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Acórdão 783/96 ACÓRDÃO Nº 783/96 PROCESSO Nº 288/95
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A ... impugnou contenciosamente, no Tribunal Administrativo do Círculo do Porto, a deliberação da CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE FAMALICÃO, de 13 de Janeiro de 1992, na qual a Câmara decidiu que ele não tinha o direito de preferência que invocava relativamente à loja da Central de Camionagem destinada a livraria, papelaria e venda de jornais (loja nº 4), que, na reunião de 27 de Dezembro de 1990, a Câmara adjudicara a B... por
1.650.000$00, com a obrigação de criar três postos de trabalho.
Alegou o recorrente que a deliberação impugnada viola um direito adquirido, pois ele explorava, na Central de Camionagem Velha, um estabelecimento de venda de jornais, revistas, valores selados, papel e lotarias; e viola, bem assim, o ponto 14 do Regulamento de Ocupação das Lojas na Central de Camionagem, que prescreve que, 'em igualdade de condições os actuais titulares de estabelecimentos na Central de Camionagem Velha terão direito de preferência para o mesmo ramo de actividade que será exercido no prazo de 15 dias após comunicação da proposta mais elevada'.
A deliberação impugnada (de 13 de Janeiro de 1992) foi anulada, por sentença de 13 de Abril de 1993, com fundamento em que estava
'inquinada com [o] vício de violação de lei', pois que, 'ao não lhe ser reconhecido [ao recorrente] tal direito [refere-se ao direito de preferência por ele invocado] pela deliberação impugnada, a mesma violou o ponto 14 do regulamento mencionado'.
Desta sentença (de 13 de Abril de 1993) recorreram para o Supremo Tribunal Administrativo a CÂMARA MUNICIPAL DE VILA NOVA DE FAMALICÃO e o adjudicatário da questionada loja nº 4, B....
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 14 de Março de 1995, negou provimento ao recurso.
2. É deste acórdão (de 14 de Março de 1995) que vem o presente recurso, interposto por B... ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei do Tribunal Constitucional, para apreciação da constitucionalidade do ponto 14 do Regulamento de Ocupação das Lojas da Central de Camionagem de Vila Nova de Famalicão.
Neste Tribunal, o recorrente apresentou alegações que concluiu do modo que segue:
1ª O recorrido ocupava um local na Velha Central de Camionagem de V.N.Famalicão, sem qualquer título, pois,
2ª Nenhum acto, expresso ou tácito da Câmara Municipal local, lhe atribui a condição de adjudicatário de coisa alguma.
3ª O titular do bar sito nessa Velha Central, esse, sim, era efectivamente adjudicatário do mesmo.
4ª O recorrido, não se encontrava assim em pé de igualdade com a pessoa singular a que alude a conclusão anterior.
5ª Logo o recorrido, perante o concurso a que nos reportamos, estava na situação de um vulgar cidadão.
6ª Não gozava portanto de nenhum direito de preferência, precisando de concorrer para tentar obter a adjudicação da loja que lhe interessasse.
7ª Doutro modo, era-lhe concedido um privilégio, para o qual não havia qualquer explicação ou justificação.
8ª Afora o preço, outras condições impunha o Regulamento de Ocupação das Lojas na Central de Camionagem de V.N.Famalicão, para que o estabelecimento fosse adjudicado a um concorrente.
9ª Essas condições não poderiam ser aquilatadas, se os alegados preferentes fossem dispensados de concorrer.
10ª Mas, a serem dispensados do concurso, gozariam dum privilégio especial, que subverteria o próprio espírito do concurso.
11ª Assim, quem quisesse (e aqui englobamos os alegados preferentes) que lhe fosse adjudicada uma loja na Nova Central, tinha efectivamente que concorrer.
12ª O douto acórdão recorrido aplica um preceito legal inconstitucional, ou dele faz uma interpretação inconstitucional, aquando da sua aplicação.
13ª Esse preceito seria sempre inconstitucional, por provir dum órgão incompetente para o produzir.
14ª O douto acórdão recorrido viola assim os arts. 13º, 266º, nº 2 e 168º, nº 1, al. b), da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos deve declarar-se inconstitucional o ponto 14º do Regulamento de Ocupação das Lojas na Central de Camionagem de V.N.Famalicão, ou, doutro modo, que teve uma interpretação e consequente aplicação inconstitucional, ordenando-se a reforma do douto acórdão recorrido em conformidade com essa declaração [...].
O recorrido A ... também alegou, formulando as seguintes conclusões: As questões vertidas no presente recurso já foram objecto de análise pelos outros Tribunais e nenhum deles encontrou matéria passível de integrar o conceito de inconstitucionalidade. Não se está em presença de actos comuns a um cidadão normal. A situação desenvolve-se nos parâmetros de uma legislação especial: a autárquica que, a coberto do normativo previsto no artº. 242º da Constituição, dispõe de poder regulamentar próprio. E foi no âmbito de um regulamento emanado por um órgão autárquico que o Recorrido exerceu um direito que os Tribunais sempre lhe reconheceram como legítimo.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir.
II. Fundamentos:
4. A norma que constitui objecto de recurso é a do ponto
14 do Regulamento de Ocupação das Lojas na Central de Camionagem, o qual consta da acta da reunião, de 18 de Setembro de 1989, da Câmara Municipal de Vila Nova de Famalicão, com a indicação de que será remetido à respectiva assembleia municipal, 'para aprovação em simultâneo com o Regulamento Geral oportunamente enviado'.
Na mencionada acta consigna-se que o Centro Coordenador de Transportes (Central de Camionagem) possui diversos espaços destinados ao comércio e serviços; enumera-se um total de 14 lojas, sendo a nº 4 destinada a livraria, papelaria e jornais; e consigna-se que a Câmara reservará para si duas lojas e destina aos CTT-TLP 23m2, 'a ceder em condições a determinar'. Regista-se que 'há ainda hipóteses de espaços específicos para a EDP e uma instituição de crédito' e esclarece-se que haverá uma 'estação de serviço que deve ser explorada por uma empresa ou grupo de empresas de camionagem', cujo concurso de adjudicação 'será realizado nos mesmos termos do das lojas'. E haverá também 'bilheteiras, escritórios e armazém para as empresas de camionagem' que 'serão entregues nos termos do Regulamento de Exploração e Funcionamento do Centro Coordenador de Transportes'. Propõe-se, depois, que a Câmara delibere abrir concurso para 'atribuição de lojas', nos termos que indica e que são os seguintes: a loja será entregue ao concorrente que oferecer a verba mais elevada; a base de licitação é a correspondente à taxa anual de ocupação da loja; a verba por que for adjudicada a loja será paga em duas prestações: 40%,
'no acto da realização do contrato de concessão da loja' e 60% nos 6 meses seguintes; o concurso é 'público e por cartas fechadas e lacradas com as propostas', que 'serão abertas no dia e hora marcadas para a sua realização'; os acabamentos das lojas serão feitos pelos concessionários das mesmas, de acordo com o projecto, tendo qualquer alteração que ser previamente aprovada pela Câmara; as lojas serão 'em princípio, entregues às propostas mais vantajosas e que ofereçam melhores garantias de funcionamento', tais como 'descrição do projecto comercial', 'posto de trabalho a criar', e 'outros dados de interesse, tais como o prazo de início de actividade'; se o adjudicatário não pagar o preço da verba respectiva ou se não abrir a loja no prazo indicado na proposta, a Câmara fica com 'o direito a fazer cessar a ocupação da loja'; o concurso será anunciado por edital, com antecedência de 15 dias, e divulgado na imprensa local, regional e nacional; cada concorrente deve identificar na sua proposta 'a loja que lhe interessa e o fim a que se destina, bem como a verba que oferece pela sua atribuição'; as lojas pagarão, para além da verba do concurso, uma taxa mensal de ocupação com os seguintes valores: 750$00/m2, as lojas 1, 2 e 3, e
1.000$00/m2, as lojas 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10; os escritórios, bilheteiras, armazém e estação de serviço pagarão uma taxa mensal de ocupação de 250$00/m2; estas taxas de ocupação poderão ser revistas anualmente pela Câmara; nos casos omissos aplicar-se-ão os 'regulamentos e disposições legais para situações idênticas'.
Uma outra condição do 'concurso de atribuição de lojas'
é a que consta do ponto 14, aqui sub iudicio, que reza assim:
14. Em igualdade de condições os actuais titulares de estabelecimentos na Central de Camionagem Velha terão direito de preferência para o mesmo ramo de actividade que será exercido no prazo de 15 dias após comunicação da proposta mais elevada.
Segundo o recorrente, a norma constante deste ponto 14 é inconstitucional, pois que viola os artigos 13º, 266º, nº 2, e 168º, nº 1, alínea b), da Constituição da República: viola os artigos 13º e 266º, nº 2, quando interpretada no sentido de que ela 'atribui um direito de preferência a quem, como o recorrido, não possui uma situação fáctica que admita um tratamento de forma desigual' e no sentido, bem assim, de que 'o recorrido ou outrem, na sua situação (ou mesmo melhor) não precisava de se submeter a concurso público, para exercer o direito de preferência em análise' (cf. as conclusões 8ª e 9ª das alegações apresentadas no Supremo Tribunal Administrativo, onde o recorrente expõe a sua tese com maior clareza). E viola o artigo 168º, nº 1, alínea b), porque provém de um 'órgão incompetente para o produzir' - 'uma câmara municipal' -, pois que incide 'sobre matéria da exclusiva competência da Assembleia da República'.
5. O recorrente não tem razão, como vai ver-se.
5.1. Começando pela acusação de incompetência para a produção da norma aqui sub iudicio, o recorrente não diz porquê, nem em que medida, uma cláusula de preferência constante de um regulamento de um concurso público versa sobre 'direitos, liberdades e garantias'.
Como o Tribunal também não descobre fundamento para tal afirmação, só lhe resta concluir pela inexistência de violação do artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição, por parte da norma aqui em análise.
5.2. Também não existe violação do princípio da igualdade (consagrado, em geral, no artigo 13º da Constituição; e no tocante ao modo como os órgãos e agentes administrativos devem actuar no exercício das suas funções, no artigo 266º, nº 2, da mesma Lei Fundamental), por banda da norma constante do transcrito ponto 14.
Este princípio não proíbe que a lei estabeleça distinções de tratamanto; proíbe tão-só que estabaleça distinções arbitrárias ou irrazoáveis, porque carecidas de fundamento material. Em suma: o que o princípio da igualdade recusa é o arbítrio e a discriminação, as distinções irrazoáveis, porque sem justificação racional (cf. acs. 516/93 e 223/95 (Diário da República, II série, de 19 de Janeiro de 1994 e de 27 de Junho de 1995).
Dar preferência, em condições de igualdade, para o mesmo ramo de actividade, na adjudicação de uma loja posta a concurso público, a quem explorava um estabelecimento comercial na antiga Central de Camionagem, só podia, assim, violar o princípio da igualdade, se essa preferência fosse arbitrária ou irrazoável, porque carecida de todo o fundamento material.
Ora, tal não acontece no caso.
É certo que o aqui recorrido, a quem o acórdão impugnado reconheceu a titularidade de um tal direito de preferência na adjudicação da loja nº 4, explorava na Velha Central de Camionagem um estabelecimento (onde vendia jornais, revistas, valores selados, papel e lotarias), não por qualquer acto da Câmara Municipal, mas apenas porque as empresas de camionagem concessionárias, por sua conta e risco, lho tinham facultado, a troco de serviços que ele lhes prestava. Mas a verdade também é que essa situação de facto - para além de ser conhecida da Câmara Municipal - foi por ela reconhecida, pois que, em 18 de Março de 1985, convidou-o para uma reunião, onde foram prestadas 'informações sobre a nova Central de Camionagem' e onde se abordou 'o estado da actual Central e a necessidade de algumas obras' e, bem assim, a 'limpeza da actual Central'. E mais - lê-se no acórdão recorrido - foi
'tendo em atenção a situação do recorrente [aqui recorrido] e da pessoa, ou pessoas, que explorava o bar que surge o ponto 14. do Regulamento'.
Sendo este o quadro factual que inspirou o ponto 14, aqui questionado, é manifesto que a interpretação que dele fez o acórdão recorrido (segundo a qual aqueles que exploravam estabelecimentos comerciais na velha Central de Camionagem, fosse qual fosse o título a que o faziam, gozavam do direito de preferência ali reconhecido) não acolhe uma solução arbitrária, nem discriminatória, antes tem fundamento material bastante: o fundamento de os titulares desse direito de preferência se acharem estabelecidos na velha Central.
5.3. Entendeu-se no acórdão recorrido que as pessoas visadas pela norma gozam do direito de preferência, mesmo se não se submeteram ao 'concurso de atribuição de lojas'.
Escreveu-se, aí, com efeito: 'não se refere que os titulares de tais estabelecimentos tinham de concorrer e, depois, se for caso disso, [exercer] o direito de preferência'.
Também esta interpretação do mencionado normativo se não apresenta como arbitrária ou discriminatória.
A preferência é - na expressão de ANTUNES VARELA
(Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º,página 126) - 'um privilégio de prioridade em situações relativas, de confronto ou competição com outrem. Aponta, por conseguinte, para situações concretas, para projectos reais, sobre os quais o preferente possa alicerçar o seu juízo de acção'. E acrescenta incisivamente: 'A preferência concede precisamente a vitória a alguém (o preferente) em condições de igualdade com outrem'.
Sendo esta a essência do direito de preferência, para se libertar do estado de sujeição que recai sobre ele 'como reverso do direito potestativo' do preferente, não basta, sequer, que o obrigado a ela pergunte 'ao preferente se está interessado em adquirir nas condições em que ele se dispõe a alienar. Para alcançar esse estado de alforria, com a adaga da caducidade cravada no peito do preferente, o alienante tem que lhe perguntar se ele quer ou não preferir nas condições em que o ofertante vai alienar (em que ele convencionou alienar) a terceiro (a determinada pessoa)' (cf. ANTUNES VARELA, Revista citada, página 126).
'É preciso - diz ainda ANTUNES VARELA (loc. cit.) -, por conseguinte, que esteja já esboçado com terceiro o negócio de alienação
[...] relativamente ao qual se coloca a opção concedida ao preferente' (cf. ainda ANTUNES VARELA, Revista citada, ano 120º, página 360; ano 122º, página
303; e M. HENRIQUES MESQUITA, Revista citada, ano 126º, página 82; VAZ SERRA, Obrigação de Preferência, Boletim do Ministério da Justiça, nº 76, página 131; GALVÃO TELES, Direito de Preferência, Colectânea de Jurisprudência, ano IX, I, página 51).
Sem deixar de advertir que os conceitos do Direito Civil não podem transferir-se qua tale para o domínio do Direito Público, com as transcrições feitas, quis-se pôr em destaque que o próprio do direito de preferência é que ao preferente se comunique o projecto de negociar por parte do obrigado à preferência e as condições em que se dispõe a fazê-lo, para, então, o titular do direito se decidir a preferir ou a deixar o caminho aberto a quem se dispõe a negociar nas condições que lhe são indicadas.
Sendo isto assim, o ponto 14. do regulamento, também nesta outra dimensão (segundo a qual os titulares de preferência podem exercer o direito, sem necessidade de se submeterem ao concurso para atribuição das lojas), não se mostra violador do princípio da igualdade: trata-se de uma solução razoável, pois que condizente com a natureza do direito em causa.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido quanto ao julgamento da questão de constitucionalidade que nele se contém.
Lisboa, 12 de Junho de 1996
Messias Bento José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Bravo Serra Luis Nunes de Almeida José Manuel Cardoso da Costa