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Processo n.º 483/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Nos presentes autos, que correm termos no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, o Ministério Público deduziu despacho de encerramento do inquérito, tendo nesse despacho, além do mais, determinado a separação de processos relativamente a parte da factualidade denunciada cuja investigação não se encontrava concluída.
O arguido A. requereu a abertura da instrução, tendo suscitado, a título de questão prévia, uma irregularidade/nulidade consistente no desaforamento e separação de processos conexos e juntos na fase de inquérito.
Foi proferida decisão instrutória que declarou a invalidade – inexistência jurídica – do despacho em que o Ministério Público decidiu determinar a separação processual nos termos do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e a subsequente extração de certidão para conclusão autónoma da investigação, por violação do disposto nos artigos 30.º e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 29 de março de 2011, concedeu provimento ao recurso e, revogando a decisão recorrida, determinou a sua substituição por outra que pressuponha que cabe ao Ministério Público, na fase de inquérito, a competência para ordenar a separação de processos nos termos do artigo 30.º do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 264.º, n.º 5, do mesmo Código.
O Arguido interpôs então recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
O Recorrente apresentou as respetivas alegações, culminando as mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
«[...]
A) Do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, não cabe qualquer tipo de recurso ordinário.
B) A apreciação da constitucionalidade foi suscitada no requerimento de abertura de instrução, apreciada na decisão proferida pela 1ª instância (da forma que ora se defende) e apreciada novamente no acórdão recorrido.
C) O artigo 30º do C.P.P., aplicável à fase de inquérito por força do artigo 264º / nº 5 do C.P.P. consagra que cabe ao Tribunal ordenar a separação de processos, a requerimento do M.P.
D) Do Acórdão recorrido decorre que na fase de inquérito a separação de processos cabe ao M.P., por ser este quem dirige tal fase, mais a mais, entendendo-se que tal separação não limita nenhum dos Direitos, Liberdades e garantias do arguido.
E) No entanto a interpretação destas normas, da forma como vem defendida no Acórdão recorrido é manifestamente inconstitucional, por afrontar os princípios consagrados na Lei Fundamental nos artigos 32º / nº 4 e 9 e artigo 202º / nº 2.
F) Com efeito, o ato de ordenar a separação de processos não se insere na competência exclusiva do M.P. para a investigação ou recolha de provas.
G) Por uma razão de sistemática, faz-se notar que o artigo 30º se insere no capítulo das competências do Tribunal,
H) Por uma razão de semântica e de interpretação literal, sublinha-se que a separação sob ser ordenada a requerimento do M.P.
I) Por uma razão teleológica deve considerar-se que cabe ao Juiz, onde se lê Tribunal, ordenar a separação de processos.
J) Por uma razão de reserva ou controlo jurisdicional o Juiz é o único que pode assegurar a natureza jurisdicional da decisão, e a possibilidade de defender as garantias do arguido, como seja do seu direito ao recurso.
K) A separação de processos não cabe na recolha de provas, nem na investigação, antes sim na proteção das garantias em processos penal, já que também o arguido tem o direito constitucional a não ver recair sobre si o eterno juízo de censura criminal, difundido por um número ilimitado de Tribunais (o que no caso dura para além de 10 anos).
L) Assim, entendendo-se que a separação de processos cabe nas garantias do processo penal e contende com os Direitos do arguido, então a decisão recorrido só por si seria uma afronta ao Princípio consagrado no artigo 32º / nº 4 da C.R.P.
M) A não ser assim, tendo o JIC sido chamado a intervir no processo que ainda se encontra em fase de inquérito, a decisão de separação de processos não lhe podia ser usurpada pelo M.P., sob pena de violar o princípio do Juiz Natural.
N) Também por este argumento enfermaria o Acórdão recorrido de inconstitucionalidade, já que por força da distribuição judicial, a causa foi submetida ao JIC.
O) Assim, a decisão de separar processos é jurisdicional, dela cabe recurso, pelo que a competência para a prática deste ato está adstrita ao JIC, mais a mais, quando este já foi chamado a intervir no processo, ainda que em fase de inquérito.
P) As normas dos artigos 264º / nº 5 e 30º do C.P.P., assim interpretadas são inconstitucionais.
Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e, em consequência, declarada a inconstitucionalidade dos artigos 264º / nº 5 e 30º do C.P.P., com a interpretação que lhes foi dada, e em consequência revogado o Acórdão recorrido, assim se fazendo, JUSTIÇA! ”
O Ministério Público contra-alegou e concluiu pela seguinte forma:
“[…]
a) Questão prévia
1. A decisão impugnada não aplicou, para resolver a causa penal, a “norma” (ou “interpretação normativa”), que a recorrente identifica como sendo objeto do recurso, ou seja, aquela extraída “dos artigos 30º, nº 1 e 268º nº 1, alínea f) do CPP”.
2. Por conseguinte, a preterição de tal pressuposto processual determinará a impossibilidade do conhecimento deste meio impugnatório.
Sem conceder,
b) A “reserva de juiz de instrução”
3. A decisão de separação de algum ou alguns “inquéritos” opera na fase de “inquérito”, não configura um “ato de instrução” e não determina, nunca, a abolição da “instrução”, sendo sempre competente para a dirigir o “juiz de instrução criminal”, nos termos da Constituição e da lei.
4. Por todas essas razões, a decisão de separação de algum ou alguns inquéritos, tomada pelo competente Ministério Público, não viola a “reserva de juiz”, garantida pela lei constitucional em sede de “instrução”.
c) O juiz “legal” ou “natural”
5. O “desaforamento” que, eventualmente, decorra da decisão de separação de algum ou alguns inquéritos, no sentido da lei processual penal, não é “concreto e, portanto, discricionário”.
6. Antes, opera segundo critérios gerais, abstratos e objetivos, dispostos pela lei processual penal anterior ao facto, pelo que não afronta o princípio do “juiz legal” (determinado mediante aplicação objetiva de prévios critérios legais) ou do “juiz natural”.
d) Função jurisdicional
7. A Constituição não estabelece qualquer “reserva de juiz” para efeitos de direção do “inquérito” e, em particular, para nele decidir sobre a separação de alguns ou alguns inquéritos, por isso que tal ato não materializa o exercício da jurisdição.
8. A Constituição não consagra qualquer “direito fundamental” à conexão processual, passível de ser lesado pela decisão de separação de algum ou alguns inquéritos e que incumba aos tribunais proteger.
Nestes termos, não é de conhecer do objeto do presente recurso de inconstitucionalidade ou, sem conceder, é de negar provimento ao mesmo, por não proceder qualquer questão de inconstitucionalidade nele suscitada (LOFPTC, art. 78.º-A, n.º 1).
O Recorrido B. contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:
«I - A decisão recorrida não viola o artigo 32º, nº 9, nem os artigos 24º e 27º e nem o artigo 202º, todos do C.R.P.;
II - Foram apenas estas as normas contempladas na decisão, se bem que apenas na fundamentação, e não na parte decisória;
III - O recurso não obedece aos requisitos dos artigos 70º, alínea b) e 72º, nº 2, da Lei 28/82, de 15 de novembro, pois o recorrente nem sequer alega ter levantado a questão da inconstitucionalidade com vista à decisão recorrida;
IV - O recurso não concretiza, nas suas conclusões ou pedido, o sentido com que devem ser interpretadas as normas que impugna de inconstitucionalidade;
V - As normas dos artigos 264º, nº 5 e 30º do CPP, interpretadas no sentido de que é o M.P. o competente para decidir a conexão ou separação de processos, em inquérito, não são inconstitucionais.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso
Como é de JUSTIÇA»
Fundamentação
1. Do conhecimento do recurso
O Ministério Público e o Recorrido, B., nas suas contra-alegações, suscitaram questões respeitantes à falta de requisitos para que o recurso possa ser conhecido.
Alega o Ministério Público que no requerimento de interposição de recurso não consta, conforme determina o art. 75.º-A, nº 1, da LTC, “a norma cuja inconstitucionalidade (…) se pretende que o tribunal aprecie” e que, nas alegações de recurso, juntas no tribunal a quo, com aquele requerimento, o Recorrente descreveu o objeto do recurso como sendo a “fiscalização da constitucionalidade dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando interpretados no sentido de caber ao Ministério Público a competência para ordenar, em fase de inquérito, a separação processual, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões”, e conforme resulta literalmente da fundamentação e, sobretudo, do dispositivo do acórdão recorrido, a “norma de decisão” foi deduzida das disposições conjugadas dos artigos 30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, pelo que a decisão impugnada não aplicou, para resolver a causa penal, a “norma” (ou “interpretação normativa”), que o recorrente identifica como sendo objeto do recurso, ou seja, aquela extraída “dos artigos 30.º, n.º 1, e 268.º, n.º 1, al. f), do CPP”.
O Recorrido B., por sua vez, sustenta que o Recorrente invoca a violação dos artigos 34.º, n.ºs 4 e 9, e 202.º, n.º 2, da Constituição, mas não se deteta, nem o Recorrente alega ter levantado tal questão de inconstitucionalidade com o alcance que ora suscita perante o tribunal recorrido.
As questões suscitadas pelo Ministério Público e pelo Recorrido são prévias ao conhecimento do mérito do recurso, pelo que importa começar pela sua apreciação. Tais questões são, em síntese, as seguintes:
- falta de indicação, no requerimento de interposição de recurso, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal aprecie;
- falta de aplicação, pela decisão recorrida, da norma que o Recorrente identifica como sendo objeto do recurso;
- falta de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade com o alcance que consta do requerimento de interposição de recurso.
1.1. Falta de indicação, no requerimento de interposição de recurso, da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o tribunal aprecie.
Analisado o requerimento de interposição de recurso, constata-se, como refere o Ministério Público, que aí não consta, conforme determina o artigo 75.º-A, nº 1, da LTC, “a norma cuja inconstitucionalidade (…) se pretende que o tribunal aprecie”.
Tal omissão determinaria que fosse efetuado, nos termos do artigo 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC, um convite ao Recorrente no sentido de suprir tal deficiência. Contudo, no caso dos autos, o Recorrente apresentou junto do tribunal a quo, em simultâneo com o requerimento de interposição de recurso, as “alegações”, das quais fez constar que pretende sindicar a “constitucionalidade dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando interpretados no sentido de caber ao Ministério Público a competência para ordenar, em fase de inquérito, a separação processual, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões”, pelo que se entendeu desnecessário efetuar o aludido convite ao aperfeiçoamento, considerando-se suprida a mencionada omissão com a apresentação do texto que acompanhava o requerimento de interposição do recurso.
1.2. Falta de aplicação, pela decisão recorrida, da norma que o Recorrente identifica como sendo objeto do recurso
Outra questão suscitada pelo Ministério Público prende-se com o facto de, segundo alega, a “norma de decisão” ter sido deduzida das disposições conjugadas dos artigos 30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, não tendo a decisão impugnada aplicado, para resolver a causa penal, a norma que o Recorrente identifica como sendo objeto do recurso, ou seja, aquela extraída “dos artigos 30.º, n.º 1, e 269.º, n.º 1, al. f) do CPP”.
A questão que se coloca traduz-se, assim, em saber se a interpretação normativa arguida de inconstitucional constitui ratio decidendi do acórdão recorrido.
Vejamos se assim é.
O Recorrente, nas “alegações” que acompanharam o requerimento de interposição de recurso disse que pretendia ver fiscalizada a “constitucionalidade dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), ambos do C.P.P., quando interpretados no sentido de caber ao Ministério Público a competência para ordenar, em fase de inquérito, a separação processual, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões”.
A decisão instrutória proferida neste processo considerou que, na fase processual de inquérito, a competência para decidir da separação de processos pertence ao Ministério Público no caso de o inquérito não ter sido ainda presente ao juiz de instrução e que, nos casos em que o processo já tenha sido previamente apresentado ao juiz de instrução, tal competência cabe a este, não tendo o Ministério Público competência para a determinar.
Refere-se ainda na decisão instrutória que o entendimento segundo o qual a referida competência pertence ao Ministério Público põe em causa o princípio do juiz natural e as garantias de defesa do arguido, tendo-se decidido, assim, declarar a invalidade – inexistência jurídica – do despacho em que o Ministério Público determinou a separação processual nos termos do disposto nas alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e a subsequente extracção de certidão para conclusão autónoma da investigação, por violação do disposto nos artigos 30.º e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, ao ter decidido que a competência para determinar a separação de processos na fase processual de inquérito pertence, em qualquer circunstância, ao Ministério Público, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães entendeu necessariamente que, mesmo nos casos em que o juiz de instrução já tenha sido chamado a tomar decisões no inquérito (como acontece no presente caso), tal competência cabe ainda ao Ministério Público, pelo que se tem de concluir que a decisão recorrida aplicou precisamente a interpretação normativa arguida de inconstitucional pelo Recorrente.
Por outro lado, é certo que na interpretação normativa que indicou como objeto do presente recurso, no texto apresentado com o respetivo requerimento de interposição, o Recorrente apenas menciona as normas dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, como aquelas em que se ancorou a interpretação questionada. Mas nas alegações de recurso que apresentou posteriormente essa interpretação já é imputada, indistintamente, quer ao arco normativo constituído pelos referidos preceitos, quer ao arco normativo constituído pelos artigos 30.º e 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, coincidindo nesta última referência com aquela que consta do segmento decisório do Acórdão recorrido.
É sabido que a identificação da interpretação normativa sindicada, para efeitos de cumprimento dos requisitos formais de interposição do recurso constitucional assenta prioritariamente na enunciação, de forma certeira, do conteúdo do critério normativo adotado como seu fundamento pela decisão recorrida. Quanto à indicação dos preceitos legais a que se reporta essa interpretação, deverá existir alguma flexibilidade na apreciação de tal “coincidência”, particularmente nos casos em que ocorra alguma indefinição ou flutuação da decisão recorrida na referência aos preceitos que surgem como “fundamento de direito” da solução jurídica alcançada, desde que o critério normativo enunciado pelo recorrente encontre suporte bastante nos preceitos legais mencionados como núcleo fundamental do regime jurídico em causa (vide, neste sentido Lopes do Rego, em “Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional”, p. 208-209, da edição de 2010, da Almedina e jurisprudência do Tribunal Constitucional aí citada) .
Verifica-se que a norma do n.º 5, do artigo 264.º, do Código de Processo Penal, está necessariamente incluída na dimensão normativa cuja inconstitucionalidade foi suscitada, uma vez que é tal norma que, ao remeter para o artigo 30.º, do mesmo diploma, justifica a sua aplicação na fase de inquérito. A isto acresce que, embora a decisão recorrida não se refira expressamente, na parte decisória, ao artigo 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, este preceito coadjuvou a interpretação sustentada na decisão recorrida, pois uma das razões pelas quais se entendeu que a competência para ordenar a separação de processos na fase de inquérito cabia ao Ministério Público, resultou do entendimento de que a separação de processos não pertence ao catálogo dos atos processuais que só podem ser praticados pelo juiz de instrução ou que carecem de ser ordenados ou autorizados por este, não integrando qualquer das hipóteses previstas nos artigos 268.º e 269.º do Código de Processo Penal e, designadamente, a hipótese da alínea f) do n.º 1, do artigo 269.º.
Deve considerar-se, pois, que na indicação pelo Recorrente dos preceitos legais em que se ancorou a interpretação aqui em análise, se encontrava incluído o disposto no artigo 264.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, e na fundamentação da decisão recorrida essa interpretação se baseou também no disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea f), do mesmo diploma.
Assim, no caso concreto, pelas razões referidas, não deverá constituir fundamento para não conhecimento do objeto do presente recurso a circunstância de, não obstante ter indicado com precisão o conteúdo da interpretação normativa aplicada, o Recorrente não ter indicado expressamente no texto que acompanhava o requerimento de interposição de recurso, com rigorosa coincidência, os preceitos legais referidos na parte decisória da decisão recorrida.
1.3. A falta de suscitação da questão de constitucionalidade em termos procedimentalmente adequados
O Recorrido B. levanta ainda a questão de saber se o Recorrente suscitou perante o tribunal recorrido a questão de constitucionalidade que agora pretende ver apreciada pelo Tribunal Constitucional e se o fez em termos adequados.
Importa, pois, analisar em que termos é que o Recorrente suscitou a questão de inconstitucionalidade por forma a apreciar se esta foi validamente suscitada.
Relembrando, quando notificado do despacho de encerramento do inquérito, em que foi determinada, pelo Ministério Público, a separação de processos, o ora Recorrente requereu abertura de instrução e em tal requerimento alegou, além do mais, que tal separação não se mostrava fundamentada em nenhuma das alíneas do citado artigo 30.º, do Código de Processo Penal, e sustentou ainda ter havido desrespeito pelos direitos dos arguidos, constitucionalmente garantidos nos artigos 26.º e 32.º da CRP.
A decisão instrutória considerou que, na fase processual de inquérito, a competência para decidir da separação de processos pertence ao Ministério Público no caso de o inquérito não ter sido ainda presente ao juiz e que, nos casos em que o processo já tenha sido apresentado ao juiz de instrução, tal competência cabe a este e não ao Ministério Público. Refere-se ainda em tal decisão que o entendimento segundo o qual, nesta última hipótese, a referida competência pertence ao Ministério Público põe em causa o princípio do juiz natural e as garantias de defesa do arguido. Decidiu-se, assim, declarar a invalidade – inexistência jurídica – do despacho em que o Ministério Público determinou a separação processual nos termos do disposto nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo Penal, e a subsequente extração de certidão para conclusão autónoma da investigação, por violação do disposto nos artigos 30.º e 269.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal e 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa.
Tendo o Ministério Público recorrido desta decisão, o arguido – ora Recorrente –, terminou as suas contra-alegações formulando, entre outras, as seguintes conclusões:
“(…)
C) Entende o recorrido que, tendo o Juiz de Instrução sido chamado a decidir no âmbito deste inquérito, estando em causa como estão a limitação dos Direitos, Liberdades e Garantias do arguido, caberia sempre ao JIC a competência material para conhecer e decidir do mérito da separação de processos.
D) Doutra forma, sempre estaria a decisão pretendida pelo M.P. ferida de morte, por afrontar claramente os princípios constitucionais previstos no artigo 32.º, n.ºs [4] e 9 da C.R.P.”
O Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães debruçou-se sobre a possibilidade da interpretação por si defendida atentar contra o disposto no artigo 32.º, n.º 4 e 9, da Constituição, tendo concluído não ocorrer a violação dos respectivos princípios constitucionais.
Da leitura do excerto das conclusões das contra-alegações acima transcrito verifica-se que o agora Recorrente apesar de ter escolhido uma enunciação pela negativa da questão de constitucionalidade que posteriormente colocou ao Tribunal Constitucional, não deixou de confrontar o tribunal recorrido com a alegação da inconstitucionalidade duma interpretação que atribuísse ao Ministério Público a decisão de separação de processos em fase de inquérito quando o Juiz de Instrução Criminal já tivesse sido chamado a intervir no inquérito.
E se esse tipo de enunciação é suficiente para conferir legitimidade para o Recorrente posteriormente colocar essa questão ao Tribunal Constitucional, pois revela o seu interesse em vir a discuti-la, a sua posterior apreciação pela decisão recorrida supre as ligeiras deficiências da formulação adotada na suscitação da questão perante o tribunal recorrido, uma vez que se mostram alcançadas as finalidades visadas com a exigência desse requisito.
Daí que também se considere verificado o cumprimento do requisito da suscitação perante o tribunal recorrido da questão de constitucionalidade que agora se coloca ao Tribunal Constitucional, pelo que nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.
2. Da delimitação do objeto do recurso
O recurso de constitucionalidade em fiscalização sucessiva concreta tem natureza instrumental, apenas tendo utilidade o seu conhecimento quando a decisão nele proferida seja suscetível de determinar a reforma da decisão recorrida.
No presente processo apenas está em causa um despacho proferido pelo Ministério Público que determinou a separação de processos com fundamento nos motivos enunciados nas alíneas b) e c), do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, pelo que apenas interessa apreciar a constitucionalidade da atribuição da competência ao Ministério Público para decidir da separação de processos com fundamento nas razões mencionadas nas referidas alíneas.
Assim, deve este recurso ter por objeto a norma resultante da interpretação dos artigos 30.º, n.º 1, alínea b) e c), 264.º, n.º 5, e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, segundo a qual o Ministério Público tem competência para, em fase de inquérito, determinar a separação processual com fundamento nas razões previstas nas alíneas b) e c), do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões.
3. Do mérito do recurso
3.1. A questão suscitada no presente recurso tem subjacente a determinação da competência para, em sede de inquérito, determinar a separação de processos, nos termos do artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Esta questão, em sede de direito infraconstitucional, insere-se na problemática da competência por conexão, regulada nos artigos 24.º a 30.º do Código de Processo Penal.
A regra geral é a de que a cada crime corresponde um processo, para o qual é competente determinado tribunal, em resultado da aplicação das regras de competência material, funcional e territorial. Contudo, tendo em vista objetivos de harmonia, unidade e coerência de processamento, celeridade e economia processual, bem como para prevenir a contradição de julgados, em certas situações previstas nos artigos 24.º e 25.º do Código de Processo Penal, a lei admite alterações a esta regra, permitindo a organização de um único processo para uma pluralidade de crimes, exigindo-se, no entanto, que entre eles exista uma ligação (conexão) que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados conjuntamente.
Uma vez operada a conexão, em determinadas situações poderá vir a ter lugar a separação de processos, verificados certos pressupostos.
Entendeu-se que mantendo cada crime a sua autonomia e sendo a junção num único processo justificada pela procura de uma melhor justiça, se dessa junção resultar maior dano do que benefício, deve essa unidade processual desfazer-se (neste sentido, Germano Marques da Silva, em “Curso de processo penal”, vol. I, pág. 201, da 5.ª ed., da Verbo).
O artigo 30.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, prevê os casos em que se pode fazer cessar a conexão:
«Separação dos processos
1 – Oficiosamente, ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, o tribunal faz cessar a conexão e ordena a separação de algum ou alguns processos sempre que:
a) Houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer arguido, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva;
b) A conexão puder representar um grave risco para a pretensão punitiva do Estado, para o interesse do ofendido ou do lesado;
c) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou
d) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
2 – […]»
Por sua vez, com relevância para a questão objeto dos presentes autos, o artigo 264.º, do Código de Processo Penal, dispõe o seguinte:
«Artigo 264º
Competência
1 – É competente para a realização do inquérito o Ministério Público que exercer funções no local em que o crime tiver sido cometido.
2 – Enquanto não for conhecido o local em que o crime foi cometido, a competência pertence ao Ministério Público que exercer funções no local em que primeiro tiver havido notícia do crime.
3 – Se o crime for cometido no estrangeiro, é competente o Ministério Público que exercer funções junto do tribunal competente para o julgamento.
4 – Independentemente do disposto nos números anteriores, qualquer magistrado ou agente do Ministério Público procede, em caso de urgência ou de perigo na demora, a atos de inquérito, nomeadamente de detenção, de interrogatório e, em geral, de aquisição e conservação de meios de prova.
5 – É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 24º a 30º.»
Finalmente, a alínea f) do n.º 1 do artigo 269.º do Código de Processo Penal, tem o seguinte teor:
«Artigo 269º
Atos a ordenar ou autorizar pelo juiz de instrução
1 – Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução ordenar ou autorizar:
[…]
f) A prática de quaisquer outros atos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.»
Tendo em atenção o teor destas normas, nas situações em que um processo ainda se encontra em fase de inquérito onde se investiga a prática de uma pluralidade de crimes, tem sido discutido na jurisprudência e na doutrina, a quem é atribuída a competência para determinar a separação de processos, podendo distinguir-se três orientações distintas:
- uma delas entende que, em sede que inquérito, a competência para determinar a separação de processos cabe ao Ministério Público;
- uma segunda orientação, sufragada pela jurisprudência maioritária, sustenta que, no decurso do inquérito, compete exclusivamente ao juiz de instrução apreciar a questão da separação de processos, uma vez que as situações elencadas no artigo 30.º do Código de Processo Penal contendem diretamente com as garantias do processo criminal (v., neste sentido, Maia Gonçalves, em “Código de Processo Penal Anotado”, pág. 128, da 17.ª Edição, Almedina);
- por fim, uma terceira orientação entende que a competência para decidir da separação de processos em sede de inquérito pertence ao Ministério Público apenas no caso de o inquérito não ter sido ainda presente ao juiz de instrução (v., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 111, da 4.ª ed., da Universidade Católica Editora).
Como é sabido, não compete ao Tribunal Constitucional tomar posição sobre qual destas soluções é a mais acertada no plano infraconstitucional, optando por uma das interpretações dos preceitos em análise. Cabe-lhe apenas decidir se a solução adotada pela decisão recorrida (correspondente à primeira das orientações acima referidas), é conforme com a Lei Fundamental, designadamente, com o disposto nos seus artigos 32.º, n.ºs 4 e 9, e 202.º, n.º 2.
3.2. Segundo alega o Recorrente, o ato de ordenar a separação de processos não se insere na competência exclusiva do Ministério Público para a investigação ou recolha de provas na fase de inquérito, antes sim na proteção das garantias de defesa do arguido em processo penal já que este tem o direito a não ver recair sobre si um eterno juízo de censura criminal, difundido por um número ilimitado de tribunais, assim como o direito ao recurso, pelo que, por uma razão de reserva ou necessidade de controlo jurisdicional, o juiz é o único que pode assegurar a defesa das garantias do arguido.
Conclui, assim, que a interpretação normativa seguida pela decisão recorrida ofende o disposto no n.º 4, do artigo 32.º, da Constituição.
Vejamos se assim é.
Dispõe esta norma constitucional que “Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos atos instrutórios que se não prendam diretamente com os direitos fundamentais”.
Se a intenção original da Constituição de 1976 foi a de atribuir exclusivamente a um juiz a direção da investigação preliminar à acusação (vide o DAC, n.º 38, de 28 de agosto de 1975, pág. 1049-1052), as dificuldades práticas de aplicar integralmente esta exigência (sinais dessas dificuldades foram os sucessivos diplomas que procuravam soluções para colmatar a falta de juízes para assegurar essa nova competência, como os Decretos-Lei n.º 321/76, de 4 de maio, n.º 618/76, de 27 de julho, n.º 354/77, de 30 de agosto, e n.º 377/77, de 6 de setembro) e as discussões sobre a constitucionalidade da figura do inquérito preliminar sob a direção do Ministério Público, entretanto criado pelo Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de novembro, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de setembro (vide, Rui Pinheiro/Artur Maurício, em “Constituição e o Processo Penal”, pág. 35-88, da 2.ª ed., do Rei dos Livros, Germano Marques da Silva, em “Da inconstitucionalidade do inquérito preliminar”, na Scientia Iuridica, tomo XXI, pág. 325, João Castro e Sousa, em “A tramitação do processo penal”, e os Pareceres da Comissão Constitucional n.º 6, de 5 de maio de 1977, n.º 39, de 6 de outubro de 1977, e n.º 49 de 23 de novembro de 1977, publicados em “Pareceres da Comissão Constitucional”, respetivamente nos vol. 1 e 4) conduziram a que na 1.ª Revisão Constitucional de 1982 se reformulasse o texto do artigo 32.º, n.º 4, passando a nova redação a facilitar uma leitura que restringisse essa exigência a uma fase instrutória facultativa, sob a égide do contraditório, posterior a um inquérito investigatório, onde apenas seria necessário que um juiz interviesse nos atos instrutórios que se prendessem diretamente com direitos fundamentais, conferindo ao legislador ordinário inteira liberdade para atribuir a outra entidade a direção da investigação que precede a dedução da acusação (foi esta leitura que efetuaram, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.º 7/87, em ATC, 9.º vol., pág. 7, n.º 23/90, em 15.º vol., pág. 119, n.º 334/94, no BMJ n.º 436, pág. 96) , n.º 517/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, n.º 610/96, em ATC, 33.º vol, pág. 841, n.º 694/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, n.º 581/2000, em ATC, 48.º vol., pág. 587, e 395/2004, em ATC, 59.º vol., pág. 595).
Esta modificação permitiu, assim, ao legislador do Código de Processo Penal de 1987 atribuir, sem grandes resistências, ao Ministério Público, cujo estatuto constitucional é o de uma magistratura autónoma, na qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios de objetividade e imparcialidade, a competência para dirigir a investigação preliminar, prevendo, contudo, a possibilidade de ser requerida uma posterior fase instrutória, presidida por um Juiz de Instrução Criminal, de controlo do despacho que encerra o inquérito.
Mas o disposto no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, quanto aos atos processuais que possam ofender direitos fundamentais de qualquer pessoa, também exige a intervenção de um juiz, não só pelo seu estatuto de independência, mas também pela sua distância relativamente à atividade investigatória.
Assim, o processo penal tem necessariamente de permitir a intervenção do Juiz de Instrução Criminal em todos os atos instrutórios que possam afetar negativamente direitos fundamentais, de modo a cumprir-se a exigência contida no artigo 32.º, n.º 4, da Constituição. Nesse domínio, existe uma reserva de juiz até onde se revele necessária para proteção efetiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos (sobre esta reserva de juiz, vide Anabela Rodrigues, em “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal, em “XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa”, pág. 47 e seg., da ed. de 2009, da Coimbra Editora, e Fátima Mata-Mouros, em “Juiz das Liberdades. Desconstrução de um mito do processo penal”, pág. 29 e seg, ed. de 2011, da Almedina).
Por isso, embora a direção do inquérito seja da incumbência do Ministério Público e não de um juiz, quando nesta fase se mostre necessário praticar quaisquer atos instrutórios que possam restringir severamente direitos fundamentais, deve ser um juiz a decidir a sua realização, na sua veste de “juiz das liberdades”. Isto porque a independência da magistratura judicial e o seu maior distanciamento em relação à atividade investigatória, lhe confere uma maior disponibilidade funcional e psicológica para, com objetividade, decidir os limites toleráveis do sacrifício dos direitos fundamentais em favor do interesse da realização da justiça penal.
Na interpretação normativa aqui sindicada está apenas em causa o reconhecimento ao Ministério Público da competência para ordenar a separação de processos, na fase de inquérito, sem necessidade de qualquer intervenção de um juiz, com o fundamento que a conexão de processos representa um grave risco para a pretensão punitiva do Estado para o interesse do ofendido ou do lesado (artigo 30.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal), ou quando essa conexão possa retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos (artigo 30.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal). Afastados deste julgamento de constitucionalidade encontram-se os casos em que a separação de processos visa assegurar direitos ou liberdades do arguido, designadamente o não prolongamento da prisão preventiva, os quais se encontram abrangidos pela previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 30.º do Código de Processo Penal.
A separação de processos na fase de inquérito apenas tem repercussões diretas no âmbito do objeto da investigação de um determinado processo penal, uma vez que com essa medida se retira desse âmbito determinada factualidade com relevância criminal, a qual passa a ser investigada num outro processo que, para esse efeito passa a correr autonomamente. Com esta decisão apenas cessa a investigação conjunta de diferentes crimes, passando a investigação dos mesmos a ser efetuada em processos com uma tramitação independente. Mas o termo da unidade processual não determina por si só qualquer medida que afete os direitos fundamentais do arguido, podendo este continuar a exercer em todos os processos todos os direitos de defesa que lhe assistem, incluindo o direito ao recurso.
Se a separação de processos pode resultar num acréscimo de incómodos ou no retardamento do desfecho dos processos abertos na sequência da separação, há que ter presente que não assiste ao arguido qualquer garantia constitucional no sentido da sua responsabilidade criminal por diferentes comportamentos ser apurada conjuntamente, mantendo-se a aplicação de todos os prazos que visam assegurar uma decisão definitiva em tempo útil.
Por isso, se a separação de processos pode não ser conveniente aos interesses estratégicos da defesa do arguido, pelos mais variados motivos, não se vê de que forma possa contender com o núcleo dos direitos, liberdades e garantias deste, de forma a que seja constitucionalmente exigível que essa decisão tenha que ser tomada por um juiz.
3.3. O Recorrente quando refere que essa medida põe em causa o direito ao recurso, implicitamente também acusa a interpretação sindicada de impedir que a própria decisão que determina a separação de processos seja recorrível, o que resultaria numa violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Uma vez que o Tribunal Constitucional não está limitado na sua apreciação pelos parâmetros constitucionais indicados pelo Recorrente (artigo 79.º - C, da LTC), cumpre dar resposta a esta alegação.
Sendo entendimento uniforme deste Tribunal que a garantia constitucional do recurso não abrange todas as decisões tomadas no processo penal, mas apenas as decisões penais condenatórias e as que tenham como consequência a privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais do arguido (vide, neste sentido, entre outros, os Acórdãos n.ºs 31/87, 178/88, 300/98, 216/99, 471/2000, 30/2001, 463/2002 e 235/10, todos acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), aí não se incluindo, como se acabou de se verificar, a decisão que determina a separação de processos em fase de inquérito, também não se pode considerar que o critério normativo sindicado viole esse direito constitucional do arguido.
3.4. Sustenta ainda o Recorrente que a interpretação normativa sob fiscalização viola o disposto no n.º 9, do artigo 32.º, da Constituição, segundo o qual “nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior”.
Consagra-se neste preceito o princípio do juiz legal ou do juiz natural, que visa garantir que nenhuma causa seja julgada por um tribunal criado ad hoc para esse efeito ou por um tribunal designado discricionariamente, devendo essa competência resultar da aplicação de normas orgânicas e processuais que contenham regras dirigidas à determinação do tribunal que há de intervir em cada caso, segundo critérios objetivos (vide, sobre o sentido e alcance do princípio do juiz natural, Figueiredo Dias, em “Sobre o sentido do princípio jurídico-constitucional do “juiz-natural”, na R.L.J., Ano 111.º, pág. 83-88, e o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2003, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
Na hipótese da interpretação normativa sindicada, a possibilidade de o Ministério Público, na fase de inquérito, determinar a separação de processos, não implica um “desaforamento” arbitrário do juiz de instrução que já tenha sido chamado a proferir alguma decisão no inquérito originário que contenda com o princípio consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
É que, ainda que seja o Ministério Público a decidir da separação de processos, é a própria lei que fixa os critérios objetivos que poderão fundamentar tal separação, bem como o tribunal com competência para conhecer dos processos separados (critérios esses que são precisamente os mesmos no caso de a decisão ser proferida pelo juiz de instrução criminal).
A possibilidade conferida ao Ministério Público de, na fase de inquérito, determinar a separação de processos, não implica, pois, a criação de um tribunal ad hoc, nem a manipulação arbitrária das regras processuais ou de repartição de competência entre tribunais, resultando a eventual alteração do juiz de instrução criminal competente para intervir na fase de investigação da aplicação das regras gerais e abstratas definidoras da competência funcional dos diversos tribunais que integram a organização judiciária portuguesa, e não de uma qualquer determinação discricionária para intervir em determinado processo, pelo que não se mostra violada a proibição contida no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição.
3.5. Entende ainda o Recorrente que a interpretação normativa aplicada pela decisão recorrida viola o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição, que reserva ao juiz o exercício das funções materialmente jurisdicionais, cabendo-lhe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
Segundo este preceito constitucional “Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados”.
Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, pág. 508-509, da 4.ª Edição Revista, da Coimbra Editora): «diferentemente do que acontece noutros ordenamentos constitucionais, a função de dizer o direito em nome do povo é atribuída pela CRP, aos tribunais e não aos juízes. A função jurisdicional pertence, porém, aos juízes, sendo os tribunais (nos quais se incluem magistrados do Ministério Público, funcionários judiciais administrativos, gestores judiciais) esquemas indispensáveis ao exercício da jurisdictio pelo juiz. Tribunal terá aqui um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe «função jurisdicional» - conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material («jurisdictio» como atividade do juiz materialmente caracterizada). (…) Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (artigo 202º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes poderão ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade)».
Sem necessidade de previamente se efetuar uma delimitação doutrinária dos atos que se consideram integrar a reserva do juiz na atividade jurisdicional, facilmente se constata que, se a nossa Constituição permite, como acima se evidenciou, a atribuição da direção da fase de investigação preliminar em processo penal ao Ministério Público, a decisão de separação de processos nessa fase não pode ser considerado um ato que exija a sua autoria por um juiz.
Avaliar se subsistem as vantagens de uma investigação conjunta de uma pluralidade de crimes ou se as finalidades visadas com a conexão de processos justificam o eventual comprometimento de interesses dos assistentes e lesados, ou possam provocar algum retardamento do julgamento dos arguidos dentro dos prazos legalmente previstos, é um juízo que se compreende ainda nas opções estratégicas da atividade de investigação criminal da qual o Ministério Público se encontra incumbido.
Daí que se possa dizer que, tal ato, assim como aqueles que anteriormente determinaram a investigação no mesmo processo de diversas realidades com relevância criminal, insere-se naturalmente nos poderes de direção do inquérito e gestão do processo em fase de inquérito, não lhe assistindo nenhuma característica especial que exija a intervenção obrigatória de um juiz, pelo que também carece de fundamento a acusação que a interpretação sob fiscalização viola o disposto no artigo 202.º, n.º 2, da Constituição.
3.6. Nestes termos, não é de considerar incompatível com as normas constitucionais invocadas pelo Recorrente a interpretação conjugada dos artigos 30.º, n.º 1, b) e c), 264.º, n.º 5, e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido de que o Ministério Público tem competência para, em fase de inquérito, determinar a separação processual com fundamento nas razões previstas nas alíneas b) e c), do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões.
Deve, assim, este recurso ser julgado improcedente porque não se vislumbrar que a interpretação normativa aqui fiscalizada viole qualquer parâmetro constitucional.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 30.º, n.º 1, alíneas b) e c), 264.º, n.º 5, e 269.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que o Ministério Público tem competência para, em fase de inquérito, determinar a separação processual com fundamento nas razões previstas nas alíneas b) e c), do artigo 30.º, do Código de Processo Penal, quando o Juiz de instrução foi já chamado a aí tomar decisões.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A., do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido nestes autos em 29 de março de 2011.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de janeiro de 2012.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.