãos de poder seriam em primeira linha aplicadas.
Tal problemática esteve presente na discussão no interior da jurisprudência
portuguesa, sobre se a pena de demissão do cargo político que o titular exerça e
a medida de inibição para o exercício de qualquer outro cargo da mesma natureza,
previsto no n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 4/83 de 2 de Abril, a lei que o
Decreto n.º 185/VI visa substituir, eram sanções disciplinares (assim o acórdão
da Relação de Lisboa, de 21 de Janeiro de 1987, Colectânea de Jurisprudência,
12-I, pp. 152 e segs.) ou penais [assim os acórdãos da Relação de Lisboa, de 17
de Dezembro de 1986, ibidem, 13-V, p. 179; de 4 de Fevereiro de 1987, ibidem,
12-I, pp. 164 e segs.; de 18 de Fevereiro de 1987, ibidem, 12-I, pp. 168 e
segs.; do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Julho de 1987 (Proc. n.º 38 997),
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 369, pp. 333 e segs.; de 8 de Julho de
1987 (Proc. n.º 39 001), ibidem, p. 339; de 28 de Julho de 1987 (Proc. n.º 39
060), ibidem, p. 398; de 28 de Julho de 1987 (Proc. n.º 39 123), ibidem, p. 414;
de 7 de Outubro de 1987, ibidem, n.º 370, pp. 282 e segs.; de 11 de Novembro de
1987 (Proc. n.º 39 183), ibidem, n.º 371, pp. 219 e segs.; de 25 de Novembro de
1987 (Proc. n.º 39 140), ibidem, n.º 371, pp. 236 e segs.; de 25 de Novembro de
1987 (Proc. n.º 39 189), ibidem, n.º 371, pp. 240 e segs.; de 25 de Novembro de
1987 (Proc. n.º 39 227), ibidem, n.º 371, pp. 272 e segs.; de 16 de Dezembro de
1987 (Proc. n.º 39 182), ibidem, n.º 372, pp. 291 e segs.].
15 — Seja como for, cumpre reconhecer que a Constituição acolhe a distinção
entre o direito penal e o direito disciplinar, nomeadamente quanto à diferente
configuração do princípio da jurisdicionalidade, uma vez que da Constituição
resulta que no direito disciplinar inexiste a concentração de competência
jurisdicional, que se verifica em matéria crime nos tribunais comuns (artigo
213.º, n.º 1). E não se pode dizer que a Constituição reconhece simplesmente um
conceito histórico de direito disciplinar, quando é certo que faz exigências ao
direito disciplinar desconhecidas da Constituição de 1933.
Na verdade, a Constituição consagrou uma evolução legislativa anterior, através
da qual o direito disciplinar se autonomizou do direito penal. Tanto o direito
disciplinar dos funcionários públicos como o dos militares derivou
historicamente do direito penal especial destas classes ou estados de pessoas
(cfr. Maurach-Zipf, ibidem, Stratenwerth, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 3.ª
ed., 1981, p. 445, Jakobs, Strafrecht, Allgemeiner Teil, 2.ª ed., 1991, pp. 56 e
segs.). A evolução histórica do direito disciplinar caracteriza-se precisamente
por um movimento liberalizador, por um lado, de descriminalização, reservando ao
direito penal apenas aquelas faltas que põem em perigo a defesa da sociedade no
seu conjunto e não apenas a funcionalidade duma instituição particular e, por
outro lado, de «desestatização», no sentido de que não há um superior dever de
fidelidade de certos «estados» de cidadãos, pelo que o comportamento fora da
instituição só pode relevar disciplinarmente se afectar a confiança
indispensável ao exercício do cargo. Considerações semelhantes, algo atenuadas,
valem para as sanções disciplinares das associações de profissionais livres em
profissões cujo exercício depende de título ou autorização pública (advogados,
solicitadores, médicos, revisores de contas, etc.).
Mas a tendência para a progressiva autonomização do direito disciplinar
relativamente ao direito penal é contrabalançada pelo progressivo alargamento
das garantias do direito penal ao direito disciplinar. Marcos históricos desta
última evolução são, por exemplo, a inclusão do «regime geral de punição das
infracções disciplinares» na alínea d) do artigo 168.º da Constituição na 1.ª
revisão constitucional, e o acórdão do Tribunal europeu dos Direitos do Homem no
caso König de 28 de Junho de 1978 (Cour européenne des Droits de l’Homme, série
B, n.º 25, pp. 42 e segs.), que considerou que a sanção disciplinar de inibição
do exercício da profissão de médico estava sujeita às garantias jurisdicionais e
processuais do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
jurisprudência logo confirmada, quanto à suspensão do exercício da mesma
profissão, nos casos Le Compte (acórdãos de 23 de Junho de 1981, Cour européenne
des Droits de l’Homme, série A, n.º 48, p. 21, e de 10 de Fevereiro de 1983,
ibidem, série A, n.º 58, p. 15).
Assim a Constituição reconhece expressamente a autonomia do direito disciplinar,
a sua diversidade institucional e a pluralidade de competências sancionatórias
que o caracterizam [cfr. os artigos 168.º, n.º 1, alínea d), e 282.º, n.º 3,
quanto ao direito disciplinar geral; 160.º, n.º 1, 163.º, n.º 1, alíneas b) e
c), 182.º, n.º 3, alínea b), quanto à disciplina dos deputados; 27.º, n.º 3,
alínea c), e 167.º, alínea d), quanto ao direito disciplinar militar; 219.º,
quanto ao direito disciplinar dos juízes; 220.º, n.º 3, quanto ao dos
funcionários de justiça; 221.º, n.º 4, quanto ao do Ministério Público; 269.º,
n.º 3, e 271.º, n.º 1, quanto ao dos funcionários e agentes administrativos].
Mas é de acentuar que nas disposições de carácter geral a Constituição
preocupa-se em estender ao direito disciplinar as garantias do direito penal. O
princípio da legalidade, em matéria de fontes de direito, é aplicável de forma
atenuada, na medida em que não abrange a definição integral das infracções, nem
da conexão entre estas e as correspondentes sanções. Não obstante, o regime
geral de punição das infracções disciplinares é da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República [artigo 168.º, n.º 1, alínea
d)] e a disciplina das Forças Armadas é da reserva absoluta da mesma competência
[artigo 167.º, alínea d)]. E o princípio da retroactividade da norma mais
favorável, no confronto com o do respeito pelo caso julgado na hipótese do n.º 2
do artigo 282.º, é regulado uniformemente em matéria penal e disciplinar.
16 — Em face da evolução histórica e do regime constitucional, as diferenças
entre o direito penal e o direito disciplinar não têm sobretudo a ver com a
natureza das respectivas infracções nem com os fins das sanções correspondentes
(acentuando a identidade veja-se neste aspecto cfr. Beleza dos Santos, Ensaio
sobre a introdução ao direito criminal, 1968, p. 113, e, em geral, sobre a
complementariedade dos dois ramos de direito, cfr. Stratenwerth, ob. cit.,
ibidem; Hassemer (co-autor), Kommentar zum Strafgesetzbuch, I, 1990, pp. 103 e
segs.; Roxin, Strafrecht, Allgemeiner Teil, I, 1992, p. 235). Tanto o direito
penal como o disciplinar têm como fins a repressão da culpa e a prevenção de
infracções futuras. A delimitação do ilícito em cada ramo de direito não
depende só da natureza dos interesses, mas também da gravidade e da direcção das
ofensas. Os interesses da Administração Pública também são penalmente
protegidos —, a funcionalidade da Administração é especialmente visada em certos
crimes, como na usurpação de funções (artigo 400.º do Código Penal) e na
corrupção passiva para acto ilícito (artigo 422.º do Código Penal) —, embora só
contra certas formas mais graves de ofensa. Não pode haver punição disciplinar
sem culpa, porque o princípio constitucional de culpa tem a ver com a existência
de punição e não com o ramo de direito em que se pune. A mesma privação ou
limitação de direitos pode ser o efeito quer de sanções penais, quer de sanções
disciplinares. Assim, a demissão, a suspensão de cargo, a interdição de
exercício de profissão ou actividade, a incapacidade eleitoral e a incapacidade
para ser eleito são penas acessórias no Código Penal (artigos 66.º a 69.º) e
poderiam ser penas principais (como eram no Código anterior as penas especiais
para os empregados públicos — demissão, suspensão e censura: artigo 57.º — e as
penas de suspensão dos direitos políticos: artigos 60.º e 61.º). A Constituição
prevê sanções disciplinares que envolvem a privação de direitos fundamentais,
como é caso excepcional da prisão disciplinar imposta aos militares [artigo
27.º, n.º 3, alínea c)] e de perda do mandato de deputado [artigo 163.º, n.º 1,
alíneas b) e c)].
As características apontadas por alguma doutrina e pelo Presidente da República
como específicas do direito penal encontram-se, todas elas, no direito
disciplinar.
17 — Não quer isto dizer que a Constituição não proíba «a degradação de sanções
de natureza penal em sanções de natureza disciplinar». A especificidade do
direito penal é reconhecida na Constituição através de três princípios que ou
são exclusivos do direito penal ou têm nele uma configuração única. São eles os
princípios da legalidade [artigos 29.º e 168.º, n.º 1, alínea c)], da
jurisdicionalidade (artigos 27.º, n.os 2 a 4, 28.º, 29.º, 31.º, 32.º e 213.º,
n.º 1) e da necessidade (para a defesa dos direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos) ou da máxima restrição (compatível com aquela
defesa) das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.os 2 e 3).
O princípio da legalidade visa garantir no direito penal um grau superior de
previsibilidade (tipicidade) e de restrição (reserva de lei, proibição de
integração, irretroactividade in pejorem partem) da aplicação das suas sanções e
de objectividade no julgamento e garantia de direitos do arguido e restrição no
seu sacrifício (in dubio pro reo) no processo penal. O fundamento comum destes
desvios às regras gerais em matéria de fontes de direito, de aplicação do
direito e de processo jurisdicional, que tornam o direito penal um ramo de
direito com extremas garantias formais, é o princípio da necessidade das penas e
das medidas de segurança: por serem as sanções penais aquelas que, em geral,
maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na
existência e na medida, sempre que não seja certa a sua necessidade, a qual deve
ser controlada por exigências de especial responsabilização política do
legislador e de especial cuidado na preparação da decisão do juiz. A
Constituição configura assim o direito penal como o direito sancionatório mais
grave, a que devem corresponder as mais graves infracções e as mais graves
sanções, e que tem específicas garantias formais na sua efectivação.
As especificidades formais que o princípio da legalidade e o princípio da
jurisdicionalidade dão ao direito penal são assim essenciais ao seu conceito
constitucional. Mas também pode haver inconstitucional degradação do direito
penal: assim, por exemplo, se uma infracção, com a gravidade do homicídio, não
fosse punida como crime, ou se a prisão fosse imposta como pena disciplinar fora
do direito disciplinar militar. No primeiro caso, seria violado o direito à
vida (artigo 24.º da Constituição) que vincula o legislador a sancionar
penalmente as formas incompatíveis da sua ofensa (artigo 18.º, n.º 1). Por esta
via está o legislador penal obrigado a defender as valorações ético-jurídicas
fundamentais da Constituição. No segundo caso, o princípio da necessidade ou da
máxima restrição das penas e medidas de segurança (artigo 18.º) reserva ao
direito penal as sanções privativas da liberdade (artigo 27.º, n.º 2), com a
única excepção do n.º 3 do artigo 27.º
A infracção prevista no n.º 2 do artigo 5.º do Decreto n.º 185/VI é o
incumprimento culposo por um juiz, que não seja do Tribunal Constitucional nem
do Tribunal de Contas, da obrigação da apresentação, no prazo de 30 dias
consecutivos à notificação do Tribunal Constitucional para o fazer, das
declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º. A cominação da pena é feita por
remissão, através de qualificação do incumprimento culposo como infracção
disciplinar de grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional, que é
falta disciplinar a que são aplicáveis as penas disciplinares de suspensão do
exercício de vinte a duzentos e quarenta dias e de inactividade não inferior a
um ano nem superior a dois (artigos 94.º e 90.º da Lei n.º 28/85, de 30 de Julho
— Estatuto dos Magistrados Judiciais).
Estará o legislador ordinário obrigado a qualificar o facto como crime?
Responde-se decisivamente que não. Trata-se de uma desobediência por omissão
que pode assumir a forma negligente, como é de regra nas infracções
disciplinares, e expressamente dispõe o Estatuto dos Magistrados Judiciais
(artigo 82.º), ao contrário do que é a regra em direito penal (artigo 13.º do
Código Penal). Que a infracção do n.º 1 do artigo 3.º da Lei n.º 4/83 —
correspondente à do n.º 1 do artigo 5.º, mas que não abrangia outros juízes além
dos do Tribunal Constitucional —, abrange a mera negligência foi, aliás, a
interpretação que prevaleceu no Supremo Tribunal de Justiça (cfr. os citados
acórdãos de 8 de Julho de 1987 — Processo n.º 39 001 —, de 11 de Novembro de
1987, de 25 de Novembro de 1987 — Processo n.º 39 140 —, e ainda o acórdão de 7
de Abril de 1986, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 376, pp. 343 e segs.;
anteriormente, segundo o citado acórdão de 8 de Julho de 1987 — Processo n.º 38
997 —, a infracção só admitiria a forma dolosa e segundo o acórdão da mesma data
no Processo n.º 39 001 admitiria, além do dolo, também negligência grave), isto
não obstante considerar sujeita à jurisdição dos tribunais comuns (note-se que a
Lei n.º 4/83 não contém preceito correspondente ao n.º 2.º do artigo 5.º do
Decreto n.º 185/VI) aquela infracção como crime. Ora o legislador não qualifica
em geral a desobediência negligente como crime, mas apenas a dolosa (artigo
388.º do Código Penal), e não estava certamente obrigado pela Constituição a
criminalizar a desobediência negligente. Não existe tal obrigação sequer quanto
ao crime doloso de desobediência, não previsto em vários direitos estrangeiros
(como o francês, o alemão, o austríaco, por exemplo), que têm um quadro
constitucional semelhante ao nosso. É certo que se trata aqui de uma
desobediência de conteúdo específico e que não está, por isso, sujeita às
objecções levantadas pela norma penal em branco que preveja a desobediência em
geral, deixando a determinação da infracção para a ordem — que não tem força de
lei — especificamente desobedecida (cfr. na doutrina portuguesa desde Levy Maria
Jordão, Comentário ao Código Penal, I, 1853, p. 212, à Comissão da Revisão do
Código Penal, Código Penal. Actas e Projecto, 1993, p. 408). Mas o ilícito da
não declaração obrigatória de riqueza e rendimentos não existiu entre nós até
1983, sem inconstitucionalidade por omissão, e continua a não existir, ou a
existir sem sanção penal, em muitos sistemas constitucionais (cfr. o «Relatório
e parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e
Garantias», no Diário da Assembleia da República, II Série-A, de 17 de Fevereiro
de 1993, pp. 576 e segs.).
Nesta perspectiva, a norma do n.º 2 do artigo 5.º não é uma norma penal, nem
tão-pouco uma norma penal degradada. Torna-se, por isso, desnecessário
determinar se se inclui no conceito constitucional de direito disciplinar, ou se
é uma norma disciplinar do direito constitucional material, etc. Deixa, em
qualquer caso, de ser problemática a sua não submissão ao regime constitucional
do direito penal, nomeadamente do ponto de vista jurisdicional, por a sua
aplicação não ser da competência dos tribunais judiciais.
E, por maioria de razão, tal não submissão também não é problemática para quem,
numa outra perspectiva, parta do entendimento de que as infracções em causa, por
sua própria natureza, se apresentam como pertencentes ao tipo disciplinar, desde
logo porque a obrigação de entrega das declarações de património e rendimentos
assume um carácter meramente preventivo relativamente à eventual prática de
actos, esses sim, eticamente reprováveis, e porque, não se destinando tais
declarações, na óptica da lei, ao conhecimento público, a punição da sua falta
de entrega não visa tanto proteger os interesses da sociedade, em geral, ou dos
cidadãos, no seu conjunto, como assegurar a boa imagem e reputação perante a
opinião pública do grupo particular em que se integram os declarantes. Nesta
mesma perspectiva, e no quadro sistemático da presente lei, o legislador
ordinário não só não estava obrigado a qualificar o facto como crime, como se
afigura mesmo mais que problemático que o pudesse, sequer, fazer.
Não há, portanto, violação dos artigos 2.º e 205.º, n.º 1, da Constituição,
visto que tal violação, como se demonstrou (supra n.º 4), depende da
qualificação como penal, ou da natureza penal, da norma do n.º 2 do artigo 5.º
18 — Mas não violará o n.º 2 do artigo 5.º o princípio da igualdade (artigo 13.º
da Constituição), na medida em que qualifica como infracção disciplinar a mesma
infracção que no n.º 1 do mesmo artigo, quando praticada por outras pessoas, é —
segundo pressupõe o requerente — um crime, e ainda na medida em que impõe uma
pena disciplinar, onde o n.º 1 impõe — sempre segundo o requerente — sanções
penais?
Uma vez que a única diferença material entre a infracção do n.º 2 e a do n.º 1 é
a qualidade das pessoas, o carácter criminal da conduta só poderia advir das
sanções previstas em cada um dos dois números. Ora há duas diferenças
fundamentais entre as sanções previstas em cada número: 1) ao passo que no n.º 2
as sanções são, por remissão, a suspensão do exercício e a inactividade, no n.º
1 a sanção é a perda de mandato, demissão ou destituição judicial, consoante os
casos, ou, quando se trate da não apresentação de nova declaração no prazo de 60
dias a contar da cessação de funções que tiverem determinado a apresentação da
precedente (primeira parte do n.º 1 do artigo 4.º), a inibição por período de 1
a 5 anos para o exercício do cargo que obrigue à referida declaração e que não
corresponda ao exercício de funções como magistrado de carreira; 2) enquanto que
as sanções do n.º 2 são aplicadas pela entidade que detém poder disciplinar, as
do n.º 1 são aplicadas pelo Tribunal Constitucional, excepto quando se trate de
gestores públicos, ou de administradores em representação do Estado ou de pessoa
colectiva pública de empresas de capitais públicos ou de economia mista [alínea
a) do artigo 2.º], porque então a competência é dos tribunais administrativos.
Com ressalva dos problemas constitucionais que a inibição para o exercício do
cargo suscita e o Tribunal adiante abordará, cumpre reconhecer que, na
perpectiva do legislador do Decreto n.º 185/VI, tão pouco as sanções do n.º 1
têm carácter criminal. Ao retirar a competência para aplicar aos tribunais
judiciais, contrariando a jurisprudência que se tinha firmado nesse sentido no
domínio da Lei n.º 4/83, o legislador terá optado por uma interpretação não
penal das normas do n.º 1 (aliás, a não criminalização da conduta foi defendida
pelo deputado Fernando Condesso, do PSD, relator do citado «Relatório da
Comissão dos Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias», lugar
citado, pp. 385 e 387). Com efeito, acerca do n.º 1 do artigo 8.º podem
repetir-se, a favor e contra a sua natureza penal, os mesmos argumentos aduzidos
acerca do n.º 2.
Não sendo, na perspectiva do Decreto n.º 185/VI, quer o n.º 2, quer o n.º 1 do
artigo 5.º, normas de direito penal (sem ser necessário precisar a
qualificação), não se verifica a diferença de qualificação segundo a qualidade
das pessoas como pressuposto da inquirida violação do princípio da igualdade.
19 — Mas não haverá violação do princípio da igualdade por outro pressuposto,
nomeadamente, por as sanções cominadas para os titulares de cargos abrangidos
pelo n.º 1 do artigo 5.º — a perda de mandato, demissão ou destituição judicial
e a inibição para o exercício do cargo — serem «bem mais pesadas» que as sanções
cominadas para os juízes (com as sabidas excepções) no n.º 2 do mesmo artigo —
suspensão de exercício e inactividade?
O argumento pressupõe, implicitamente, que a pena equivalente à demissão (ou
perda de mandato, ou destituição) de cargo político seria a demissão do juiz. O
pressuposto é insustentável. A demissão de um cargo político — ou a
inibição para o seu exercício — que é uma pena temporária, é bem menos grave do
que a demissão de magistrado judicial que é uma pena permanente, que implica a
perda do estatuto de magistrado e dos correspondentes direitos, embora não
implique a perda do direito à aposentação, nem impossibilite o magistrado de ser
nomeado para cargos públicos ou outros que possam ser exercidos sem que o seu
titular reúna as particulares condições de dignidade e confiança exigidas pelo
cargo de que foi demitido (artigo 107.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais).
A questão da gravidade relativa das sanções em causa foi discutida na
jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça acerca da aplicabilidade da lei da
amnistia (Lei n.º 18/86, de 11 de Junho) à infracção do artigo 3.º da Lei n.º
4/83, tendo-se firmado a doutrina de que a demissão de cargo político era «menos
grave mesmo do que as penas disciplinares de inactividade e aposentação
compulsiva» (acórdão de 25 de Novembro de 1987 — Processo n.º 39 140 —, loc.
cit., p. 238), sendo uma «figura que, se terá algum parentesco com outras
pré-existentes, será com a sanção disciplinar de suspensão» (acórdão de 25 de
Novembro de 1987 — Processo n.º 39 227 —, loc. cit., p. 274).
Deve, pois, concluir-se que a diferença de sanções entre as hipóteses do n.º 1 e
as do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto n.º 185/VI se justifica pela natureza dos
respectivos cargos — nomeadamente por os juízes serem nomeados vitaliciamente —
e não implica uma diferença de gravidade relativa entre sanções, nem do ipso uma
violação do princípio da igualdade.
20 — O Presidente da República questiona ainda se a exclusão do âmbito do n.º 2
do artigo 5.º dos magistrados de carreira que exerçam funções no Tribunal
Constitucional e no Tribunal de Contas não viola o princípio da igualdade.
A diferença fundamental reside não entre os «juízes dos restantes tribunais» e
outros «juristas» do Tribunal Constitucional (cfr. o artigo 224.º, n.º 2, da
Constituição e o artigo 13.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro), ou entre os
juízes «providos a título definitivo» ou «em comissão permanente de serviço» do
Tribunal de Contas (artigo 38.º da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro), mas entre
«todos» os juízes do Tribunal de Contas. Com efeito, enquanto os juízes do
Tribunal Constitucional são designados por seis anos (artigo 224.º, n.º 3, da
Constituição), portanto, temporariamente, os juízes do Tribunal de Contas são
providos ou designados de modo definitivo ou permanente, como os restantes
juízes. A demissão dos juízes do Tribunal de Contas representa, pelas razões
que se expuseram no número anterior, uma sanção bem mais grave do que as sanções
disciplinares de suspensão de exercício de vinte a duzentos e quarenta dias ou
de inactividade não inferior a um ano nem superior a dois, aplicáveis aos
restantes juízes.
Deve, assim, considerar-se inconstitucional, por violação do artigo 13.º e 18.º,
n.º 2, da Constituição, a norma do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto n.º 185/VI, na
parte em que se refere aos juízes do Tribunal de Contas.
21 — O Presidente da República levanta ainda a questão da possível ofensa do
princípio da igualdade por o juiz Presidente e os juízes vogais do Supremo
Tribunal Militar não estarem excluídos do âmbito do n.º 2 do artigo 5.º e
sujeitos, como os do Tribunal Constitucional e do Tribunal de Contas, à
jurisdição do Tribunal Constitucional.
O Supremo Tribunal Militar é composto por presidente, sete vogais militares,
dois vogais relatores e, se necessário, um ou mais adjuntos (artigo 271.º do
Código de Justiça Militar). O presidente é um general do Exército ou da Força
Aérea ou ainda um oficial general da Armada com o posto de vice-almirante ou
contra-almirante, no activo ou na reserva (artigo 273.º do Código). Os vogais
militares são oficiais generais, no activo ou na reserva, sendo três do
Exército, dois da Armada e um da Força Aérea (artigo 274.º do Código). O
presidente e os vogais militares exercem funções em comissão de serviço por dois
anos, podendo ser reconduzidos (artigo 275.º, n.º 2, do Código).
O presidente e os vogais militares do Supremo Tribunal Militar são juízes
militares e seria inadequado atribuir-lhes no contexto do Decreto n.º 185/VI um
estatuto diferente do dos restantes juízes militares. Ora o estatuto dos
restantes juízes militares dos tribunais militares revela que são oficiais dos
quadros permanentes do ramo das forças armadas a que pertence o tribunal, na
situação de activo, os quais exercem as suas funções de juízes enquanto
militares, isto é, as suas funções de juízes são parte integrante das suas
funções militares.
E bem se compreende que assim seja, já que os tribunais militares, nos termos
estabelecidos na Constituição, têm a sua competência confinada ao julgamento dos
crimes essencialmente militares. Mas, assim sendo, não parece razoável admitir
que o Decreto n.º 185/VI tenha querido incluir quer os juízes militares dos
tribunais militares de instância, quer os juízes militares do Supremo Tribunal
Militar, entre os juízes a que se refere, até porque, como vimos, estes
tribunais não têm competência para apreciar questões directamente relacionadas
com interesses patrimoniais do Estado ou para, em nome do povo, dirimir
conflitos entre interesses privados com uma dimensão patrimonial, pelo que
falecem as razões que podem ter conduzido a incluir os juízes entre as entidades
obrigadas a apresentar as declarações.
Entende, portanto, o Tribunal, — diversamente do Relator — que o n.º 2 do artigo
5.º deve interpretar-se ao sentido de que não abrange os juízes militares dos
tribunais militares.
C) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 1
22 — Dispõe o artigo 8.º, n.º 1, do Decreto n.º 185/VI:
Artigo 8.º
(Competência para a aplicação de sanções)
1 — Compete ao Tribunal Constitucional aplicar as sanções referidas no artigo
5.º quando se trate de titulares de cargos referidos nas alíneas a) a l) do
artigo 2.º
As alíneas a) a l) do artigo 2.º abrangem todos os titulares de cargos
abrangidos pelo Decreto n.º 185/VI, com excepção dos referidos na alínea m), que
são os gestores públicos e os administradores em representação do Estado ou de
pessoa colectiva pública de empresas de capitais públicos ou de economia mista,
dos quais trata o n.º 2 do artigo 8.º Outra excepção, essa não referida no n.º
1 é a dos juízes, referidos pela alínea e) do artigo 2.º, e de que trata o n.º 3
do artigo 8.º, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do
Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1.
23 — O Presidente da República questiona a constitucionalidade material do n.º 1
do artigo 8.º: a) por violação do artigo 213.º, n.º 1, ao atribuir ao Tribunal
Constitucional uma competência para aplicar sanções penais, que está reservada
aos tribunais judiciais; b) por violação dos artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, por os
titulares dos cargos políticos sujeitos à jurisdição do Tribunal Constitucional
não terem garantia de recurso das decisões punitivas (violação do artigo 20.º,
n.º 1), ao contrário dos que vêm as suas causas julgadas em primeira instância
pelos tribunais administrativos, ou pelas entidades que sobre eles tenham poder
disciplinar (violação do artigo 13.º); c) por violação do artigo 13.º, ao
colocar os juízes de carreira que exercem funções no Tribunal Constitucional e
no Tribunal de Contas numa situação diferente da dos restantes juízes de
carreira, que não estão sujeitos à competência disciplinar do Tribunal
Constitucional.
24 — Antes, porém, de apreciar estes pontos, importa averiguar se o n.º 1 do
artigo 8.º, independentemente do seu conteúdo, é, desde logo, inconstitucional
por atribuir uma competência ao Tribunal Constitucional sem revestir a forma de
lei orgânica, violando assim o artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo
167.º, alínea c), da Constituição. Segundo o n.º 2 do artigo 169.º, reveste a
forma de lei orgânica o acto de legislar sobre organização, funcionamento e
processo do Tribunal Constitucional, previsto na alínea c) do artigo 167.º como
sendo da exclusiva competência da Assembleia da República. Abrange a legislação
sobre processo a legislação sobre competência?
A letra da lei é equívoca, porque a palavra «processo» tanto pode ser
interpretada num sentido lato (interpretação declarativa lata) que abrange a
competência, como num sentido restrito (interpretação declarativa restritiva)
que a exclui. Assim, por exemplo, nas alíneas c) e d) do artigo 168.º pode
entender-se que a palavra «processo» está usada em sentido restrito, porque a
«competência dos tribunais» está prevista na alínea q) do mesmo artigo. Mas
seria equivalente no resultado (a reserva relativa da competência da Assembleia
da República) uma interpretação declarativa lata da palavra «processo» naquelas
alíneas, fazendo então a alínea q) uma generalização a todos os processos
judiciais do regime da competência dos tribunais que já é estabelecido quanto a
alguns desses processos nas alíneas c) e d). A favor desta segunda
interpretação pode invocar-se que a expressão «legislação do processo» e
semelhantes («tais como legislar sobre a matéria de processo», do artigo 168.º,
ou «código de processo») abrangem geralmente as normas de competências dos
tribunais, o que é também lógico, porque a competência do tribunal é um
pressuposto processual. Assim, os códigos de processo civil e de processo penal
incluem tradicionalmente a matéria de competência dos tribunais.
No caso da expressão do artigo 167.º «legislar sobre organização, funcionamento
e processo do Tribunal Constitucional» há um argumento histórico no sentido da
interpretação declarativa lata. O legislador constituinte de 1989, que
introduziu a forma de lei orgânica com o n.º 2 do artigo 169.º, não pôde deixar
de ter presente, ao exigir essa forma para a «lei sobre organização,
funcionamento e processo do Tribunal Constitucional», que a existente lei com
essa designação — a Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro — incluía um capítulo sobre
a competência do Tribunal Constitucional (Capítulo I do Título II, artigos 6.º a
11.º). Deduz-se, portanto, que terá querido exigir a forma orgânica para
qualquer futura alteração ou aditamento de qualquer parte dessa lei ou para a
sua substituição integral, incluindo as normas sob competência. É certo que uma
vontade histórica não se obtém por dedução, mas pode presumir-se na falta de
indicação em contrário.
Argumentos decisivos são os lógicos e sistemáticos. Sendo o processo um meio
necessário para o exercício de competência é ilógico comandar o fim, atribuindo
a competência, se não existirem os meios, isto é, o processo, assim como é
ilógico atribuir o poder para criar competência sem atribuir o poder para criar
o meio processual que torna possível o exercício da competência. Seria impor
deveres que não podem ser cumpridos e conferir poderes que não podem ser
realizados. Seria, em suma, vontade legislativa que não pretende eficácia.
Basta atentar nas contradições sistemáticas e nos impasses práticos resultantes.
Se a nova competência do artigo 8.º, n.º 1, fosse atribuída ao Tribunal
Constitucional por uma simples lei, e não fossem criadas as normas de processo
correspondentes através da maioria qualificada e da forma dos n.os 4 e 5 do
artigo 271.º da Constituição, ficaria o n.º 1 do artigo 8.º sem eficácia. Em
caso de veto do Presidente da República, abria-se um conflito institucional
indesejável: o Presidente da República, que estaria obrigado, a promulgar a
simples lei, se fosse confirmada pela maioria absoluta dos deputados em
efectividade de funções (artigo 139.º, n.º 2), poderia, através do veto da lei
orgânica do processo correspondente, inviabilizar de novo a anterior
confirmação, por a confirmação da lei orgânica passar a exigir a maioria
qualificada de dois terços dos deputados presentes (artigo 139.º, n.º 3).
A não inclusão da competência na matéria do processo implicaria outra
contradição axiológica: ao passo que a Constituição, quanto aos restantes
tribunais, considera mais importante — e, portanto, merecedora de restrições
formais — a matéria de competência, do que a matéria de processo, pelo que só a
primeira é relativamente reservada à competência legislativa da Assembleia da
República [artigo 168.º, alínea q)], quanto ao Tribunal Constitucional, a
matéria de processo estaria reservada absolutamente àquela competência
legislativa [artigo 167.º, alínea c)], e ainda por cima sujeita a lei orgânica
(artigo 169.º, n.º 2), enquanto que a matéria de competência só lhe estaria
relativamente reservada, sem excluir uma autorização legislativa ao Governo
[artigo 168.º, alínea q)]. Criar-se-ia assim a possibilidade de novos conflitos
institucionais: o Governo, depois de autorizado, poderia criar novas
competências do Tribunal Constitucional, que seriam ineficazes se não fossem
viabilizadas por lei orgânica, etc.
Ora a correcta ponderação axiológica é a que valoriza a atribuição de
competência jurisdicional acima da regulação do processo, porque esta é
instrumental relativamente àquela. Razão têm, pois, Gomes Canotilho e Vital
Moreira, quando interpretam a alínea c) do artigo 167.º dizendo que «por maioria
de razão, deve considerar-se aqui incluída também a definição da sua
competência, para além da constitucionalmente fixada (cfr. artigo 225.º, n.º 3)»
(ob. cit., p. 664). Por este fundamento, já no domínio da revisão
constitucional de 1982 se devia entender que a alínea e) do n.º 2 do artigo
213.º remetia para a alínea h) do artigo 167.º [correspondente, sem alterações,
à actual alínea c)] e não para a alínea q) do artigo 168.º A exigência de lei
orgânica na revisão de 1989 só veio acentuar a improcedência da interpretação
contrária.
Não se diga que não é permitido alargar por analogia (e o argumento por maioria
de razão pode considerar-se como argumento analógico) as hipóteses de lei
orgânica, ou de reserva absoluta de competência legislativa, previstas na
Constituição. Mesmo que se admitisse um princípio da tipicidade na matéria, ou
que se considerasse a reserva absoluta como excepcional, isso não afectaria a
validade de argumentos por maioria ou identidade de razão, e de raciocínios por
analogia, para interpretar, apenas proibiria a integração de lacunas e,
portanto, o uso desses ou outros argumentos, para as integrar. Ora quando se
diz que no artigo 167.º a matéria de «processo» inclui a de competência está-se
a tomar em sentido amplo uma expressão «matéria de processo» que tem vários
significados e em que a interpretação não faz mais do que «declarar o sentido
linguístico coincidente com o pensar legislativo». Fala-se então de
interpretação extensiva, a qual se destina a «corrigir uma formulação estrita de
mais». O legislador, exprimindo o seu pensamento, introduz um elemento que
designa espécie, quando queria aludir ao género. A interpretação extensiva
«supõe que há desconformidade entre a letra e o pensamento da lei», pelo que
«há-de ter por efeito operar uma rectificação do sentido verbal» (transcrevem-se
as expressões usadas por Francesco Ferrara, traduzido por Manuel de Andrade em
Ensaio sobre a teoria da interpretação das leis — Interpretação e Integração das
Leis, 2.ª ed., 1963, pp. 147, 150, 148 e 149, e que definem a terminologia
tradicional). Só deixa de haver interpretação quando o pensamento legislativo
«não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso» (artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil). Só para lá da
interpretação há lacunas a integrar.
Ora os argumentos por maioria de razão e, em geral, por analogia, são
indispensáveis tanto para interpretar como para integrar. Como instrumentos da
interpretação são eles que permitem incluir num conceito as classes de casos de
inclusão duvidosa, por pertencerem à periferia (Begriffshof na linguagem de
Heck) e não ao núcleo (Begriffskern) do conceito, o que se faz por valerem para
aqueles as mesmas razões que fundamentam o regime legal dos casos nucleares (de
cuja abrangência pelo conceito não se duvida), e isto, precisamente, por
argumentos analógicos de identidade ou maioria de razão. Foi assim que se
incluiu a classe em questão das normas sobre competência na legislação sobre
matéria de processo. Assim se faz usualmente em direito quando se interpreta.
No caso em crise o resultado da interpretação cabe num dos sentidos possíveis
das palavras da lei, segundo as regras da linguagem, pelo que o resultado da
interpretação não implica a rectificação dessas palavras: a interpretação é,
pois, declarativa.
Assente que o conceito de matéria de processo do Tribunal Constitucional na
alínea c) do artigo 167.º abrange a competência, seria necessário que o n.º 1 do
artigo 8.º do Decreto n.º 185/VI, que atribui uma competência ao Tribunal,
revestisse a forma de lei orgânica. Ora dos trabalhos preparatórios resulta
como se viu (supra, n.º 5), que este decreto foi votado sem o formalismo próprio
da lei orgânica. O n.º 1 do artigo 8.º é, portanto, inconstitucional, por
violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da
Constituição.
Tendo concluído pela inconstitucionalidade formal do n.º 1 do artigo 8.º por
violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da
Constituição torna-se desnecessário averiguar de outros fundamentos de
inconstitucionalidade, desta vez material.
D) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 2
25 — Dispõe o n.º 2 do artigo 8.º do Decreto n.º 185/VI:
Artigo 8.º
(Competência para a aplicação de sanções)
2 — Em relação aos titulares de cargos referidos na alínea m) do artigo 2.º, a
competência é dos tribunais administrativos.
O Presidente da República questiona a constitucionalidade do n.º 2 do artigo
8.º, por dois fundamentos: a) violação do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição,
pela atribuição de competência para a aplicação destas sanções aos tribunais
administrativos, se se atentar «na natureza penal das sanções e na circunstância
do incumprimento culposo resultar da prática (por acção ou omissão) de factos
totalmente estranhos ao exercício de funções, mesmo até após o termo do
exercício»; b) por violação do artigo 13.º, por não se descortinar fundamento
material bastante para «subtrair a apreciação destes casos à entidade que sobre
aqueles gestores e administradores detém poder disciplinar (claramente
abrangidos nos poderes de tutela), pela mesma ordem de razões —
profissionalidade, estatuto profissional próprio e carreira — que terão levado o
legislador a prever tal solução para os juízes».
26 — O argumento para afirmar a violação do artigo 214.º, n.º 3, que atribui aos
tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que
tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações
jurídico-administrativas, parte da natureza penal da sanção, pelo que a decisão
sobre a sua aplicação nunca poderia dirimir um litígio emergente das relações
jurídico-administrativas.
Ressalva-se novamente a questão da constitucionalidade da sanção de inibição
para o exercício do cargo, de que se tratará adiante. Quanto à sanção de
destituição judicial de cargo, é também concebida não como uma sanção penal, mas
como uma sanção de tipo disciplinar, que deriva ou emerge da relação jurídica
que está na base do exercício das funções. Quanto a ela não há, pois, violação
do artigo 214.º, n.º 3, da Constituição.
Por outro lado, a subtracção dos casos dos gestores e administradores à
competência da autoridade que sobre eles exerce poder de tutela e a sua sujeição
à competência dos tribunais administrativos não viola o princípio da igualdade
por diferença da atribuição da mesma competência, para os juízes, à entidade que
detém poder disciplinar, ou seja, ao Conselho Superior de Magistratura para os
juízes dos tribunais judiciais (artigos 219.º, n.º 1, da Constituição e 111.º do
Estatuto dos Magistrados Judiciais), ao Conselho Superior dos Tribunais
Administrativos e Fiscais para os juízes de jurisdição administrativa e fiscal
(artigos 219.º, n.º 2, da Constituição e 98.º do Decreto-Lei n.º 129/84, de 27
de Abril). Com efeito, os tribunais administrativos oferecem garantias de
imparcialidade que não existem nos órgãos administrativos da tutela mas que de
certo modo se encontram nos Conselhos Superiores e outros órgãos com competência
disciplinar em relação aos juízes de outros tribunais (artigo 219.º, n.º 3, da
Constituição). Ora a similitude de garantias é mais relevante nesta matéria
(cfr. o n.º 3 do artigo 219.º da Constituição) do que quaisquer semelhanças que
possa haver entre os órgãos de tutela administrativa e os órgãos disciplinares
dos juízes. Não há, por consequência, violação do princípio da igualdade.
27 — Importa averiguar agora da constitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º, no
que respeita à atribuição de competência para aplicar a sanção de inibição para
o exercício do cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º Com efeito, a «inibição
por período de 1 a 5 anos para o exercício do cargo a que se aplica a presente
lei» implica a inelegibilidade do agente incumpridor para qualquer dos cargos
electivos previstos no artigo 2.º (Presidente da República, Deputado à
Assembleia da República, deputado da Assembleia Legislativa Regional, deputado
ao Parlamento Europeu, presidentes e vereadores de Câmaras Municipais). Em
geral, deverá entender-se que as disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º,
n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, proíbem a criação, excepto como
sanção de direito penal, das sanções de inibição para o exercício de cargo
público.
Desde logo, quanto aos cargos electivos, como se disse no Acórdão n.º 602/89
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, 14.º Vol., 1989, p. 561), a capacidade
eleitoral passiva é apenas um aspecto do direito político fundamental de
sufrágio, activo e passivo, que deriva do princípio democrático (cfr. os artigos
1.º, 2.º, 3.º, 10.º, 49.º e 50.º, n.os 2 e 3, da Constituição). O princípio
democrático vale universalmente para todos os cidadãos (artigo 12.º), pelo que o
direito de sufrágio está histórica e essencialmente ligado ao princípio do
sufrágio universal: todos os cidadãos têm, em princípio, igual direito a
participar na formação da vontade geral (cfr. o artigo 6.º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1791 e o artigo 21.º da Declaração Universal
dos Direitos do Homem). O direito de sufrágio passivo é verdadeiro direito
subjectivo público fundamental: o Estado deverá nomeadamente garantir o direito
à candidatura segundo os princípios do sufrágio universal, livre e pessoal e o
direito à manutenção e exercício, sem prejuízo pessoal, do mandato. Dada a
homogeneidade tendencial entre o direito de sufrágio activo e passivo, há uma
obrigação do Estado de estender o âmbito pessoal do exercício do direito em toda
a medida jurídica e realmente possível.
Não se diga que o n.º 3 do artigo 50.º permite expressamente as restrições ao
acesso a cargos electivos necessários para garantir a isenção e independência de
exercício dos respectivos cargos. Segundo o preceito, a isenção e a
independência são relativas ao exercício do cargo. Trata-se do específico cargo
e, portanto, terão de verificar-se específicos interesses e relações do cidadão
que não garantem isenção e imparcialidade na gestão ou representação dos
interesses que incumbe ao titular do cargo electivo. É uma incompatibilidade
que tem o regime de uma inelegibilidade. O artigo 50.º, n.º 3, não autoriza,
portanto, uma inelegibilidade para todos os cargos electivos previstos na
Constituição. Qualquer outra causa de ineligibilidade terá em face do artigo
50.º, n.º 3, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, que estar expressamente
prevista na Constituição. Ora a Constituição expressamente prevê no n.º 4 do
artigo 30.º a possibilidade de perda de direitos políticos como pena acessória
e, por identidade de razão, a possibilidade dessa perda como pena principal.
Não prevê nem, portanto, permite outras causas de perda de direitos políticos.
Isto vale para a inibição para o exercício de cargo público que não seja
electivo, igualmente previsto no n.º 1 do artigo 50.º, que é uma dimensão
essencial do direito geral de participação na vida pública (artigo 48.º, n.º 1).
Está também aqui em jogo uma dimensão essencial do princípio democrático
(artigo 2.º).
Ora deve considerar-se que a perda genérica do acesso a cargo público só pode
estatuir-se por previsão expressa na Constituição, salvo como pena criminal. A
inibição para o exercício de cargo público tem como efeito a negação de uma
parte constitutiva do estatuto de cidadão, a capacidade para o acesso e
exercício de cargos públicos num Estado de direito democrático, e de uma forma
genérica. Assemelha-se, deste ponto de vista, como privação parcial da
liberdade, à prisão, que priva o cidadão da sua liberdade, como capacidade
genérica do exercício de direitos, e que a Constituição proíbe, em princípio,
que seja cominada por lei fora do direito penal (cfr. o artigo 27.º, n.º 2, da
Constituição). Este argumento vale, assim, mesmo para quem não partilhe a
interpretação restritiva da parte final do n.º 3 do artigo 50.º, que atrás se
expôs.
Temos, portanto, que a norma do artigo 8.º, n.º 2, na parte em que atribui aos
tribunais administrativos competência para aplicar a sanção da inibição para o
exercício de cargo público viola as disposições conjugadas dos artigos 2.º,
18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição.
E) A questão da inconstitucionalidade do artigo 8.º, n.º 3
28 — Dispõe o n.º 3 do artigo 8.º:
Artigo 8.º
(Competência para a aplicação de sanções)
3 — Em relação aos juízes, a competência é da entidade que detém poder
disciplinar, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do
Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1.
O Presidente da República questiona a constitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º
quanto aos juízes em geral, supondo o carácter penal das sanções a aplicar, por
violação do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição e ainda, quanto aos juiz
Presidente e juízes Vogais do Supremo Tribunal Militar por não estarem
submetidos à jurisdição do Tribunal Constitucional, por violação do princípio da
igualdade (artigo 13.º da Constituição).
Já atrás se apreciaram estes fundamentos. As sanções a aplicar não têm carácter
penal (supra n.os 14 a 17). Os juízes militares dos tribunais militares não
estão abrangidos pela norma do artigo 5.º, n.º 1 (supra n.º 21). Falecem, pois,
estes dois fundamentos de inconstitucionalidade.
Importa, contudo, averiguar outros fundamentos (artigo 51.º, n.º 5, da Lei n.º
28/82).
29 — Demonstrado atrás (supra n.º 24) que a atribuição ao Tribunal
Constitucional de uma competência não directamente prevista na Constituição por
uma lei que não revista a forma de lei orgânica viola o artigo 169.º, n.º 2, com
referência ao artigo 167.º, alínea c), há que concluir pela
inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto n.º 185/VI na medida em
que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar as sanções
previstas no n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas.
Quanto à competência do Tribunal Constitucional para aplicar sanções
qualificadas como disciplinares aos seus próprios juízes, ela já resulta do
artigo 25.º da Lei n.º 28/82, pelo que o n.º 3 do artigo 8.º não é
inconstitucional nessa medida. É-o, porém, consequencialmente, na medida em que
atribui tal competência relativamente à medida de inibição para o exercício de
cargo público, por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º,
n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição, conforme se
fundamentou anteriormente (supra n.º 27).
III — Conclusão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
a) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade das referidas normas
por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição;
b) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 5.º, na
parte em que se refere aos juízes do Tribunal de Contas, por violação dos
artigos 18.º, n.º 2, e 13.º da Constituição;
c) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 5.º,
na parte em que se refere aos juízes que não exercem funções no Tribunal de
Contas, interpretada tal norma no sentido de que ela não abrange os juízes
militares dos tribunais militares;
d) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º, por
violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da
Constituição;
e) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º, na
parte em que atribui competência aos tribunais administrativos para aplicar a
sanção de inibição para o exercício de cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º,
por violação das disposições conjugadas dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º
1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da Constituição;
f) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 8.º
na parte restante;
g) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º, na
parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar as
sanções previstas no n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas, por
violação do artigo 169.º, n.º 2, com referência ao artigo 167.º, alínea c), da
Constituição;
h) Pronunciar-se pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º, na
parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar a
medida de inibição para o exercício do cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º,
aos juízes do mesmo Tribunal, por violação das disposições conjugadas dos
artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 48.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 213.º, n.º 1, da
Constituição;
i) Não se pronunciar pela inconstitucionalidade do n.º 3 do artigo 8.º
na parte restante.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 1995. — José de Sousa e Brito [com declaração de voto
quanto à interpretação fixada na alínea a)] — Bravo Serra [vencido quanto à
decisão constante das alíneas b), d), e), g) e h), conforme declaração de voto
junta] — Antero Alves Monteiro Diniz [vencido relativamente às decisões das
alíneas a), e), f) e i), conforme declaração de voto junta] — Fernando Alves
Correia [vencido quanto às decisões das alíneas b), d), e), g) e h), pelas
razões constantes da declaração de voto do primitivo relator, Ex.mo Conselheiro
Bravo Serra] — Maria Fernanda dos Santos Martins da Palma Pereira [vencida
quanto às decisões constantes das alíneas a), c), f) e i), nos termos da
declaração de voto junta] — Maria da Assunção Esteves [vencida quanto às alíneas
b), d), e) e h), pelo essencial das razões da declaração de voto do Ex.mo Sr.
Conselheiro Bravo Serra] — Luís Nunes de Almeida [vencido quanto à alínea a),
nos termos da declaração de voto junta] — Alberto Tavares da Costa [vencido
quanto às alíneas c), f) e i), nos termos da declaração de voto do Ex.mo
Conselheiro Monteiro Diniz, quanto a esta parte] — Guilherme da Fonseca [vencido
quanto às alíneas c), f) e i), nos termos da declaração de voto junta] — Vítor
Nunes de Almeida [vencido quanto às decisões constantes das alíneas b), d), e),
g) e h), pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro
Bravo Serra] — Messias Bento [vencido quanto às alíneas b), d), e), g) e h),
pelo essencial das razões da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Bravo
Serra, primitivo relator] — Armindo Ribeiro Mendes [vencido quanto às alíneas a)
e c), nos termos da declaração de voto junta] — José Manuel Cardoso da Costa
[com declaração de voto junta, relativa às alíneas d), e) e h) da decisão].
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não posso concordar com a interpretação segundo a qual o n.º 2 do artigo 5.º do
Decreto n.º 185/VI não abrange os juízes militares dos tribunais militares.
Estes juízes integram tribunais que são órgãos de soberania, que administram a
justiça em nome do povo tal como outros tribunais descritos no artigo 211.º da
Constituição (cfr. artigo 205.º). Respondem disciplinarmente como todos os
juízes, pelo artigo 219.º da Constituição. E estão sujeitos à competência
disciplinar do Supremo Tribunal Militar, em última instância, que é também a
primeira e única para os próprios juízes militares do Supremo Tribunal Militar,
como se deduz do artigo 240.º, n.º 3, do Código de Justiça Militar (interpretada
sistematicamente, em vista dos artigos 218.º, n.º 2, e 219.º, n.º 3, da
Constituição, por um lado, e artigo 239.º do Código de Justiça Militar, por
outro). Todos eles exercem funções em comissão de serviço por dois anos,
podendo ser reconduzidos (cfr. artigos 237.º — juízes militares dos tribunais
militares de instância — e 275.º, n.º 2 — presidente e vogais do Supremo
Tribunal Militar). Não são, portanto, juízes ocasionais, ou eventuais, mas sim
juízes em comissão de serviço duradoura, e nada justifica que não estejam
igualmente obrigados a apresentar declaração sobre o rendimento, património e
cargos sociais.
Fora da extensão do conceito de «juízes» do n.º 2 do artigo 5.º ficam apenas os
referidos juízes ocasionais, como são os substitutos de juízes [artigo 88.º, n.º
1, alínea b), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais — Lei n.º 38/87, de 23 de
Dezembro] e os juízes sociais (cfr. o artigo 201.º, n.º 2, da Constituição e o
Decreto-Lei n.º 156/78, de 30 de Junho). — José de Sousa e Brito.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanhei o Acórdão, de que a presente declaração faz parte integrante, no
que respeita ao respectivo conteúdo decisório ínsito nas alíneas b), d), e), g)
e h), cumprindo, brevitatis causa, expor as razões da minha discordância.
Assim:
1 — Quanto à detectada inconstitucionalidade da norma constante do n.º 2 do
artigo 5.º do Decreto n.º 185/VI da Assembleia da República.
Segundo a tese que fez vencimento, aquela norma, ao excluir os juízes do
Tribunal de Contas da previsão da aplicação da sanção, qualificada
disciplinarmente como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional
— sanção essa estabelecida para os juízes dos tribunais das outras
ordens judiciárias e que poderá acarretar para estes a imposição de pena de
suspensão de exercício de vinte a duzentos e quarenta dias ou de inactividade
não inferior a um ano nem superior a dois —, sujeitando, pois, os primeiros ao
regime geral — o que implicará a possibilidade de lhes ser aplicada a pena de
demissão — violará o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da
Constituição, dado que esta última sanção «é bem mais grave» do que aqueloutras
que resultam da qualificação dada pelo preceito em apreço.
Antes do mais, a meu ver, torna-se necessário sublinhar que, como decorre do
artigo 38.º, n.º 1, da Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, os juízes do Tribunal de
Contas que tenham vínculo à função pública, podem ser nomeados em comissão
permanente de serviço, o que vale por dizer que, uma vez nomeados, conquanto
percam o concreto lugar funcional no qual anteriormente exerciam, nem por isso
deixam de conservar aquele vínculo, o que implica que, igualmente, não deixam de
fazer parte da carreira a que pertenciam.
Ora, relativamente a juízes nomeados nessas condições, torna-se claro que, caso
lhes venha a ser aplicável a sanção prevista no regime geral pelo incumprimento
do dever de apresentação da declaração previsto no artigo 3.º do Decreto, isto
é, a pena de demissão, esta só incidirá sobre o cargo de juiz do Tribunal de
Contas, não tendo repercussão na carreira a que pertençam, à qual, obviamente,
podem regressar.
Diferentes são, porém, as situações dos juízes daquele Tribunal que não tenham
vínculo à função pública ou, tendo-o, não optaram por nomeação em comissão
permanente de serviço, antes tendo preferido serem nomeados a título definitivo.
Daí que seja cabido perguntar se, concernentemente a estes juízes — e só a eles
—, não terá razão de ser a descortinada enfermidade da norma sob apreciação em
confronto com a Constituição.
Entende o subscritor da presente declaração que esses juízes, nomeados a título
definitivo, hão-de estar incluídos na designação de juiz a que se reporta o
primeiro troço do n.º 2 do artigo 5.º do Decreto (e que, simpliciter, se poderá
tomar no sentido de «juiz de carreira»), o que equivale a dizer que a expressão
juiz… do Tribunal de Contas, utilizada na parte final dessa norma, só deve
abranger aqueles juízes que, mantendo vínculo à função pública, foram nomeados
para esse Tribunal em comissão permanente de serviço.
Só assim, na verdade, de um ponto de vista sistemático e coerente, se explica
que o legislador parlamentar tivesse consagrado, no tocante à aplicação do
regime geral, uma equiparação entre os juízes do Tribunal de Contas e do
Tribunal Constitucional.
Significa isto, na minha interpretação, que os juízes do Tribunal de Contas
nomeados em comissão permanente de serviço, vêm, afinal, a sofrer de idêntico
tratamento ao conferido aos juízes dos outros tribunais que desempenham funções
no Tribunal Constitucional e que, quanto aos juízes nomeados a título definitivo
naquele primeiro Tribunal, também eles têm tratamento semelhante aos «juízes de
carreira». De onde, perante essa interpretação, se não divisar desigualdade de
tratamento passível de ser inserida como infracção ao princípio postulado pelo
artigo 13.º da Constituição.
2 — Quanto à descortinada violação do n.º 2 do artigo 169.º, com referência à
alínea c) do artigo 167.º, um e outro da Constituição, por parte do n.º 1 do
artigo 8.º do Decreto e do n.º 3 do mesmo artigo 8.º, na parte em que atribui ao
Tribunal Constitucional competência para aplicar as sanções previstas no n.º 1
do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas.
O Tribunal, no vertente aresto, entendeu, por maioria, que, por uma
interpretação declarativa, o conceito do vocábulo processo usado na alínea c) do
artigo 167.º da Constituição, haveria de abarcar a própria competência do
Tribunal Constitucional.
Penso, todavia, que, pese embora o devido respeito pelos argumentos avançados
para suportar uma tal conclusão, ela não é de seguir.
Efectivamente, na minha óptica, o legislador constituinte, aquando da Revisão do
Diploma Básico operada em 1989, tinha desde logo dado por assente, pois que,
quanto a este ponto, isso era inquestionável, que as competências fundamentais
ou, se se quiser, essenciais, do Tribunal Constitucional estavam, elas mesmas,
já fixadas na própria Constituição (através dos artigos 213.º, 278.º, 280.º,
281.º e 283.º na versão decorrente da revisão de 1982 e, na presente versão, dos
artigos 225.º, 278.º, 280.º e 283.º).
Uma tal fixação impunha, como é límpido, que esse núcleo essencial de atribuição
de funções a um órgão revestido de uma importância tal como a detida pelo
Tribunal Constitucional, haveria de congregar, para a respectiva definição, um
alargado consenso de uma significativa maioria parlamentar, como é a exigida
para se poder levar a cabo uma revisão constitucional, pois que só durante uma
tal fase — a da revisão — poderiam ser tocados os poderes cognitivos que se
incluam no aludido núcleo.
Por outro lado, e porque aquela atribuição, despojada das regras processuais
necessárias ao seu desenvolvimento e efectivação, poderia, na prática, redundar
numa atribuição dificilmente exequível, é perfeitamente compreensível que o
legislador constituinte de 1989, ao gizar a figura das leis orgânicas, para as
quais fez exigência de maiores requisitos, quer para a sua votação na
especialidade, quer para a votação final global (cfr. n.os 4 e 5 do artigo 171.º
da Constituição), entendesse que aquelas regras haveriam de constar dessa
categoria de leis, justamente com o propósito de impedir que, mercê de uma mera
maioria simples e conjuntural do Parlamento, pudessem alcançar-se desígnios de
«diminuição» ou, no limite, de despojamento da competência nuclear do Tribunal
Constitucional, que desejou ver-lhe consignada e quis que por ele fosse levada a
efeito.
Claro que a própria Constituição não arredou a possibilidade de ao Tribunal
Constitucional virem, por lei, a ser atribuídas outras competências [cfr. alínea
e) do n.º 2 do artigo 213.º da versão de 1982 e n.º 3 do artigo 225.º da actual
versão]. Só que, na minha perspectiva, não se incluindo essas funções naquele já
referido núcleo, não se justificaria, de todo, que o respectivo processo
legislativo visando essa atribuição fosse rodeado das cautelas e cuidados
inerentes ao processo de feitura das leis orgânicas, este sim justificado, como
acima se disse, para salvaguardar a eficácia do desenvolvimento da competência
nuclear do citado órgão de administração de justiça.
Daí que tenha para mim que o termo processo utilizado na alínea c) do artigo
167.º da Constituição não comporte o sentido de competência. Sequentemente, no
seu modo de ver, poderá a Assembleia da República, por simples lei (não se
impondo, pois, que revista a forma de lei orgânica), determinar, ao abrigo do
n.º 3 do artigo 225.º e da alínea q) do n.º 1 do artigo 168.º, ambos da Lei
Fundamental, a atribuição de outras funções ao Tribunal Constitucional, não se
me deparando, em consequência, que, in casu e quanto às normas ora em questão,
haja ferimento do n.º 2 do artigo 169.º, por referência à alínea c) do artigo
167.º
Aliás, estranha-se até a circunstância de este Tribunal ter já tomado decisões
relativas a determinados casos regulados pelas Leis n.os 64/93, de 26 de Agosto
(Regime jurídico de incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos
políticos e altos cargos públicos), e 72/93, de 3 de Novembro (Lei do
Financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais), Leis que,
inequivocamente, não revestiram a forma de leis orgânicas nem como tal foram
sujeitas ao cabido processo de formação, e que cometeram a este órgão de
administração de justiça as funções de proceder à análise, fiscalização e
sancionamento das declarações dos titulares de cargos políticos (artigo 10.º,
n.º 2, da Lei n.º 64/93) e a apreciação das contas dos partidos e aplicação de
sanções aos mesmos pelo incumprimento das normas reguladoras do respectivo
financiamento (artigos 13.º e 14.º da Lei n.º 72/93).
Aquela tomada de decisões representou, assim, a aceitação, por parte do Tribunal
Constitucional, da competência que lhe foi deferida pelas citadas Leis e que,
anteriormente, o não era minimamente. E, o que é certo é que, não obstante,
como se disse, tais diplomas não revestirem a forma de leis orgânicas, nem por
isso o Tribunal, então, se declarou incompetente com base na circunstância de os
normativos atribuidores de competência padecerem de vício de
inconstitucionalidade por violação do disposto no artigo 169.º, n.º 2, com
referência ao artigo 167.º, alínea d), um e outro da Lei Fundamental.
A actual postura da maioria que fez vencimento no Acórdão representa, desta
sorte, uma verdadeira incongruência com as decisões anteriores aqui indicadas.
3 — Quanto à pronúncia de inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.º 2,
do Decreto, na parte em que atribui aos tribunais administrativos competência
para aplicar a sanção de inibição para o exercício do cargo e a que se reporta o
n.º 1 do artigo 5.º do mesmo Decreto, e da norma do citado artigo 8.º, n.º 3, na
parte em que atribui ao Tribunal Constitucional competência para aplicar aquela
sanção aos respectivos juízes.
Os titulares de cargos públicos, cuja enunciação consta das várias alíneas do
artigo 2.º do Decreto, são pessoas que, ou são titulares de órgãos de soberania,
ou são pessoas cujos cargos ou exercício de funções depende da confiança
política de quem os nomeia ou designa, actuando, em consequência, tendo em
vista, nomeadamente, a prossecução de interesses de ordem «política».
Ora, não sendo, nem podendo ser, a Constituição indiferente à circunstância de
as instituições relevantes do Estado de direito democrático que consagrou e, bem
assim, de o desempenho de funções por parte dos respectivos membros, suportes ou
titulares, deverem ser apresentados e pautados de forma transparente e com a
máxima lisura — e como tal tidos pelos cidadãos e pela própria comunidade (cfr.
«Relatório e Parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias», publicado na já citada II Série-A, n.º 21, do Diário da
Assembleia da República de 17 de Fevereiro de 1993) —, é perfeitamente
compreensível que se erija em dever apontado a quem desempenha esses cargos e
que, ao fim e ao resto, são o suporte humano visível e imediatamente apreensível
da realidade de tais instituições, a pública demonstração dos seus interesses
económicos aquando do início do desempenho e, igualmente, no momento da cessação
de funções.
Esse dever impõe-se, assim, do ponto de vista deontológico-político, como
consequência dos interesses de fidúcia e transparência políticas que devem ser
inerentes ao poder democrático.
Esta corte de considerações é, de todo o modo, também aplicável à sanção
consagrada para as situações a que se reporta a primeira parte do n.º 1 do
artigo 4.º do Decreto n.º 185/VI.
Contudo, não pode passar em claro que esta última sanção é aplicável a quem,
tendo cessado o desempenho de um dos cargos mencionados nas alíneas b) a d) e f)
a m) do artigo 2.º, não apresenta a declaração de rendimentos, património e
cargos sociais, impedindo-o, por um período de um a cinco anos, de exercer as
funções correspondentes aos cargos previstos naquele artigo, à excepção do
consignado na alínea e).
Este efeito, sem dúvida privativo dos direitos do sancionado a, por si, tomar
parte da vida política e na direcção dos assuntos públicos do País e de aceder a
cargos públicos (e que não é desencadeado por intermédio de uma actividade
administrativa, por isso que a aplicação da sanção é da competência, ou do
Tribunal Constitucional, ou dos tribunais administrativos), é, ainda, uma
consequência do incumprimento do dever «político» da apresentação da declaração
de rendimentos, património e cargos sociais, revelando-se proporcionado a um tal
incumprimento um sancionamento que, ao fim e ao resto, reside na não futura
designação para cargos de «natureza ou confiança política» (atente-se em que não
impede o futuro desempenho do cargo de juiz) por um período que um órgão
independente e imparcial, como é um tribunal, vai adequar ao condicionalismo
objectivo e subjectivo rodeador daquele incumprimento entre limites que, em
abstracto, não são de perspectivar como exagerados, sendo que a finalidade da
apresentação da declaração tem, claramente, a ver com o propósito de, no
exercício dos cargos públicos, se imporem comportamentos garantísticos da
isenção e independência aos quais, como resulta do que se disse já, a
Constituição não pode ser alheia.
A isto adito que não é para mim problemático que o legislador constituinte
alguma vez tivesse tido a intenção de, relativamente aos titulares de cargos
electivos ou de cargos públicos que denotaram uma actuação incompatível com uma
fidúcia política decorrente de uma apresentação transparente, proibir que fossem
tomadas medidas legais visando impedir a futura acessão a cargos idênticos por
banda de titulares que assim procederam.
Isso seria, no mínimo, um desacautelamento do valor democrático da transparência
que, seguramente, aquele legislador não quis nem quererá.
A sanção sub specie afigura-se, deste modo, como limitada àquilo que é o
necessário à salvaguarda dos assinalados valores de isenção e independência, não
descortinando, em face do contexto em que discorri, qualquer ofensa de regras ou
princípios constitucionais por parte das normas neste ponto tratadas. — Bravo
Serra.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Dissenti do acórdão nas soluções por ele adoptadas relativamente às matérias
constantes das alíneas a), c), f) e i), da respectiva decisão, votando vencido
quanto a tais questões com base na fundamentação que a seguir, de modo sumário,
se deixa exposta.
2 — Numa linha de entendimento iniciada no Acórdão n.º 320/89, Diário da
República, I Série, de 4 de Abril de 1989, e continuada no Acórdão n.º 13/95,
Diário da República, II Série, de 9 de Fevereiro de 1995, através de declarações
de voto ali apresentadas, continuo a entender que, na sequência do veto oposto
nos termos do artigo 139.º, n.º 1, da Constituição, a Assembleia da República
fica constitucionalmente obrigada por força da regra do n.º 2 do mesmo preceito,
a confirmar o respectivo decreto por maioria absoluta dos Deputados em
efectividade de funções, no caso de o pretender manter ainda que com alterações,
de maior ou menor relevância formal ou substancial.
E assim sendo, sustentei que todas as normas do Decreto n.º 185/VI, por
deficiência procedimental, padeciam de inconstitucionalidade formal decorrente
de ofensa ao disposto no artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
3 — Do mesmo modo, não acompanhei o acórdão quando interpretou a norma do artigo
5.º, n.º 2, do Decreto n.º 185/VI, em termos de não abranger os juízes militares
dos tribunais militares.
E não acompanhei, por ter por seguro que aquele diploma ao elencar os juízes
entre os titulares dos cargos públicos para efeitos da aplicação do seu regime,
procurou abranger no seu âmbito de incidência, sem excepções, os juízes de todas
as categorias de tribunais que, como órgãos de soberania, se acham previstos no
texto constitucional.
Com efeito, não se observa qualquer específica razão para os juízes militares
dos tribunais militares, ficarem isentos do cumprimento dos deveres de
apresentação das declarações impostas a todos os demais juízes, não se
apresentando como procedentes e juridicamente sustentáveis as razões que
serviram de base ao entendimento em contrário perfilhado no acórdão.
E assim sendo, ao lado dos juízes do Supremo Tribunal de Justiça e dos tribunais
judiciais de primeira e segunda instância (nos quais se compreendem os juízes
dos tribunais marítimos), do Supremo Tribunal Administrativo e dos demais
tribunais administrativos e fiscais, do Tribunal de Contas e do Tribunal
Constitucional, hão-de incluir-se os juízes dos tribunais militares (artigos
211.º, 212.º, 214.º, 216.º, 224.º e 215.º da Constituição).
Os tribunais militares — Tribunais militares de instância e Supremo Tribunal
Militar — dispõem de uma composição não homogénea, já que são integrados por
juízes militares e juízes não militares, isto é, juízes de direito com a
denominação de juízes auditores nos tribunais militares de instância e vogais
relatores no Supremo Tribunal Militar (artigos 232.º, 233.º, 246.º, 271.º e
277.º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 141/77, de 9
de Abril, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 285/78, de 8 de Setembro).
Ora, os juízes militares dos tribunais militares — oficiais dos quadros
permanentes do ramo das forças armadas a que pertence o tribunal de instância,
na situação de activo, ou, no caso do Supremo Tribunal Militar, oficiais
generais, no activo ou na reserva — exercem o respectivo cargo público em regime
de comissão de serviço por dois anos, dispondo enquanto tal das garantias que
lhes são constitucionalmente asseguradas.
Mesmo quando se aceite a solução adoptada no acórdão no sentido de que as
funções jurisdicionais «são parte integrante das suas funções militares», o que
não se tem por adquirido, ainda assim não se descortina fundamento bastante e
adequado, face ao quadro normativo que rege a sua actividade enquanto juízes
militares, para justificar aquele entendimento, que conduziu, em direitas
contas, à rejeição aos juízes militares do estatuto de juízes titulares de um
cargo público, com a consequente degradação da sua actividade ao nível de um
mero serviço militar despojado da autonomia que caracteriza a função
jurisdicional.
E por tudo isto votei no sentido de a norma em causa abarcar também os juízes
militares dos tribunais militares, os quais haveriam de harmonia, aliás, com o
expresso entendimento manifestado no pedido — relativamente aos juízes do
Supremo Tribunal Militar — de ser objecto de apreciação e de pronúncia por parte
deste Tribunal.
4 — O acórdão pronunciou-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 8.º,
do Decreto, do n.º 2 do mesmo artigo, na parte em que atribui competência aos
tribunais administrativos para aplicar a sanção de inibição para o exercício de
cargo, prevista no n.º 1 do artigo 5.º, aos gestores públicos e aos
administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de
empresas de capitais públicos ou de economia mista e ainda do n.º 3 do mesmo
preceito na parte em que atribui competência ao Tribunal Constitucional para
aplicar as sanções e a medida de inibição para o exercício de cargo previstas no
n.º 1 do artigo 5.º aos juízes do Tribunal de Contas.
Ora, como consequência da quase integral inutilização das regras de competência
previstas naquele preceito, o quadro normativo remanescente, relativamente aos
titulares de cargos públicos enumerados no artigo 2.º do Decreto, ficou
circunscrito aos juízes do Supremo Tribunal de Justiça, dos tribunais judiciais
de primeira e segunda instância, do Supremo Tribunal Administrativo e dos demais
tribunais administrativos e fiscais [alínea e)] e aos gestores públicos e aos
administradores em representação do Estado ou de pessoa colectiva pública de
empresas de capitais públicos ou de economia mista [alínea m)], estes apenas na
parte respeitante às sanções previstas na primeira parte do n.º 1 do artigo 5.º
Manifestei por isso o entendimento de que, face aos objectivos proclamados na
Assembleia da República como propósito essencial do diploma em apreciação, e
ficando este despojado do seu núcleo estatuidor essencial — assim, com efeito,
não podia deixar de se considerar a exclusão do seu âmbito de todos os titulares
dos cargos políticos ali compreendidos — justificava-se uma pronúncia de
inconstitucionalidade consequencial reportada às normas remanescentes do decreto
em causa. — Antero Alves Monteiro Diniz.
DECLARAÇÃO DE VOTO
I) A questão da inconstitucionalidade formal de todas as normas do decreto
por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
Votei a inconstitucionalidade formal do Decreto n.º 185/VI da Assembleia da
República, por entender que viola o artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
Existindo veto político, a Constituição impõe a confirmação do diploma vetado
por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções. Só a introdução
de alterações substanciais justifica a abertura de um novo processo legislativo.
Mudanças formais (como, por exemplo, meros aperfeiçoamentos de redacção ou
sistematização) não dispensam o mecanismo da confirmação.
A exigência de confirmação do diploma vetado, quando não sofra alterações
substanciais, é uma decorrência da separação de poderes e da articulação entre
os poderes do Presidente da República e da Assembleia da República, tal como é
configurada constitucionalmente.
A possibilidade de, através de alterações, se impedir ad perpetuam o
encerramento de um processo legislativo e se permitir o exercício reiterado do
veto político contraria os fins constitucionais dos institutos do veto político
e da confirmação e seria fonte de graves conflitos entre órgãos de soberania.
Ao admitir-se, porém, que a Assembleia da República altere substancialmente o
decreto vetado, dispensando-se então a confirmação, está a reconhecer-se,
apenas, que a sua competência em determinada matéria não é precludida pelo veto
presidencial. A Assembleia da República poderá, evidentemente, acatar o veto,
excluindo as soluções censuradas pelo Presidente da República [cfr. o Acórdão
n.º 320/89, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º Vol., Tomo I (1989), pp. 7
e segs., Jorge Miranda, Funções, Órgãos e Actos do Estado, 1990, pp. 438-9, e
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
3.ª ed., 1993, p. 600].
O «acatamento do veto», de que depende a dispensa de confirmação, não obrigará a
Assembleia da República a adoptar, positivamente, quaisquer soluções sugeridas
pelo Presidente da República. Mas deverá traduzir-se, necessariamente, na
superação de todas as críticas que fundamentaram o veto, através da aprovação de
normas materialmente inovatórias ou da simples eliminação das normas censuradas.
No caso em apreço, o «novo decreto» da Assembleia da República não elide todas
as críticas que fundamentaram o veto do Presidente da República. Na verdade, o
veto fundamentou-se em três críticas, facilmente identificáveis na mensagem
dirigida pelo Presidente da República à Assembleia da República (Diário da
Assembleia da República, II Série-A, de 22 de Setembro de 1994):
a) «… do conteúdo de algumas… normas (do diploma)… pode concluir-se que
passará a ser maior a possibilidade de fugir à exigência de declaração dos reais
rendimentos e património dos titulares dos cargos públicos…»;
b) «… o decreto… parece não assegurar cabalmente a possibilidade de
controlo público daqueles rendimentos e património…»;
c) «o decreto… parece estar em contradição com recentes medidas
legislativas aprovadas pelo Governo e pela Assembleia da República, que visam
reforçar os mecanismos de prevenção, fiscalização e combate à corrupção e à
criminalidade económica e financeira».
Ora, o decreto em questão apenas introduziu uma alteração substancial ao decreto
vetado (elimina o n.º 2 do artigo 3.º). Deste modo, é elidida apenas a primeira
das três críticas que fundamentaram o veto [cfr., supra, alínea a)] mas não as
restantes.
Assim se compreende que o Presidente da República haja requerido a este Tribunal
a fiscalização preventiva da constitucionalidade do decreto, ao abrigo do n.º 1
do artigo 278.º da Constituição, «sem prejuízo» das reservas anteriormente
formuladas e mantidas «na sua maior parte». Subsistindo o regime censurado, não
está em causa, substancialmente, um novo decreto, que exima a Assembleia da
República da confirmação prevista no n.º 2 do artigo 139.º da Constituição.
Relativamente a este decreto continuam a valer as razões determinantes do veto
do Presidente da República.
Por conseguinte, considero que o diploma está globalmente ferido de
inconstitucionalidade formal.
II) A questão da inconstitucionalidade material da norma constante do artigo
5.º, n.º 2, na parte em que se refere aos juízes, qualificando o incumprimento
culposo dos deveres de declaração previstos no artigo 3.º, para efeitos
disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional.
A questão de constitucionalidade que o artigo 5.º, n.º 2, do Decreto n.º 185/VI
suscita resulta da qualificação como mero pressuposto de sanções disciplinares
da violação culposa dos deveres de declaração previstos no artigo 3.º do mesmo
Decreto. Tal qualificação pode contender com a reserva da função jurisdicional
(artigo 205.º, n.os 1 e 2, da Constituição) e com o princípio da igualdade
(artigo 13.º). Isso sucederá se se concluir que o ilícito em causa é de
natureza penal ou, pelo menos, de natureza não disciplinar (reclamando, em ambos
os casos, as garantias inerentes à jurisdicionalidade) e que foi ilegitimamente
degradado em ilícito disciplinar quando praticado por juízes (que não sejam do
Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas).
O Tribunal pronunciou-se pela não inconstitucionalidade material do artigo 5.º,
n.º 2, fazendo as seguintes considerações:
a) as infracções em causa não consubstanciam um ilícito penal, na
perspectiva do legislador, quer sejam praticadas por juízes de carreira nas suas
funções naturais, quer sejam praticadas por quaisquer outros titulares de cargos
políticos ou públicos;
b) tais infracções não deverão sequer ser qualificadas como crimes e,
consequentemente, não poderão ser pressuposto de sanções penais, por força dos
próprios limites materiais do direito penal consagrados na Constituição (por
este motivo será inconstitucional a sanção de inibição para o exercício de
cargo, decretada no n.º 1 do artigo 5.º);
c) uma vez afastada a qualificação como ilícito penal da violação dos
deveres de declaração do artigo 5.º, n.º 1, do Decreto n.º 185/VI, não se
colocaria qualquer escolho à sua remissão para o ilícito disciplinar — o
Tribunal não teria, assim, de averiguar a natureza material do ilícito nem de
questionar noutra perspectiva a violação da reserva da função jurisdicional.
A minha divergência com o Tribunal inicia-se na alínea c) da lógica
argumentativa utilizada.
Entendo que as infracções previstas no artigo 5.º, n.os 1 e 2, não são penais
(quer do ponto de vista do ser legal quer na perspectiva do dever ser
constitucional), por força dos próprios limites materiais do direito penal
derivados dos artigos 1.º, 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição. Não haverá,
neste caso, qualquer obrigação de criminalizar e, pelo contrário, a
criminalização não será admissível constitucionalmente.
Manifesta-se, assim, a necessidade de não contaminar o direito penal, como
última ratio da política social do Estado de direito democrático, com os
interesses conjunturais no reforço da imagem de luta contra a corrupção.
Segundo esta lógica, também a desobediência, a que as infracções em causa se
assemelham, não pode ser incriminada senão restritivamente, por força do
princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18.º, n.º
2, da Constituição).
Penso ainda que a criminalização não pode visar apenas assegurar as garantias
processuais dos respectivos agentes ou uma superior protecção dos titulares dos
interesses lesados (independentemente do seu valor). A criminalização deve
basear-se na gravidade objectiva do ilícito (lesão de bens jurídicos essenciais)
e no seu relevo ético (prévio).
Todavia, considero que a qualificação como ilícito disciplinar da violação dos
deveres de declaração prescritos para os juízes, nos termos do artigo 5.º, n.º
2, só se justificaria se tal violação se projectasse directamente no
funcionamento dos tribunais a que eles pertençam. Ora, a violação daqueles
deveres representa, diferentemente, um perigo para a confiança da comunidade, no
seu todo, nos tribunais, enquanto órgãos de soberania (artigo 205.º, n.º 1, da
Constituição). Não está em causa o incumprimento de deveres inerentes ao
exercício das funções dos juízes, por mais amplamente que elas sejam entendidas.
Trata-se, portanto, de um ilícito atípico de direito público, que não se inclui
na experiência histórica mais próxima do direito disciplinar (recebido pela
Constituição).
É precisamente neste ponto que me afasto da orientação seguida pelo Tribunal, já
que considero essencial questionar as consequências da não inclusão destas
infracções no ilícito disciplinar. Entendo que é indispensável discutir se a
reserva da função jurisdicional se aplica neste caso, apesar de tal ilícito não
ser penal.
A meu ver, a atribuição a órgãos disciplinares da competência para julgar um
ilícito público de natureza externa e não interna, como o disciplinar, subverte
os critérios e a lógica responsabilizadora daquele ilícito (em que não está em
causa o incumprimento de deveres funcionais). Através da recondução destas
infracções ao ilícito disciplinar, afastam-se as garantias de defesa dos agentes
e da própria sociedade que reclama a aplicação das sanções.
Deste modo, a reserva da função jurisdicional é autonomamente exigida pela
necessidade de contraditório entre a sociedade e o infractor, não dependendo da
qualificação das infracções como crimes.
Esta afirmação não é desmentida pelo facto de a reserva não cobrir outras formas
de direito sancionatório público acolhidas pela Constituição, como o direito de
mera ordenação social. Na realidade, o direito de mera ordenação social (a que,
aliás, são conferidas algumas garantias do processo criminal — artigo 32.º, n.º
8, da Constituição) tem uma génese histórica determinada, associada ao seu
primitivo carácter de ilícito penal administrativo e bagatela penal e foi
acolhido constitucionalmente nesse pressuposto. Não se pode inferir da sua
existência (que corresponde ao reconhecimento excepcional de competência para
aplicar sanções públicas às autoridades administrativas, em primeira instância)
uma possibilidade geral de atribuir a órgãos não jurisdicionais a competência
para aplicar sanções públicas atípicas.
Finalmente, não aderi à interpretação do Tribunal segundo a qual os juízes
militares dos Tribunais Militares não estariam abrangidos pelo n.º 2 do artigo
5.º do Decreto n.º 185/VI. Considero que o tipo de ilícito em causa,
consubstanciando uma relação de confiança e de credibilidade entre a sociedade e
os titulares dos cargos públicos enquadra os juízes militares.
Na realidade, não são razões decisivas a favor de uma interpretação restritiva
nem o facto de as funções desses juízes serem parte integrante das suas funções
militares nem o facto de as competências dos tribunais militares estarem
confinadas, em regra (cfr. o artigo 215.º da Constituição), ao julgamento de
crimes essencialmente militares.
A especialidade do estatuto e das funções de tais juízes não significa que as
matérias que são objecto da sua competência não se refiram a conflitos sobre a
lesão de bens essenciais da sociedade e, que, por esse motivo, tais funções não
tenham de se fundamentar na mesma relação de confiança e de credibilidade com a
sociedade em que deve assentar o exercício de funções pelos restantes juízes.
Assim, mesmo que se considere que a intenção legislativa foi qualificar o
ilícito em causa como disciplinar (ou pelo menos não penal), não se pode
concluir que tal intenção contraria a inclusão dos juízes militares. Na
realidade, a ratio legis é a referida protecção jurídica da confiança e da
credibilidade dos titulares dos cargos públicos da qual não se excluem, de modo
algum, os juízes militares.
III) A questão da inconstitucionalidade material das normas constantes do
artigo 8.º, n.os 2 e 3.
Votei vencida quanto à decisão de não inconstitucionalidade material da norma
constante do artigo 8.º, n.º 2, na medida em que entendo que ela viola o artigo
214.º da Constituição. O ilícito em causa (que não é, seguramente,
disciplinar), protege uma relação de confiança dos cidadãos nos titulares de
cargos públicos e não se caracteriza como relação jurídica administrativa: não
são afectados os interesses específicos da Administração Pública, mas, como se
disse, os interesses gerais da sociedade.
Votei vencida relativamente à decisão de não inconstitucionalidade material da
norma constante do artigo 8.º, n.º 3, uma vez que tal norma atribui à entidade
que detém o poder disciplinar a competência para aplicar as sanções, pelas
razões que me levam a negar que as correspondentes infracções possuam natureza
disciplinar. — Maria Fernanda Palma.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido, quanto à alínea a) das conclusões, por entender que ocorre
inconstitucionalidade formal ou procedimental de todas as normas impugnadas do
Decreto n.º 185/VI, sobre o «controlo público de rendimentos e património dos
titulares de cargos públicos», por não ter sido dado cumprimento ao preceituado
no artigo 139.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, que exige o
voto da maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções para a
confirmação dos diplomas vetados pelo presidente da República.
As razões deste entendimento encontram-se expressas na declaração de voto que
juntei ao acórdão tirado no Processo n.º 521/94, respeitante à fiscalização
preventiva da constitucionalidade do Decreto n.º 183/VI, atinente às alterações
à Lei de Imprensa, e reiteram a posição por mim já anteriormente assumida na
declaração de voto que juntei ao Acórdão n.º 320/89 (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, 13.º Vol., pp. 29 e segs.). — Luís Nunes de Almeida.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Votei vencido quanto às alíneas c), f) e i), por entender que o vício de
inconstitucionalidade material se devia alargar a todo o conteúdo das normas dos
artigos 5.º, n.º 2, e 8.º, n.os 2 e 3, do Decreto n.º 185/VI da Assembleia da
República sobre o «controlo público dos rendimentos e património dos titulares
de cargos públicos», doravante só Decreto, não se confinando a
inconstitucionalidade das mesmas normas apenas às «partes» que constam das
alíneas b), e), g) e h) da decisão.
É que, contrariamente à perspectiva adoptada pelo acórdão, partindo da distinção
entre o direito penal e o direito disciplinar, para terminar pela conclusão de
que «a norma do n.º 2 do artigo 5.º não é uma norma penal, nem tão-pouco uma
norma penal degradada», entendo que a infracção aí prevista, e que é também a
infracção prevista no n.º 1, se deve qualificar como infracção criminal ou, no
mínimo, de natureza criminal. Daí a violação dos artigos 2.º, 205.º, n.º 1, e
213.º, n.º 1, da Constituição, ou seja, a violação do princípio do Estado de
direito democrático, na sua dimensão de Estado de Justiça, e do princípio da
reserva de juiz, talqualmente se posicionou o requerente.
Este o tronco comum do entendimento que acho preferível — desde logo, por ser
coerente, diversamente do que acontece com a tese do acórdão, perfilhando uma
diferente qualificação das sanções (perda de mandato, demissão ou destituição
judicial, por uma banda, e inibição para o exercício de cargo público, de outra
banda) — e que suporta com a mesma base o juízo de inconstitucionalidade
material das citadas normas do Decreto.
2 — Com o Decreto em causa pretendeu o legislador substituir a vigente Lei n.º
4/83, de 2 de Abril, sobre a mesma matéria do controlo público da riqueza dos
titulares de cargos públicos — cargos políticos, na linguagem daquela Lei — e,
na aparência, o que se modificou foi o modo de sancionar o incumprimento dos
deveres por parte daqueles titulares, previstos nos artigos 3.º (apresentação da
declaração dos seus rendimentos, bem como do seu património e cargos sociais) e
4.º (apresentação da não declaração pelas mesmas pessoas).
É que, enquanto o artigo 3.º daquela Lei prevê a aplicação da «pena de demissão
do cargo político que o titular exerça e a medida de inibição para o exercício
de qualquer outro cargo da mesma natureza pelo período de 1 a 5 anos» (n.º 1),
acrescendo a responsabilidade disciplinar cominada no n.º 2 do mesmo preceito,
se «o infractor exercer profissionalmente funções públicas de natureza não
política», o artigo 5.º do Decreto estabelece as medidas de «declaração de perda
do mandato, demissão ou destituição judicial» e «inibição por período de 1 a 5
anos» para o exercício de cargo público (n.º 1) e a responsabilização
disciplinar, «no caso de o infractor ser juiz» salvo «tratando de juiz do
Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime
geral» (n.º 2).
Mas, na substância das coisas e no que aqui importa, a modificação é só
aparente.
Na verdade, a entender, como entendo, que a infracção prevista no artigo 3.º da
Lei n.º 4/83 — e é a expressão aí utilizada — é uma infracção criminal, como foi
perfilhado predominantemente pelos Tribunais de Relação e pelo Supremo Tribunal
de Justiça (jurisprudência de que dá notícia abundante o acórdão e que nunca foi
questionada sob o prisma da desconformidade com a Constituição), não vejo que se
possam colher do Decreto indícios que levem a uma descaracterização do
incumprimento dos deveres a que estão submetidos os titulares de cargos
públicos.
Pelo contrário, parece até que a descaracterização briga com o incumprimento,
tal como ele é agora modelado no Decreto.
Na verdade, enquanto que no regime vigente da Lei n.º 4/83, a iniciativa pessoal
da apresentação das declarações é do interessado, e não há qualquer intervenção
dos serviços (artigos 5.º da Lei e 14.º do Decreto Regulamentar n.º 74/83, de 6
de Outubro), sendo infracção «a não apresentação culposa» das declarações, na
óptica do Decreto, a falta de apresentação só se consuma como «incumprimento
culposo» depois do interessado ser notificado pela «entidade competente para o
seu depósito» para «a apresentar no prazo de 30 dias consecutivos (…)».
Daqui decorre uma típica desobediência a uma notificação, sempre culposa, uma
«desobediência de conteúdo específico», talqualmente refere o acórdão,
perfeitamente assimilável ao crime de desobediência previsto no artigo 388.º do
Código Penal, mesmo a entender, como entende o acórdão, que «o legislador não
qualifica em geral a desobediência negligente como crime, mas apenas a dolosa».
Efectivamente, se o destinatário do dever não o cumpre — e pode não cumprir por
negligência, como actualmente é um sentido possível da Lei n.º 4/83 —, não se
compreende, no quadro normativo do Decreto, que mantenha a situação de
incumprimento depois de notificado oficialmente para cumprir o dever (e, por
isso, com o Decreto não se pode falar em actuação negligente, mas sempre em
actuação dolosa).
Quer dizer: o legislador do Decreto caracterizou mais gravemente o
«incumprimento culposo», por via da solução da notificação do interessado
subsequente ao incumprimento originário (e daí a norma do n.º 3 do artigo 5.º do
Decreto, impondo que «as Secretarias Administrativas das entidades em que se
integrem os titulares de cargos a que se aplica a presente lei, comunicarão ao
Tribunal Constitucional a data do início e cessação de funções»).
Se é assim, não pode falar-se em descaracterização do incumprimento. Pelo
contrário, ele foi mais fortemente caracterizado, cabendo no tipo legal do crime
de desobediência (talqualmente acontece para as falsas declarações, pois o
artigo 6.º do Decreto, diversamente da Lei n.º 4/83, prevê a punição «pelo crime
de falsas declarações, nos termos da lei»). E até pode chamar-se à colação o
crime de responsabilidade de titular de cargo político previsto no artigo 25.º
da Lei n.º 34/87, de 16 de Julho, a respeito da recusa de cooperação, pois
também aqui se pode, no fundo, ver na atitude do destinatário da notificação uma
recusa de cooperação.
Compreende-se, aliás, que assim seja, que releve o plano criminal, atentos os
valores que o direito criminal quer proteger com as sanções criminais. A partir
desses especiais valores e atento o seu especial modo de protecção chega-se ao
ilícito criminal de justiça (cfr. Eduardo Correia, Direito Criminal, I, pp. 10 e
segs.) e não custa admitir, à semelhança, pelo menos, do que se passa com a
vigente Lei n.º 4/83, que cabe perfeitamente o «incumprimento culposo»
tipificado no Decreto na caracterização daquele ilícito.
É esse o sentido do legislador do Decreto que no artigo 1.º garante o «acesso ao
conteúdo» das declarações «visando-se reforçar a transparência no exercício
daqueles cargos (os cargos públicos) e o prestígio das instituições», propósitos
que não se encontram enunciados na Lei n.º 4/83.
Como se lê no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Novembro de 1987,
«quando o político omite a declaração ou a afasta da realidade, está, desde
logo, a diminuir senão a destruir o bem destrutível que é a confiança dos
governados na correcção dos governantes; ele está a fugir já da necessária
transparência na sua situação económico-financeira; só com isso, está a
dificultar o controlo da sua riqueza» (Boletim, n.º 371, p. 220).
Ora, tais valores, que não podem desligar-se do quadro constitucional do Estado
de direito democrático consagrado no artigo 2.º da Lei Fundamental, e da
democracia política que lhe subjaz, assumem uma dignidade bastante para serem
tratados tais como os especiais valores que o direito criminal de justiça (neste
se compreendendo os crimes de responsabilidade previstos especialmente na Lei
n.º 34/87) visa proteger. E, desde logo, a constatação de que, se a
desobediência, no elenco dos crimes contra a autoridade pública, merece assento
no Código Penal como tipo legal de crime especialmente previsto, não se vê
porque uma «desobediência de conteúdo específico», envolvendo o incumprimento de
uma ordem emanada do Tribunal Constitucional não deva merecer idêntico
tratamento como infracção criminal. Há, pois, aqui uma antijuricidade com
relevância criminal, que se vai exprimir na infracção tipificada na Lei n.º 4/83
e que passa para o Decreto, até com valor reforçado.
Não é obstáculo a esta conclusão o tipo de medidas sancionatórias previstas no
Decreto, aí se acrescentando, a par da demissão e da inibição para o exercício
de cargo público estabelecidas na Lei n.º 4/83, a perda de mandato e a
destituição judicial, pois, como reconhece o acórdão, o Código Penal prevê a
pena de demissão e a «interdição da profissão ou actividades» (artigos 66.º e
69.º), entre as penas acessórias, mas «poderiam ser penas principais» (linguagem
do acórdão), sendo que se não revela atingido o limite constitucional das penas
que vem consagrado no artigo 30.º da Lei Fundamental e é respeitada a reserva de
competência legislativa fixada no artigo 168.º, n.º 1, alínea c), da mesma Lei.
Além de que a perda do mandato e a destituição judicial se configuram como
medidas expulsivas, assimilando-se, como tais, à demissão, dependendo apenas a
aplicação de qualquer delas da natureza do cargo público ocupado pelo infractor
(«consoante os casos» — diz o n.º 1 do artigo 5.º do Decreto).
Não se diga também que a inclusão dos juízes [alínea e) do artigo 2.º do
Decreto] diversamente do que acontece com a Lei n.º 4/83, entre os «titulares de
cargos públicos», para os submeter à mesma disciplina desses titulares, poderia
oferecer dificuldades, pois os juízes não gozam de impunidade, quando
infractores, no plano da responsabilidade criminal (artigo 218.º da
Constituição). Ponto é que se respeite o foro competente para apurar tal
responsabilidade. Além de que, à face da Lei n.º 4/83, os juízes do Tribunal
Constitucional «membros do Tribunal Constitucional», nos termos do artigo 4.º,
n.º 1, alínea g) — estão já sujeitos, sendo infractores, à pena de demissão e à
medida de inibição, pelo menos, e nunca ninguém fez reparo algum a esta solução.
O que importa, como já ficou dito, é a caracterização da infracção criada pelo
Decreto — e não pode falar-se em inovação substancial de sentido diverso
relativamente à Lei n.º 4/83 —, tudo apontando para uma ilicitude com relevância
criminal. A fonte da valoração jurídica que, neste caso do controlo da riqueza
de titulares de cargos públicos, aponta para a ilicitude criminal e para a
correspondente sanção criminal vai buscar-se ao próprio desígnio legislativo
que se contém no artigo 1.º do Decreto, criando-se o tipo legal de
infracção do artigo 5.º, n.º 1, e assim se visando «assegurar o controlo da
situação financeira do político, a fim de garantir, ante a opinião pública, o
bom nome dele e de evitar futuras imoralidades» (nas palavras do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça, de 25 de Novembro de 1987, Boletim, n.º 371, p.
240).
Como se lê na mensagem do Presidente da República citada no acórdão: «O carácter
exemplar e a função pedagógica das condutas dos titulares de cargos públicos
são, nesta matéria, uma exigência da credibilidade política e um dos elementos
fundamentais da relação de confiança que se deve estabelecer entre os cidadãos e
os seus representantes legítimos».
4 — De igual modo, não se pode extrair nenhum argumento válido da circunstância
do legislador do Decreto (artigo 8.º) atribuir a competência para a aplicação
das sanções previstas no artigo 5.º ao Tribunal Constitucional, aos tribunais
administrativos e aos órgãos de disciplina (relativamente aos juízes), com o que
se veria uma descaracterização da ilicitude criminal apontada.
É que, não é a partir das regras de competência que se chega àquela fonte de
valoração jurídica, antes é a qualificação do facto ilícito e a sua expressão de
antijuricidade que se vai reflectir na opção dessas regras, ferindo-as
eventualmente de invalidade.
A criminalização derivada da gravidade objectiva do ilícito, com a lesão de bens
jurídicos essenciais ligados ao valor da transparência da vida pública,
constituindo um dos pilares do Estado de direito democrático, e eticamente
fundada, como é o caso presente, é que vai brigar com as regras legais de
competência para aplicação de sanções criminais.
5 — De tudo o resumidamente exposto, e ponderando o tronco comum da
criminalização do «incumprimento culposo» e das sanções para ele cominadas,
temos que as normas do n.º 2 do artigo 5.º e dos n.os 1, 2 e 3 do artigo 8.º são
materialmente inconstitucionais, porque ferem o princípio da reserva da função
jurisdicional ou da reserva do juiz:
— quando se desgradua o ilícito, que é criminal, em ilícito disciplinar, em
relação aos juízes infractores (n.º 2 do artigo 5.º);
— quando se atribui a competência ao Tribunal Constitucional, aos tribunais
administrativos e aos órgãos de disciplina, em relação aos juízes, para
aplicação de medidas que são sanções criminais (n.os 1, 2 e 3 do artigo 8.º). —
Guilherme da Fonseca.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Votei vencido relativamente às decisões constantes das alíneas a) e c) do
acórdão.
Brevemente indicarei os fundamentos do meu voto dissidente nestes pontos.
2 — Entendi que todo o Decreto n.º 185/VI (e, portanto, as normas objecto das
dúvidas de constitucionalidade suscitadas pelo Presidente da República no
presente processo de fiscalização preventiva de constitucionalidade) estava
afectado de vício procedimental que acarretava a respectiva
inconstitucionalidade, por violação do artigo 139.º, n.º 2, da Constituição.
As razões de tal juízo constam da primeira parte da declaração de voto que
juntei ao Acórdão n.º 13/95 (publicado no Diário da República, II Série, n.º 34,
de 9 de Fevereiro de 1995, pp. 1564-1565), visto que, no processo em que foi
preferido esse acórdão, se procedeu igualmente à fiscalização preventiva de
constitucionalidade de um Decreto da Assembleia da República, o Decreto n.º
183/VI, em que ocorrera situação perfeitamente idêntica: tendo havido um veto do
Presidente da República, emitido nos termos do artigo 139.º, n.º 1, da
Constituição, a Assembleia reformulou o anterior Decreto vetado, alterando
apenas um preceito, sem previamente o ter confirmado nos termos do artigo 139.º,
n.º 2, da Constituição. Dada a identidade de situações, impõe-se, por razões de
economia, remeter para o que consta da identificada declaração de voto.
Entre a situação apreciada pelo referido Acórdão n.º 13/95 e a presente pode
encontrar-se uma única diferença, a qual, porém, carece de qualquer relevo para
implicar a modificação da posição por mim assumida naquele processo: é que, no
Decreto n.º 183/VI, a alteração introduzida revestiu-se de carácter pontual e de
pormenor, dificilmente se podendo dizer que o órgão parlamentar se preocupou com
o teor do veto político do Presidente da República ou que tinha procurado ir ao
encontro de alguma das suas críticas, ao passo que, no presente caso, a
modificação revestiu-se de evidente relevância, como se demonstra no texto do
acórdão.
A diferença detectada não põe em causa, porém, a afirmação feita nessa
declaração de voto — na esteira da declaração de voto do Conselheiro Luís Nunes
de Almeida — de que a tese maioritária do Tribunal, acolhida desde o Acórdão n.º
320/89 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 13.º Vol., Tomo 1, pp. 29 e
segs.), propicia uma fraude à Constituição. Remete-se, para a demonstração de
tal afirmação, para a citada declaração de voto por mim subscrita.
3 — Considerei também — contra a opinião que fez vencimento — que o Decreto n.º
185/VI pretendeu igualmente abranger os juízes dos tribunais militares,
nomeadamente, os juízes militares do Supremo Tribunal Militar, como se pressupõe
no pedido do Presidente da República (bem como os restantes juízes dos outros
tribunais militares, acrescento).
A tese maioritária, porém, chegou à conclusão surpreendente de que a melhor
interpretação do decreto em causa, em especial dos seus artigos 5.º e 8.º,
indiciava o propósito de o legislador não ter querido impor aos juízes militares
o dever de apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º do mesmo
diploma. A teleologia do decreto apontaria, assim, para a exclusão dos mesmos
juízes militares do âmbito de aplicação deste. Do estatuto dos juízes dos
tribunais militares de instância — que têm de ser oficiais no activo —
resultaria que as suas «funções de juízes enquanto militares, isto é, as suas
funções de juízes são parte integrante das suas funções militares», o que
acarretaria, segundo a tese vencedora, a sua exclusão de um regime pensado para
os juízes comuns. Ainda segundo a mesma tese, como os tribunais militares têm a
sua competência confinada ao julgamento dos crimes militares, não têm
«competência para apreciar questões directamente relacionadas com interesses
patrimoniais de Estado ou para, em nome do povo», dirimir conflitos entre
interesses privados com uma dimensão patrimonial», pelo que faleceriam as razões
que pudessem ter conduzido o legislador a incluir os juízes militares entre as
entidades obrigadas a apresentar as declarações.
4 — Parece-me que é, no mínimo, temerária tal afirmação peremptória, constante
do acórdão.
Face ao articulado do Decreto n.º 185/VI, o intérprete há-de presumir que o
legislador «consagrou as soluções mais adequadas e soube exprimir o seu
pensamento em termos adequados» (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Ora, nos termos do artigo 2.º do Decreto n.º 185/VI, são titulares de cargos
públicos, para os efeitos do diploma, entre outros, «os juízes» [alínea e)]. O
artigo 4.º, n.º 3, estabelece que, em relação aos juízes, a declaração a que se
refere o artigo 3.º é actualizada cada quatro anos. Só ficam excluídos do dever
de actualização periódica os juízes «cujo mandato esteja temporalmente
determinado». No artigo 5.º, n.º 2, quando o infractor, no caso de não
apresentação das declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º, for um juiz, a
notificação, feita pela entidade competente para o depósito, para a entrega
dessa declaração em prazo subsequente à omissão, determinado na lei, «é
efectuada sob cominação de o incumprimento culposo ser qualificado, para efeitos
disciplinares, como grave desinteresse pelo cumprimento do dever profissional,
salvo tratando-se de juiz do Tribunal Constitucional ou do Tribunal de Contas,
aos quais se aplica o regime geral». Por último, o artigo 8.º, n.º 3, estatui
que, em relação aos juízes, «a competência é da entidade que detém poder
disciplinar, salvo tratando-se de juízes do Tribunal Constitucional ou do
Tribunal de Contas, aos quais se aplica o regime do n.º 1».
Da interpretação sistemática deste conjunto de disposições resulta para mim
claro que o legislador pretendeu abranger todos os juízes dos tribunais
estaduais consagrados constitucionalmente: juízes dos tribunais judiciais (onde
se incluem os juízes dos tribunais marítimos), dos tribunais administrativos e
fiscais, do Tribunal de Contas, dos tribunais militares e do Tribunal
Constitucional (artigos 211.º e 225.º da Constituição). De facto, só os juízes
destes tribunais podem ser qualificados como titulares de cargos públicos, sendo
certo que exercem esses cargos com permanência, sem limite de tempo ou por
períodos determinados.
Não são manifestamente abrangidos pelo Decreto n.º 185/VI os árbitros (juízes de
tribunais arbitrais — cfr. artigo 211.º, n.º 2, da Constituição e artigos 6.º e
seguintes da Lei n.º 31/86, de 29 de Agosto), nem, claro, os jurados, os juízes
sociais e os assessores técnicos que podem esporadicamente intervir na
administração da justiça (artigo 210.º da Constituição; quanto aos jurados,
veja-se o disposto no Decreto-Lei n.º 387-A/87, de 29 de Dezembro; quanto aos
juízes sociais, veja-se o Decreto-Lei n.º 156/78, de 30 de Junho, e a Lei n.º
7/79, de 9 de Fevereiro). De facto, no caso dos tribunais arbitrais
voluntários, estes não são órgãos estaduais, não dispondo de competência
própria, sendo os árbitros leigos escolhidos normalmente por convenção das
partes ou segundo regras estabelecidas na lei. No caso dos jurados, juízes
sociais e assessores técnicos, estamos perante pessoas que colaboram com a
justiça estadual de forma acidental, quer enquanto leigos representantes da
comunidade capazes de proceder a uma «especial ponderação dos valores sociais
ofendidos» (caso dos jurados e dos juízes sociais), quer enquanto pessoas
tecnicamente qualificadas que auxiliam os tribunais estaduais no julgamento de
certas matérias (veja-se, por exemplo, o disposto no artigo 649.º do Código de
Processo Civil; ou, no que toca aos tribunais marítimos, o disposto no artigo
2.º, n.º 2, da Lei n.º 35/86, de 4 de Setembro). Como referem Gomes Canotilho e
Vital Moreira, as três matérias reguladas no artigo 210.º da Constituição, sendo
embora distintas, têm um «ponto comum: a participação de cidadãos alheios à
magistratura judicial na função jurisdicional, incluindo na função de julgar»
(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pp.
802-803).
Como é evidente, estes leigos não exercem funções com carácter permanente (não
se considera o caso de eventuais árbitros de tribunais arbitrais permanentes,
figura sem relevo prático em Portugal) e, o que é determinante, não são
titulares de cargos públicos na função jurisdicional, pelo que não lhes pode ser
aplicável o disposto no Decreto n.º 185/VI, se vier a tornar-se lei.
5 — Os tribunais militares, previstos no artigo 215.º da Constituição, são
compostos por juízes militares e, ainda por juízes togados (juízes auditores nos
tribunais militares de instância; vogais relatores no Supremo Tribunal Militar —
artigos 270.º e 271.º do Código de Justiça Militar, aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 141/77, de 9 de Abril; o último destes artigos tem a redacção introduzida
pelo Decreto-Lei n.º 285/78, de 11 de Setembro). Nos termos constitucionais,
incumbe aos tribunais militares uma função essencialmente repressiva (artigo
205.º, n.º 2, da Constituição), na medida que lhes compete julgar os crimes
essencialmente militares ou outros crimes dolosos equiparáveis àqueles que, por
motivo relevante, a lei lhes venha a confiar. Além disso, a lei pode
atribuir-lhes competência para aplicação de medidas disciplinares (artigo 215.º
da Constituição).
Ora, segundo a tese que fez vencimento, só os juízes togados estariam obrigados
a entregar as declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º do Decreto n.º 185/VI.
Os juízes militares estariam isentos de tais deveres, na medida em que se
sustenta estarem excluídos do âmbito de aplicação do próprio diploma.
Todavia, os juízes militares, oficiais dos quadros permanentes do ramo das
forças armadas a que pertence o tribunal de instância, na situação de activo,
ou, no caso do Supremo Tribunal Militar, oficiais generais, no activo ou na
reserva, são juízes nomeados por períodos de tempo determinado (dois anos —
cfr. artigos 235.º, 237.º, 273.º, 274.º e 275.º do Código de Justiça Militar),
desempenhando indiscutivelmente um cargo público. O Presidente do Supremo
Tribunal Militar é mesmo nomeado pelo Presidente da República, sob proposta do
Conselho Superior de Defesa Nacional, por iniciativa do Chefe de
Estado-Maior-General das Forças Armadas [artigo 29.º, n.º 2, alínea a), da Lei
de Defesa Nacional — Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro].
O Decreto n.º 185/VI, ao incluir os juízes dos tribunais estaduais entre os
titulares de cargos políticos sujeitos ao dever de apresentação de declarações
de património e rendimentos, não operou qualquer delimitação entre as diferentes
espécies de juízes, em termos de excluir algumas delas do âmbito do diploma.
Criou, todavia, um regime geral para o comum dos juízes e um regime excepcional,
no que toca às consequências da omissão definitiva do dever de apresentação das
declarações previstas nos artigos 3.º e 4.º e no que toca à entidade com
competência sancionatória, aplicável apenas quanto aos juízes de dois tribunais
(o Tribunal Constitucional e o Tribunal de Contas).
Face ao que acaba de dizer-se, não se compreende o fundamento último da tese
maioritária ao pretender introduzir, no propósito do legislador, uma distinção
de regime entre juízes dos tribunais militares, consoante sejam militares de
carreira ou juízes oriundos dos tribunais judiciais. Não se vê, de facto, que o
estatuto militar brigue com o exercício ad tempus de funções judicativas pelos
militares que integram os tribunais militares e ainda se encontrem no activo ou
se encontrem já na reserva. Por outro lado, dificilmente se poderá sustentar
que a lei está pensada para tutelar o prestígio social e aumentar as garantias
de isenção apenas dos juízes que têm de apreciar questões directamente
relacionadas com interesses patrimoniais do Estado ou para, em nome do povo,
dirimir conflitos entre interesses privados com uma dimensão patrimonial. Com
tal critério, dificilmente se poderia compreender que juízes com competência
numa jurisdição especializada em questões de constitucionalidade — como é o caso
dos juízes do Tribunal Constitucional — devessem estar sujeitos aos deveres
previstos nos artigos 3.º e 4.º do Decreto n.º 185/VI.
A solução interpretativa da maioria que fez vencimento acaba, em última análise,
por degradar injustificadamente o estatuto dos juízes militares, equiparando-os,
na prática, a assessores técnicos dos «verdadeiros juízes», que são os togados.
Mas, como é evidente, nada autoriza tal solução face ao estatuto unitário dos
juízes dos tribunais militares.
6 — Do que fica resulta para mim como claro que os juízes dos tribunais
militares, sejam eles juízes militares, sejam, antes, juízes togados (juízes
auditores ou, no Supremo Tribunal Militar, vogais relatores) estão sujeitos, aos
deveres de entrega das declarações previstas no decreto como os restantes juízes
dos tribunais judiciais, administrativos e fiscais, ficando igualmente sujeitos,
em caso de incumprimento, culposo, ao poder disciplinar da entidade que detém
esse poder (artigo 8.º, n.º 3, do Decreto; artigo 219.º, n.º 3, da
Constituição).
7 — Tratando-se de juízes togados, a entidade com poder disciplinar sobre estes
é o Conselho Superior da Magistratura (artigo 219.º, n.º 1, da Constituição). A
solução do decreto em matéria de competência nada tem de censurável, como se
demonstrou no acórdão (cfr. artigos 247.º e 279.º, n.º 2, do Código de Justiça
Militar).
Relativamente aos juízes militares do Supremo Tribunal Militar, o Código de
Justiça Militar é omisso quanto ao respectivo regime disciplinar. Os juízes
militares dos tribunais militares de instância não podem ser sancionados
disciplinarmente durante o exercício das suas funções judicativas por actos
praticados fora do exercício de funções (o artigo 239.º, n.º 2, do Código de
Justiça Militar estatui que, sendo um juiz militar arguido de infracção
disciplinar fora do exercício das suas funções, o respectivo procedimento
disciplinar é «interrompido» até ao termo da sua comissão).
A verdade é que o Código de Justiça Militar não regula a questão da
responsabilidade disciplinar dos juízes militares por infracções disciplinares
cometidas no exercício das respectivas funções, sendo à primeira vista tentador
afirmar que a aparente lacuna deverá ser preenchida pela aplicação do
Regulamento de Disciplina Militar (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/77, de 9 de
Abril).
Não cabe agora apreciar a compatibilidade constitucional de tal solução em
termos gerais.
8 — Restritamente e no que toca à apreciação do Decreto n.º 185/VI, tenho para
mim como inadmissível que a referida responsabilidade disciplinar pudesse ser
atribuída à hierarquia do ramo das Forças Armadas a que pertencesse o respectivo
juiz militar. É que, na verdade, a competência disciplinar sobre os juízes só
deve constitucionalmente caber a um tribunal, em regra àquele a que pertence o
presumido infractor (solução que a lei ordinária consagra quer quanto ao
Tribunal Constitucional, quer quanto ao Tribunal de Contas: cfr. artigo 25.º da
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, quanto ao primeiro; artigo 41.º da Lei do
Tribunal de Contas, Lei n.º 86/89, de 8 de Setembro, quanto ao segundo) ou,
então, a um órgão constitucionalmente autónomo (caso do Conselho Superior de
Magistratura no que toca aos tribunais judiciais; caso do Conselho Superior dos
Tribunais Administrativos e Fiscais, relativamente aos tribunais dessa ordem —
artigo 219.º, n.os 1 e 2, da Constituição). Acresce que, no que toca à
competência para a aplicação de medidas disciplinares militares, a Constituição
permite à lei ordinária que atribua tal competência directamente aos tribunais
militares (artigo 215.º, n.º 3), solução que aqui haveria de ser consagrada por
maioria de razão.
Por isso, entendi que sofre de inconstitucionalidade o artigo 8.º, n.º 3, do
Decreto n.º 185/VI, no segmento em que, segundo a melhor interpretação, atribui
à hierarquia militar, nos termos do Regulamento de Disciplina Militar,
competência para sancionar os juízes militares que não tenham cumprido
definitivamente os deveres previstos nos artigos 3.º, 4.º e 5.º do diploma, por
violação do princípio constitucional de igualdade (artigo 13.º da Constituição),
na medida em que cria uma solução diversa, com menores garantias de
imparcialidade, sem haver fundamento material justificador da mesma.
Igualmente, e por se tratar de cargos exercidos por períodos determinados de
tempo, entendo que o regime do Decreto n.º 185/VI, na parte aplicável a todos os
juízes dos tribunais militares, é inconstitucional quanto à sanção cominada,
visto que lhes deveria ter sido imposto, também a eles, o regime de demissão,
aplicável aos juízes do Tribunal Constitucional (mas não aos juízes do Tribunal
de Contas, dado o juízo de inconstitucionalidade a que se chegou no acórdão,
nessa parte também por mim subscrito). Há, assim, manifesta violação do
princípio da igualdade.
Por último, sempre se dirá que das omissões inconstitucionais do legislador não
pode retirar-se, claro, a conclusão de que este pretendeu não abranger os juízes
dos tribunais militares… — Armindo Ribeiro Mendes.
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 — Também votei a alínea d) da decisão — tal como, de resto, a generalidade das
demais, sem prejuízo de um ou outro ponto, na especialidade, da fundamentação
delas, e correspondente desenvolvimento argumentativo, que, merecendo-me embora
alguma dúvida (ou até distanciamento), não justificaria em todo o caso o
destaque de uma declaração de voto.
Quanto à matéria da mencionada alínea d), porém, cumpre-me dizer que o meu voto
decorre, fundamentalmente, da circunstância de ter já assumido explicitamente
noutra sede («Sumários» de Direito Constitucional, II, Faculdade de Direito de
Coimbra, ano lectivo de 1983/84 e seguintes) o entendimento de que, na alínea c)
[antes, alínea h)] do artigo 167.º da Constituição, se inclui também a definição
da «competência» do Tribunal Constitucional. Advertido agora, de novo, para o
problema, esse entendimento já não se me apresenta como tão linear — sendo que,
nomeadamente, parte da argumentação que em seu abono se invoca no acórdão não se
me afigura especialmente probante. Seja como for, tendo vindo a ser aquela a
minha posição, desde logo não devia alterá-la nesta outra sede e neste momento
(em que a questão se pôs pela primeira vez ao Tribunal); ao que acresce, de
resto, que, no puro plano doutrinário, o que me fica é, não propriamente a
convicção contrária, mas antes um estado de dúvida.
2 — Votei vencido quanto às alíneas e) e h) da decisão, pelo essencial das
razões aduzidas a esse respeito na declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Bravo
Serra, que assim acompanho, nessa parte. Apenas me permitirei acrescentar que,
a meu ver, para tais razões bem se encontrará fundamento constitucional
explícito, seja directo ou indirecto, na parte final do artigo 50.º, n.º 3, da
Lei Fundamental — norma da qual se faz, no acórdão, uma interpretação que julgo
excessiva —, em conjugação, se se quiser (e muito provavelmente), com a
referência do artigo 120.º, n.º 2, da Constituição. — José Manuel Cardoso da
Costa.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, I Série-A, de 10 de Março