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Processo: n.º 592/93.
Recorrente: A..
Relator: Conselheiro Messias Bento.
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I — Relatório
1 — A., não se conformando com o resultado da avaliação fiscal, que a Caixa de
Previdência do Ministério da Educação requereu ao Chefe da Repartição de
Finanças do 4.º Bairro Fiscal de Lisboa, tendo por objecto o compartimento n.º 1
do 2.º andar do prédio da Avenida da Liberdade, n.º 3, em Lisboa, interpôs
recurso para o Tribunal Cível desta cidade.
Realizada a nova avaliação e notificado o respectivo relatório às partes, veio o
recorrente, mediante requerimento, arguir a inconstitucionalidade do Decreto
Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro.
Notificada a Caixa de Previdência para responder, veio ela sustentar a
legitimidade constitucional da norma impugnada.
O juiz, por sentença de 14 de Junho de 1993, julgou improcedente a arguição de
inconstitucionalidade, mas concedeu parcial provimento ao recurso, fixando em
660 000$00 o valor do rendimento anual ilíquido do compartimento avaliado (a
comissão de avaliação nomeada pelas Finanças tinha-o fixado em 720 000$00 e os
peritos nomeados pelo juiz indicaram também esse valor) e, por conseguinte, a
renda mensal em 55 000$00.
2 — O recorrente interpôs, então, recurso desta sentença (de 14 de Junho de
1993) para este Tribunal, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do artigo 1.º
do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro.
Neste Tribunal, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
a) A norma do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, determina
que a segunda avaliação seja efectuada por uma comissão de avaliação, que para
além de não integrar qualquer perito, nomeado pelo inquilino.
b) O perito nomeado pelo tribunal terá de ser escolhido de uma lista,
elaborada segundo o critério do director distrital de finanças, sem que ao juiz
seja dado o poder discricionário de recusar tal critério.
c) De onde resulta ser aquela comissão constituída por três louvados
nomeados pelo Estado.
d) O qual tem que ser considerado parte interessada, na determinação da
renda avaliante, uma vez que tal como o senhorio tem interesse em que lhe seja
fixado um valor elevado.
e) Temos assim que a aludida comissão é composta por louvados apenas
nomeados por uma das partes interessadas.
f) Sendo certo que ao M.mo Juiz do recurso não são facultados outros
meios para fundamentar a sua decisão.
g) Surge assim a referida comissão como definidora de direitos civis
— montante da renda — em conflito entre senhorio e inquilino.
h) O que é inaceitável, dado a sua falta de independência (acórdão do
STJ, de 6 de Maio de 1987, in BMJ, n.º 367, p. 457).
i) Deste modo, não pode o tribunal assegurar a defesa dos direitos
legalmente protegidos do inquilino.
j) Pelo que a norma sub judice viola o artigo 205.º, n.º 2, da CRP.
l) E, como a norma, in casu, determina que a 2.ª avaliação é efectuada
por aquela comissão, que como vimos não é independente.
m) Resulta em consequência, que o M.mo julgador terá necessária e
exclusivamente de fundamentar a sua decisão no laudo por ela elaborado.
n) Sem que possa valer-se na sua decisão de outros meios de prova,
inspecção judicial ou testemunhas.
o) Pelo que a norma em questão de igual modo viola o artigo 206.º da
CRP.
p) Mas como a referida norma integra na referida comissão apenas
peritos nomeados por uma das partes interessadas, o Estado e o senhorio.
q) sem de igual modo integrar um louvado nomeado pela outra parte
interessada, o inquilino.
r) é ainda inconstitucional por violação grosseira do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
Termos em que deverão V. Ex.as dar provimento ao presente recurso, considerando
inconstitucional a norma do artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de
Janeiro, aplicada no douto Acórdão em apreço […].
A recorrida Caixa de Previdência, de sua parte, concluiu como segue as suas
alegações:
1.ª A norma do artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, é
constitucional.
2.ª Da sua aplicação não resulta a violação do princípio da imparcialidade na
administração da justiça, consagrado no n.º 2 do artigo 205.º da CRP.
3.ª O Estado não actua como parte interessada no caso sub judice e só por
ignorância ou má fé é que se pode fazer tal afirmação.
4.ª O juiz tem o poder discricionário de escolher um de entre 50 peritos que
integram a lista.
5.ª O juiz não está vinculado ao laudo elaborado pela comissão, laudo esse que
constitui mero parecer técnico.
6.ª A decisão final cabe em exclusivo ao juiz, a quem incumbe administrar a
justiça e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos.
7.ª Não há, como tal, violação do princípio da independência dos tribunais,
consagrado no artigo 206.º da CRP.
8.ª É aos tribunais que cabe a função de definição dos direitos civis, como
seja o montante da renda, e não à comissão de avaliação (o que aliás é
sublinhado no acórdão do STJ, de 6 de Maio de 1987, in BMJ, n.º 367, p. 457).
9.ª Igualmente não há violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo
13.º da CRP, na medida em que não há qualquer discriminação, arbítrio ou
desigualdade de oportunidades.
10.ª Os organismos do Estado intervenientes na comissão de avaliação não têm
qualquer ligação com a CPME.
A CPME tem um escopo exclusivamente privado, tem património próprio e autonomia
administrativa e financeira, dependendo a sua gestão da assembleia de sócios.
11.ª Não deve como tal o recorrente sentir-se lesado nos seus direitos e
interesses.
Pelo exposto, deve a sentença recorrida ser mantida, porque está elaborada de
harmonia com os factos e com o direito, negando-se, por isso, provimento ao
recurso.
3 — Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber se a norma do artigo
1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, é ou não
inconstitucional.
II — Fundamentos
4 — Questão prévia do conhecimento do recurso:
4.1 — Pode duvidar-se que a questão de constitucionalidade tenha sido suscitada
atempadamente (isto é, «durante o processo») e que, assim, deva conhecer-se do
recurso.
De facto, requerendo o senhorio a avaliação de prédio que tiver arrendado, após
a notificação do inquilino para contestar e depois de a repartição de finanças
prestar as devidas informações, a comissão de avaliação — que, nos termos do
artigo 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 37 021, de 21 de Agosto de 1948 (diploma
que continua a reger a matéria: cfr. artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de
15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano) é constituída pelo
conservador do registo predial, civil, comercial ou de automóveis, por um
louvado nomeado, de entre os de uma lista, pelo chefe de repartição de finanças
e por um louvado nomeado pela respectiva câmara municipal (redacção introduzida
pelo artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/86, de 2 de Janeiro) e integrada
ainda por um representante do senhorio e outro do inquilino (cfr. artigo 6.º,
n.º 2, do Decreto-Lei n.º 436/83, de 19 de Dezembro) — procede à vistoria do
prédio objecto da avaliação («exame directo», chama-lhe também a lei), depois do
que «dá parecer fundamentado», isto é, fixa, mediante deliberação por maioria, o
rendimento do prédio (e, assim, a respectiva renda) — tudo nos termos dos
artigos 9.º e 10.º, n.os 1, 3 e 6, do mencionado Decreto-Lei n.º 37 021, também
na redacção do referido Decreto Regulamentar n.º 1/86.
Se o senhorio (ou o inquilino) não se conformarem com a deliberação daquela
comissão de avaliação, podem recorrer dela para o juiz da comarca, indicando a
renda que consideram justa (cfr. artigo 14.º do mesmo Decreto-Lei n.º 37 021, na
redacção do artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/86).
Interposto recurso pelo inquilino (como aconteceu no presente caso), é o
senhorio notificado para alegar o que julgar conveniente, depois do que o juiz
se pronunciará sobre a admissão do recurso e, admitindo-o, designará dia para a
avaliação (a «segunda avaliação, para efeitos de julgamento do recurso», como se
expressava o artigo único do Decreto Regulamentar n.º 28/87, de 24 de Abril, e
se expressa hoje o artigo único do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de
Janeiro). Finda esta, proferirá o juiz a decisão final, fixando a renda do
prédio avaliado (cfr. artigo 15.º do citado Decreto-Lei n.º 37 021, a que o
referido Decreto Regulamentar n.º 1/86 acrescentou um § único, a dizer que,
desta decisão final, não cabe recurso).
Esta segunda avaliação, para efeitos de julgamento do recurso, nos termos do
artigo único do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro (antes, a matéria
era regida pelo artigo único do Decreto Regulamentar n.º 28/87, de 24 de Abril),
é efectuada por um louvado nomeado pelo juiz de entre os peritos constantes da
lista a que se refere o n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 2030, de 27 de Junho de
1948, por um louvado nomeado pelo director de finanças do distrito de entre os
que figuram na mesma lista e por um louvado nomeado pelo Instituto de Gestão e
Alienação do Património Habitacional do Estado.
4.2 — As peças processuais típicas ou normais do recurso são, assim, uma petição
(a petição de recurso), umas alegações (do recorrido), um parecer (dos louvados)
e a decisão final do juiz.
Pode, por isso, sustentar-se que a questão de inconstitucionalidade, que tenha
por objecto o artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro — que
regula a composição da comissão que procede à segunda avaliação, para efeitos de
julgamento do recurso — só é suscitada atempadamente [isto é, durante o
processo, como exige o artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional], se o for na petição de recurso, quando seja o recorrente a
suscitá-la, ou, sendo suscitada pelo recorrido, se este o fizer na respectiva
alegação. Até para — dir-se-á —, na primeira hipótese, permitir a resposta do
recorrido logo nas alegações, assegurando o contraditório.
E sendo assim — argumentar-se-á —, como, no caso, o inquilino (recorrente) só
suscitou tal questão de inconstitucionalidade, em requerimento que apresentou
depois de notificado do resultado da avaliação (em vez de o ter feito na petição
de recurso), não deve conhecer-se deste, por se não verificar o pressuposto da
suscitação atempada daquela questão.
4.3 — O Tribunal entende, porém, não dever adoptar um entendimento tão estrito
da exigência constante da mencionada alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro.
De facto, em primeiro lugar, poder-se-á, desde logo, dizer que a intervenção das
partes nos processos não se confina à apresentação de articulados — petição de
acção (ou de recurso), contestação, réplica, tréplica — de alegações e de contra
alegações. As partes intervêm também por meio de requerimentos e de respostas
(cfr. artigos 150.º, n.º 1, e 116.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Depois, a razão de economia processual, que, eventualmente, poderá justificar a
exigência de que a suscitação de tal questão deva ser feita na petição de
recurso, para possibilitar que a resposta do recorrido tenha lugar logo nas
alegações, já não procede quando é o recorrido a suscitar a questão: num tal
caso, com efeito, para assegurar o contraditório, sempre terá que dar-se ao
recorrente oportunidade para responder. Acresce que, sendo a questão, como no
caso aconteceu, suscitada antes de proferida a decisão final, ainda o juiz está
a tempo de ouvir a outra parte e de, nessa decisão, se pronunciar sobre ela.
Como quer que seja, a verdade é que, no caso dos autos, a questão de
constitucionalidade não foi apresentada ao Tribunal Constitucional como uma
questão nova, que é o que a lei, em direitas contas, pretende evitar, quando
exige que ela seja suscitada durante o processo perante o tribunal recorrido.
De facto, como se viu, o juiz decidiu tal questão, julgando-a improcedente.
Tudo concorre, pois, para se dever avançar para o conhecimento do objecto do
recurso — ou seja: da questão de inconstitucionalidade da norma do artigo 1.º do
Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, que — repete-se — regula
a composição da comissão que vai proceder à segunda avaliação, para efeitos de
julgamento do recurso interposto da deliberação da comissão de avaliação a que
se refere o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 37 021.
Prosseguindo, pois.
5 — A questão da (in)constitucionalidade da norma do artigo 1.º do Decreto
Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro:
O artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89 (diploma que foi editado ao abrigo
do disposto no artigo 57.º da Lei n.º 2030, de 27 de Junho de 1948, tendo
revogado o Decreto Regulamentar n.º 28/87) dispõe como segue:
Artigo 1.º
A segunda avaliação, para efeitos de julgamento do recurso, será efectuada:
a) Por um louvado nomeado pelo juiz de entre os peritos
constantes da lista a que se refere o n.º 3 do artigo 14.º da Lei n.º 2030, de
27 de Junho de 1948;
b) Por um louvado nomeado pelo director de finanças do distrito
de entre os que figuram na mesma lista;
c) Por um louvado nomeado pelo Instituto de Gestão e Alienação do
Património Habitacional do Estado.
5.1 — O recorrente sustenta que tal norma é inconstitucional, uma vez que — diz,
em síntese — tal norma:
a) viola o artigo 205.º, n.º 2, da Constituição, pois o tribunal «não
pode assegurar a defesa dos direitos legalmente protegidos», dada a «falta de
independência» da comissão de avaliação, que «é composta por louvados apenas
nomeados por uma das partes interessadas» — o Estado;
b) viola também o artigo 206.º da Lei Fundamental, porquanto o juiz
tem, «necessária e exclusivamente, de fundamentar a sua decisão no laudo»
elaborado por essa comissão, que não é independente;
c) e viola, por último, o artigo 13.º da Constituição, por a comissão
integrar «apenas peritos nomeados por uma das partes interessadas, o Estado e
senhorio», «sem de igual modo integrar um louvado nomeado pela outra parte
interessada, o inquilino».
5.2 — A Caixa de Previdência recorrida chama a atenção, em resumo, para que:
a) «a função que cabe a essas comissões é uma função meramente técnica,
são comissões de peritagem, são meros pareceres técnicos, os quais não oferecem
qualquer carácter vinculativo»;
b) o Estado não é, no caso, parte interessada no processo, uma vez que
ela, Caixa de Previdência, «é uma pessoa colectiva com natureza e aspectos
próprios de um instituto público, mas também com outros de natureza
exclusivamente privada, pois foi constituída e é mantida através de uma
assembleia geral de sócios», e, no caso, «actua como particular, no âmbito de
uma relação de inquilinato», nenhum dos louvados tendo qualquer ligação com ela;
c) a decisão cabe ao juiz, que não está vinculado ao relatório da
comissão, nem fundamenta a sua decisão, única e exclusivamente, no laudo dela;
d) o juiz está vinculado a escolher o louvado de entre os constantes de
uma lista, mas é livre nessa escolha.
5.3 — O simples alinhar das razões aduzidas a favor e contra a acusação de
inconstitucionalidade, que o recorrente faz à norma do artigo 1.º do Decreto
Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, é bastante para mostrar a sem-razão de
uma tal arguição.
Vejamos, porém, as coisas mais em pormenor:
5.4 — A norma sub iudicio e os artigos 205.º, n.º 2, e 206.º da Constituição:
Tais preceitos dispõem como segue:
Artigo 205.º
(Função jurisdicional)
1 — […].
2 — Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos
direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da
legalidade democrática e dirimir conflitos de interesses públicos e privados.
3 — […].
4 — […].
Artigo 206.º
(Independência)
Os tribunais são independentes e apenas estão sujeitos à lei.
Aos tribunais compete, pois, «administrar justiça em nome do povo» (cfr. n.º 1
do artigo 205.º), cumprindo-lhes, no que aqui importa, «dirimir os conflitos de
interesses […] privados» (cfr. n.º 2 do artigo 205.º). E isto demanda que os
juízes sejam independentes (cfr. artigo 206.º), julgando sem outra sujeição que
não seja a obediência à lei e aos ditames da sua própria consciência.
Os tribunais, no seu conjunto, têm, por conseguinte, que ser independentes em
relação aos demais poderes do Estado, ficando «a coberto das suas ingerências ou
pressões», e independentes entre si, «salvo as relações de hierarquia ou
supraordenação dentro de cada ordem ou categoria de tribunais (cfr. artigos
212.º, 214.º e 223.º), e sem prejuízo da cooperação que todos devem uns aos
outros na administração da justiça (cfr. artigo 205.º, n.º 3)»: [sobre isto,
cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa
Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, p. 794)].
Os cidadãos têm, portanto, direito a ver julgadas as suas causas por tribunais
independentes e imparciais (cfr. artigos 20.º, n.º 1, e 206.º), que o mesmo é
dizer que têm direito a que o Estado lhes assegure uma igual probabilidade de
êxito quanto ao resultado das lides judiciais em que forem partes; ou ainda: que
têm direito a um processo equitativo perante um tribunal independente e
imparcial.
Garantia essencial da independência dos tribunais é — repete-se — a
independência dos respectivos juízes (e, assim, a sua imparcialidade).
Como se assinalou no Acórdão n.º 52/92 (publicado no Diário da República, I
Série-A, de 14 de Março de 1992), a independência dos juízes (e, assim, a sua
imparcialidade) exige «garantias orgânicas, estatutárias e processuais». E
nesse aresto escreveu-se também: «A imparcialidade da jurisdição não é só a
imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser
assegurada antes e durante o julgamento».
Só desse modo, com efeito, os tribunais podem inspirar verdadeira confiança aos
cidadãos — a confiança que, numa sociedade democrática, estes devem poder
depositar na jurisdição.
A propósito da independência dos juízes escreveu-se no Acórdão n.º 135/88
(publicado no Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988) o
seguinte, que o citado Acórdão n.º 52/92 repetiu:
A independência dos juízes é, acima de tudo, um dever — um dever ético-social.
A «independência vocacional», ou seja, a decisão de cada juiz, de ao «dizer o
direito», o fazer sempre esforçando-se por se manter alheio — e acima — de
influências exteriores é, assim, o seu punctum saliens. A independência, nesta
perspectiva, é, sobretudo, uma responsabilidade que terá a «dimensão» ou a
«densidade» da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada
juiz.
Com sublinhar estes pontos, não pode, porém, esquecer-se a necessidade de
existir um quadro legal que «promova» e facilite aquela «independência
vocacional».
Assim, necessário é, inter alia, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado
de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a
confiança geral na objectividade da jurisdição.
É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa
imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições
de «administrar justiça». Nesse caso, não deve poder intervir no processo,
antes deve ser pela lei impedido de funcionar — deve, numa palavra, poder ser
declarado iudex inhabilis.
O juiz, pois — na lição de J. Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao
Discurso Legitimador, Coimbra, 1983, p. 148) —, «não deve achar-se ligado às
partes em litígio, ou ter contendas com qualquer delas, para que fique garantida
a sua isenção ou a imparcialidade da decisão a proferir».
Esta administração independente, isenta e imparcial da justiça, a que os
cidadãos têm direito e que é dever dos juízes e dos tribunais, em nada é, porém,
impedida ou, sequer, dificultada pelo modo de recrutamento e de nomeação dos
louvados, previsto na norma aqui sub iudicio.
De facto — recorda-se —, os louvados, que procedem à «segunda avaliação para
efeitos de julgamento do recurso», nenhum deles é nomeado por qualquer das
partes do processo: um deles é nomeado pelo juiz; outro, pelo director distrital
de finanças; e o terceiro, pelo Instituto de Gestão e Alienação do Património
Habitacional do Estado — tudo entidades inteiramente estranhas aos interesses
que, na relação jurídico-privada de arrendamento, são os do inquilino e os do
senhorio. Senhorio, que, no caso, é a Caixa de Previdência do Ministério da
Educação (criada pelo Decreto n.º 11 220, de 6 de Novembro de 1925, sendo os
seus estatutos aprovados, primeiro, pelo Decreto n.º 12 695, de 17 de Novembro
de 1926, e, depois, pelo Decreto-Lei n.º 35 781, de 5 de Agosto de 1946, mais
tarde revogado pelo Decreto-Lei n.º 82/91, de 19 de Fevereiro, por sua vez,
depois revogado pelo Decreto-Lei n.º 133/93, de 26 de Abril), que —
contrariamente ao que sustenta o recorrente — não se confunde com o Estado (pois
que é uma pessoa colectiva distinta administrada por um conselho de
administração, cujos vogais são eleitos pela assembleia geral de sócios e cuja
acção é fiscalizada por um conselho fiscal: cfr. artigos 17.º e 19.º dos
Estatutos aprovados pelo citado Decreto-Lei n.º 35 781), nem com nenhuma das
entidades que nomeia os louvados. Depois, dois desses louvados são nomeados de
entre os constantes de uma lista previamente organizada — o que, obviamente,
contribui para que, na sua nomeação, não interfiram factores subjectivos. Por
último — e decisivamente — quem julga (isto é, quem dirime o conflito de
interesses entre o senhorio e o inquilino, fixando o montante da renda que este
passará a pagar àquele) é o juiz, e não os louvados.
Os louvados são peritos, chamados a apurar o rendimento do local arrendado, que
nada decidem. O seu parecer é livremente apreciado pelo juiz, que fixará a
renda «entre os limites do rendimento ilíquido constante da matriz e dos
resultados das averiguações efectuadas» (cfr. artigo 15.º, 3.º trecho, do citado
Decreto n.º 37 021, na redacção do Decreto-Lei n.º 37 784, de 14 de Março de
1950). Ou seja: o juiz aprecia os laudos com a mesma liberdade com que aprecia
o depoimento de uma testemunha.
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Maio de 1987
(publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 367, p. 457): «não é, pois,
a comissão de avaliação chamada a definir direitos civis — montante da renda —
em conflito entre senhorio e inquilino, mas a determinar o valor do rendimento
matricial […]».
A norma sub iudicio não viola, pois, os artigos 205.º, n.º 2, e 206.º da
Constituição.
5.5 — A norma sub iudicio e o princípio da igualdade:
O princípio da igualdade — que se acha consagrado no artigo 13.º da Constituição
(«Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei».
«Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer
direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução,
situação económica ou condição social») — exige que se trate por igual o que for
essencialmente igual e se dê tratamento diferenciado ao que for diferente.
Tal princípio não proíbe a diferenciação de tratamento; proíbe tão-somente a
discriminação, o tratamento diferente irrazoável ou arbitrário, porque
materialmente infundado.
É um princípio que vincula todas as funções do Estado, jurisdição incluída.
A igualdade dos cidadãos perante a jurisdição significa, desde logo, igualdade
de acesso aos tribunais (cfr. artigo 20.º, n.º 2). Significa também igualdade
perante os tribunais, que é uma igualdade no e durante o processo (igualdade
processual ou igualdade de armas). E significa ainda igualdade na aplicação do
direito.
A igualdade no desfrute do direito ao tribunal — a um tribunal independente e
imparcial, que julgue as questões em tempo útil, vinculado, nas suas decisões,
pela ideia de igualdade — exige o reconhecimento do direito ao processo, a um
processo equitativo (justo), que, como atrás se referiu, assegure às partes uma
igual probabilidade de êxito quanto ao resultado da lide. E tudo isto reclama
que as partes sejam colocadas nesse processo em perfeita paridade de condições.
O princípio da igualdade processual, no dizer de Manuel de Andrade (Noções
Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, p. 365), «consiste em as partes
serem postas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando,
portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida», ou
seja, de conseguir o que for «de direito em cada caso» (a expressão é de J.
Baptista Machado, ob. cit., p. 148).
Pois bem: a forma de nomeação dos louvados, que aqui está em causa, não é
susceptível de afectar a igualdade perante a jurisdição.
De facto — recorda-se —, um deles é nomeado pelo juiz e os outros dois, por
entidades inteiramente estranhas a qualquer das partes no processo, que, assim,
desfrutam, «de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes é devida» —
de conseguir o que, no caso, for de direito.
A norma do artigo 1.º do Decreto Regulamentar n.º 1/89, de 7 de Janeiro, também
não viola o princípio da igualdade (e, assim, o artigo 13.º da Constituição).
Ela não é, pois, inconstitucional.
III — Decisão
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a
sentença recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 1995. — Messias Bento — Bravo Serra — Guilherme da
Fonseca — Luís Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração junta) — José
Manuel Cardoso da Costa.
Declaração de voto
Votei vencido, por entender que o «direito a um processo equitativo perante um
tribunal independente e imparcial», não se esgotando com a garantia de
independência dos juízes, exige, igualmente, entre outras coisas, que seja
assegurada a imparcialidade das peritagens, quando do resultado delas dependa,
na prática, o sucesso ou insucesso da acção.
Ora, no caso vertente, se é certo que os louvados, como se afirma no acórdão que
obteve vencimento, não são nomeados ou escolhidos por qualquer das partes no
processo, a verdade é que um deles, pelo menos, é designado por entidade
interessada no resultado da avaliação. Com efeito, tendo a avaliação em causa
consequências do ponto de vista fiscal (quanto maior for o valor, maior será a
receita fiscal), não se me afigura compatível com as exigências de um processo
justo e equitativo que um dos louvados seja nomeado pelo director de finanças do
distrito. — Luís Nunes de Almeida.
(1) Acórdão publicado no Diário da República, II Série, de 17 de Junho de 1995.