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Proc. nº 219/94
1ª Secção
Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - O Ministério Público deduziu acusação e requereu o julgamento,
em processo comum e com intervenção do tribunal singular, dos arguidos M... e
N...,Ldª., sociedade comercial com sede em Lisboa, imputando-lhes a prática de
um crime previsto e punível pelas disposições combinadas dos artigos 3º, 7º, 8º,
24º, nº 1, alínea c), 81º, nº 1, alínea c) e 82º, nº 2, alínea c) do Decreto-Lei
nº 28/84, de 20 de Janeiro.
No 3º Juízo Correccional da comarca de Lisboa, por sentença de 11 de
Outubro de 1993, foram os arguidos condenados: (a) o primeiro, pela prática de
um crime contra a genuinidade dos géneros alimentícios, a título de
negligência, previsto e punível nos termos do artigo 24º, nº 1, alínea c) e nº 2
do Decreto-Lei nº 28/84, na pena de 60 dias de prisão substituída por igual
tempo de multa à razão diária de 300$00, ou seja, na multa de 18.000$00 ou, em
alternativa, quanto á multa, em 40 dias de prisão e em 22 dias de multa a igual
taxa, ou seja, na multa de 6.600$00 ou, em alternativa, em 14 dias de prisão, o
que perfaz a multa total de 24.600$00 e a alternativa de 54 dias de prisão; a
segunda, por força do disposto nos artigos 3º e 7º do Decreto-Lei nº 28/84, na
pena de 20 dias de multa à taxa diária de 1.000$00, ou seja, na multa de
20.000$00.
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2 - Inconformados com o assim decidido interpuseram os arguidos dois
recursos para o Tribunal da Relação de Lisboa, importando apenas considerar nos
presentes autos o que se reporta às normas do artigo 342º, do Código de Processo
Penal, em cuja motivação se formularam as conclusões seguintes:
'Foram aplicados dispositivos dos nºs 2 e 3 do artigo 342º do Código de
Processo Penal e logo no início da audiência.
Estes dispositivos são inconstitucionais por ofensa das disposições já
citadas nomeadamente no artigo 32º, nºs 1, 2 e 5, artigo 29º e artigo 207º [da
Constituição] e artigos 6º e 7º da citada Convenção Europeia.
A perigosidade dos dispositivos fica demonstrada pelo constraste entre o
registo criminal do Réu M... e a certidão do processo que se protesta juntar.
Esta perigosidade reforça o pedido de que tais dispositivos devem ser
declarados inconstitucionais e em consequência anulado o julgamento'.
Porém, por acórdão de 9 de Março de 1994, o Tribunal da Relação
rejeitou o recurso, dele não tomando conhecimento.
E para tanto, no essencial, desenvolveu a fundamentação seguinte:
'Só as decisões judiciais são susceptíveis de recurso - artº 399º do Código
de Processo Penal - havendo um prazo que é de 10 dias, a contar da notificação
da decisão de que se recorre, para o interessado, com legitimidade para o
efeito, usar desse direito - artºs. 401º nº 1 e 411º nºs 1 e 2 do Código de
Processo Penal.
O presente recurso vem interposto de um acto judicial em que, no dizer dos
recorrentes, o tribunal aplicou uma norma . artº 342º nºs 2 e 3 do Código de
Processo Penal, que eventualmente será inconstitucional por violar os artsº 32º
nºs 1, 2 e 5, 29º e 207º da Constituição da República.
Contudo, dos actos judiciais não se recorre. Só de decisões judiciais,
dentro do prazo de 10 dias a contar da notificação.
O acto judicial que se invoca no recurso ocorreu em 3.10.93 e o recurso foi
interposto em 21.10.93, decorridos que foram também mais de 10 dias, após a sua
prática a que o arguido M... esteve presente.
Para que os arguidos pudessem recorrer para esta Relação, da
inconstitucionalidade do artº 342º nºs 2 e 3 no Código de Processo Penal
aplicado num acto judicial, teriam eles de previamente suscitar essa questão
perante o juiz de 1ª instância, provocando desta forma uma decisão judicial que
apreciasse e decidisse essa questão.
Só depois poderiam eles recorrer desta decisão.'
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3 - Sempre inconformados, oa arguidos, sob invocação do disposto no
artigo 70º, nº 1, alínea b) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, trouxeram então
os autos em recurso ao Tribunal Constitucional.
Na peça alegatória depois oferecida traçaram o seguinte quadro de
conclusões:
'1 - Os nºs 2 e 3 do artº 342 do vigente CPP são disposições contraditórias
com o resto do sistema processual penal vigente.
2 - E são inconstitucionais.
3 - Contraditórias, porque não se compaginam com o segredo de justiça e com
a constituição do arguido - que umas por um lado, proibem que se desvele os
processos em curso, mas, por outro, estas impõem que o arguido constituido
revele a existência desses processos.
4 - Contraditam também o artº 345º do CPP, que dá ao arguido direito ao
silêncio (nemo se detegere) e a não se auto-incriminar (cfr. Vº Aditº à
Constituição EUA).
5 - Constituem um acto vexatório no início do julgamento e tanto o
constituem que aí está o CPP, cheio de garantias, a dizer no nº 5 do artº 371
que a prova suplementar pode resultar em ofensa à dignidade do arguido.
E então não resulta, logo no início do processo?
Com o REGISTO CRIMINAL ERRADO? (ut supra nº 7).
6 - São disposições desnecessárias, porque antes já houveram os artigos 250
e 295, 61, 3 b) e 141, 3 do CPP.
7 - Depois há o artº. 379º e segts para a determinação da sanção.
8 - Desnecessários e contraditórios, esses nºs 2 e 3 do artº. 342 violam
também a Constituição nas garantias de defesa, que é sem justificação
publicamente atemorizada, viola a presunção de inocência porque são exactamente
destinados a provar a não inocência, violam o princípio do acusatório e do
contraditório porque fazem vir à baila factos deprimentes e de surpresa, quer
tenham quer não tenham a ver com os factos em discussão (art. 32, nºs 1, 2 e 5,
da CRP), publicitam contra disposição expressa do nº 5 do artº 29 da CRP os
crimes praticados, violam a integridade moral, submetem a tratos degradantes
(artº 25 da CRP) ao impor ao R. que se declare por crimes que nem se sabe se o
são, mas cujos processos estão em curso, violam as garantias contra a utilização
abusiva de informações relativas às pessoas (artº 26 da CRP) e restringe todos
estes direitos sem justificação, diminuindo assim a extensão e o alcance do seu
conteúdo essencial, pelo que violam o artº 18 da Constituição.
9 - Violam ainda a independência na vertente da imparcialidade dos Tribunais
(artº 207 da Constituição), porque obrigam os Tribunais a amedrontar o arguido,
em vez de imparcialmente estabelecer os factos pelos quais vem acusado.
Finalmente, e no mesmo sentido, violam a Convenção Europeia dos Direitos
do Homem nos seus arts. 6 e 7.
10 - O nº 3 do artº 342 do CPP, ainda, e especialmente, viola o princípio do
mullum crimen et mulla poena sine lege certa, atento o princípio constitucional
versado no artº 10.2 do CP, e o que acaba de ser exposto (aonde está o dever
jurídico de uma pessoa se rebaixar?! - relembre-se o Vº Adtº à Constituição do
EUA ou o nº 2 do 554 do CPC, ou 345, 1 do CPP).
Praza a Thémis que este Venerando Tribunal Constitucional possa
finalmente, quanto aos nºs 2 e 3 do artº 342 do CPP vigente declará-los
inconstitucionais, já que a Ciência do Direito há muito os condenou'.
O senhor Procurador-Geral Adjunto na contralegação que entretanto
produziu veio suscitar a questão preliminar do não conhecimento do objecto do
recurso aduzindo, conclusivamente, o seguinte:
'1 - Segundo os artigos 280º, nº 1, alínea b), da Lei Fundamental, e 70º, nº
1, alínea b), da Lei nº 28/82, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das
decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido
suscitada durante o processo.
2 - Assim, faltando, como falta in casu, um dos pressupostos daquele tipo de
recurso - a aplicação de uma norma numa decisão dos tribunais - não deverá
conhecer-se do presente recurso.
Os arguidos tiveram ensejo de se pronunciar sobre esta questão
reiterando a sua argumentação no sentido de um julgamento de
inconstitucionalidade daquelas normas.
Corridos os vistos de lei cabe passar à apreciação e decisão da
referenciada questão prévia.
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II - A questão prévia
1 - No dia 7 de Outubro de 1993, no 3º Juízo Correccional de Lisboa,
teve lugar a audiência de julgamento dos arguidos a que se reportam os presentes
autos, consignando-se na respectiva acta (fls. 75) que 'se procedeu de acordo
com o disposto no artigo 339º do Código de Processo Penal de 1987' havendo o
arguido M... depois de 'advertido nos termos do artigo 342º, nº 3 do Código de
Processo Penal de 1987' prestado ao senhor Juiz do processo informação sobre a
sua identidade e antecedentes criminais.
Após as declarações do arguido foi produzida a prova testemunhal,
seguindo-se as alegações do Ministério Público e do senhor advogado de defesa,
findas as quais se suspendeu a audiência para continuar no dia 11 imediato,
data em que teve lugar a leitura da sentença.
Aquando do interrogatório do arguido e das perguntas que lhe foram
feitas em obediência ao disposto no artigo 342º, nsº 2 e 3, do Código de
Processo Penal, segundo os quais 'o presidente pergunta ao arguido pelos seus
antecedentes criminais e por qualquer outro processo penal que contra ele nesse
momento corra, lendo-lhe ou fazendo com que lhe seja lido, se necessário, o
certificado do registo criminal', e advertindo-o 'de que a falta de resposta às
perguntas feitas ou a falsidade da mesma o pode fazer incorrer em
responsabilidade criminal', o senhor advogado de defesa não formulou qualquer
requerimento ou suscitou questão de constitucionalidade relativamente à
utilização do comando contido em tal norma, razão pela qual sobre a sua
utilização não foi proferida pelo senhor juiz do processo decisão alguma.
Entretanto, após haverem sido notificados da sentença condenatória,
por requerimento de 21 de Outubro de 1993, vieram os arguidos interpor recurso
para a Relação de Lisboa, da 'aplicação do artigo 342º do Código de Processo
Penal', suscitando na respectiva alegação a inconstitucionalidade deste
preceito.
Este recurso, como já se observou, foi rejeitado pelo Tribunal da
Relação, subindo depois os autos na via da impugnação constitucional a este
Tribunal.
Será que não se verificam os pressupostos indispensáveis ao seu
conhecimento?
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2 - Como é sabido, no domínio da fiscalização concreta de
constitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional, nomeadamente,
das decisões dos tribunais que recusem a aplicação de qualquer norma com
fundamento na sua inconstitucionalidade, que apliquem norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo e que apliquem
norma anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio Tribunal
Constitucional [artigos 280º, nºs 1, alíneas a) e b) e 5 da Constituição e 70º,
nº 1, alíneas a), b) e g) da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada
pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro].
E, no quadro dos pressupostos de admissibilidade destes recursos,
avulta, em todos os casos, a exigência de uma decisão que, consoante as
situações, tenha procedido a uma efectiva aplicação de uma norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante processo [artigos 280º, nº 1,
alínea b) da Constituição e 70º, nº 1, alínea b) da Lei do Tribunal
Constitucional], ou de norma anteriormente julgada inconstitucional pelo
Tribunal Constitucional [artigos 280º, nº 5 e 70º, nº 1, alínea g), dos mesmos
diplomas], ou tenha rejeitado a aplicação de uma norma, com fundamento em
inconstitucionalidade, sendo que tal norma, a não ser essa desaplicação,
constituiria fundamento jurídico-normativo da decisão impugnada [artigo 280º, nº
1, alínea a) da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) da já citada Lei nº 28/82].
Por outro lado, porque o recurso de constitucionalidade desempenha
uma função instrumental, no sentido de só dever conhecer-se das questões de
constitucionalidade quando a decisão a proferir possa influir utilmente no
julgamento da questão de mérito, é manifesto que tal só se verifica quando a
norma constitucionalmente controvertida seja aplicada na decisão recorrida como
seu fundamento normativo (cfr. sobre esta específica matéria a jurisprudência do
Tribunal Constitucional, citando-se por todos o acórdão nº 257/92, Diário da
República, II série, de 18 de Junho de 1993).
Ora, à luz das precedentes considerações tem-se por segura a
inverificação, no caso em apreço, de um dos pressupostos essenciais ao
conhecimento do objecto do recurso.
Com efeito os arguidos não suscitaram a questão da
constitucionalidade da norma do artigo 342º, nº 2 e 3 do Código de Processo
Penal aquando da sua aplicação pelo senhor Juiz do tribunal de 1ª instância,
não se verificando, consequentemente, o proferimento de uma decisão sobre a sua
legitimidade constitucional.
Poderiam então ter levantado a questão da inconstitucionalidade
dessa norma em termos de, na sua sequência, ser proferido um despacho de
provimento ou de rejeição susceptível de vir a ser objecto de um recurso de
constitucionalidade.
Mas não o fizeram, inviabilizando assim, e desde logo a via da
impugnação constitucional. Por outro lado, na eventualidade de se entender que a
simples identificação do arguido e a consequente aplicação daquela norma
consubstanciava já, em si mesmo, uma decisão judicial para os efeitos da
interposição de recurso de constitucionalidade, sempre haveria de se concluir,
no caso concreto, que um julgamento de inconstitucionalidade daquele preceito
questionado não se revestiria de efeito útil para o julgamento da causa, dado o
conteúdo absolutório do acórdão do Tribunal da Relação que julgou o recurso
interposto pelos arguidos relativamente à sentença de condenação proferida pela
1ª instância.
E de tudo isto há-de concluir-se no sentido da inverificação de
pressupostos de que depende a admissão do recurso de constitucionalidade.
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III - A decisão
Nestes termos, concede-se atendimento à questão prévia suscitada
pelo Ministério Público e, em consequência, não se toma conhecimento do objecto
do recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em UCs.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 1995
Ass) Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vitor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria Fernanda Palma (votei o presente acórdão com fundamento, exclusivamente,
na falta de interesse processual e nos termos da declaração junta)
José Manuel Cardoso da Costa
Declaração de voto
Votei em conformidade com a decisão constante do
acórdão, apenas com fundamento na falta de interesse processual, uma vez que o
arguido foi absolvido. Todavia, considero que o significado instrumental do
recurso de constitucionalidade já se verificaria se o arguido não tivesse sido
absolvido.
Na realidade, a norma considerada inconstitucional pelo
recorrente sempre poderia ser fundamento implícito da decisão final do processo.
Tanto basta para que o acto de aplicação de tal norma seja, em si mesmo,
elemento de uma decisão judicial ou tenha o significado de uma decisão judicial
para efeito de controlo de constitucionalidade da norma.
A via de provocar uma decisão formalmente autónoma para,
posteriormente, possibilitar o recurso de constitucionalidade não corresponde,
obviamente, a uma visão substancialista da utilização dos instrumentos
processuais e, por isso, não é exigível. Não é previsível que o mesmo juiz que
aplicou a norma a venha depois considerar inconstitucional ao apreciar o
requerimento em que a questão é suscitada (para posteriormente se poder
recorrer). Trata-se, neste caso, de um acto absolutamente inútil, encarado numa
lógica estritamente processual.
A necessidade de obter uma decisão recorrível deve ter
sempre como fundamento a possibilidade de revisão da aplicação da norma feita
anteriormente. Ora, neste caso não é previsível, pelo recorrente, qualquer
revisão da aplicação da norma, sendo, por conseguinte, inexigível que ele
suscite a questão perante o juiz a quo.
As) Maria Fernanda Palma