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Proc. nº 650/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A., com sede na --------------------,
---------------, em ----------, apresentou em 10 de Abril de 1991 queixa ao Delegado do Procurador da República da comarca de Braga contra B., residente em
--------------, -----------------, imputando-lhe a prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, (cheque de 20.029$50, emitido em 11 de Dezembro de 1990, sobre o banco C. e entregue à queixosa).
Veio a ser deduzida acusação contra a denunciado pelo Agente do Ministério Público (a fls. 25), a qual foi recebida por despacho proferido em 9 de Dezembro de 1991 (a fls. 30).
A audiência de julgamento veio a ser adiada duas vezes por falta do arguido.
Por despacho de fls. 48, proferido em 24 de Abril de
1992, foi determinada a absolvição de instância do arguido, por se entender que o art. 11º, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, passara a exigir alegação e prova da existência de prejuízo patrimonial por parte do portador do cheque, sendo omissa a acusação quanto a este novo requisito e estando o tribunal limitado aos factos alegados na mesma acusação.
Inconformado com este despacho, dele interpôs recurso o Delegado do Procurador da República, tendo apresentado motivação no sentido de que o artigo aplicado na decisão de primeira instância apenas operara a descriminalização nos casos em que se provasse inexistir prejuízo patrimonial resultante para outrem.
Na Relação do Porto, o representante do Ministério Público sustentou igualmente a procedência de recurso, remetendo para as razões expostas na Circular nº 4/92 da Procuradoria-Geral da República.
Por acórdão de 23 de Setembro de 1992, tirado com um voto de vencido, o Tribunal da Relação do Porto decidiu julgar inaplicável o nº
1, alínea a), do art. 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, por o mesmo estar ferido de inconstitucionalidade orgânica, revogando o despacho recorrido e ordenando ao juiz a quo que determinasse que os autos retomassem o seu curso normal, realizando-se o julgamento do arguido.
Nesse acórdão, depois de se fazer uma referência às controvérsias doutrinárias e jurisprudenciais surgidas após a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 454/91 e à história legislativa do referido diploma, incluindo a sujeição à fiscalização preventiva do mesmo, criticou-se a posição tomada pelo Tribunal Constitucional, escrevendo-se:
'Eis porque consideramos que a lei de autorização que resultou da aprovação dessa proposta de lei, sem qualquer alteração para além da já referida nuance na composição tipográfica, envolve a obrigação de o Governo não reduzir o âmbito da criminalização de condutas operada pela legislação até então vigente com a única excepção daquelas relacionadas com a emissão de cheques de valor até 5.000$00 (e ainda assim com a definição da contrapartida de as instituições sacadas deverem proceder ao seu pagamento ao lesado) sabido que é que, como no caso, a conversão da natureza do ilícito, de crime de perigo abstracto em crime de dano ou de resultado (isto numa das teses), ou a redução da incriminação relativamente aos cheques de valor superior a 5000$00 (na outra tese), terá sempre uma repercussão despenalizadora, de maior ou menor âmbito consoante a perspectiva, afectando quer os comportamentos futuros, quer as condutas. [..]
Há que concluir que o nº 1 alínea a) do artigo 11º do Decreto-Lei
454/91, em confronto com o nº 1, al. a), do artigo 3º da Lei 30/91, operou um significativo desvio do sentido da autorização legislativa, envolvendo uma alteração qualificativa, que não uma mera utilização parcelar ou parcelada da autorização [...]
Trata-se de inconstitucionalidade orgânica, pois que respeita à produção legislativa do Governo em matéria de reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República'. (a fls. 66 vº a 68 vº).
Inconformado com essa decisão, dela veio interpor recurso obrigatório o Procurador da República, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 74.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, nele tendo apresentado alegações apenas a entidade recorrente. Nessa peça preconizou a negação de provimento ao recurso, formularam-se as seguintes conclusões:
'1º - A reserva de competência legislativa da Assembleia da República relativa à «definição de crimes» (artigo 168º, nº 1, alínea c), da Constituição) abrange quer a definição de novos tipos de crimes, quer a modificação, desgraduação ou eliminação de tipos existentes;
2º No nº 1 do artigo 3º da Lei nº 30/91, de 20 de Julho, a Assembleia da República define como sentido da autorização legislativa concedida ao Governo para definir as condutas integradoras do crime de emissão de cheque sem provisão uma diferenciação consistente em exigir a verificação do requisito da produção do prejuízo patrimonial a outrem para a incriminação da conduta descrita na alínea c), e em não exigir a verificação desse requisito para a incriminação das condutas descritas nas alíneas a) e b);
3º Ao entender a exigência da verificação desses requisitos para a incriminação das condutas descritas nas correspondentes alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - e, assim, ao não criminalizar tais condutas nos casos em que não ocorra a produção de prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro - o Governo desrespeitou o sentido da autorização legislativa que para o efeito lhe havia sido concedida;
4º - É, assim, inconstitucional (ou ilegal, consoante a qualificação que se prefira para o vício consistente em o decreto-lei autorizado, não extravasando o objecto da autorização legislativa, lhe desrespeitar o sentido) por violação do artigo 115º, nº 2, da Constituição, a norma constante do corpo e da alínea a) do nº 1 do artigo 11º do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que exige a verificação da produção de prejuízo patrimonial para outrem para a incriminação da conduta prevista nessa alínea' (fls. 132 a 134).
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e conhecer
II
4. Constitui objecto do presente recurso a questão da invocada inconstitucionalidade da norma do art. 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, por invocada violação da norma habilitadora constante da lei de autorização legislativa (art. 3º, nº 1, da Lei nº 30/91, de 20 de Julho).
Dispõe a norma questionada:
'1. Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:
a) Emitir e entregar a outrem, cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.'
5. A norma transcrita foi já objecto de apreciação por este Tribunal, em sessão plenária, por duas vezes. Uma primeira vez, em processo de fiscalização preventiva de constitucionalidade, no já citado Acórdão nº 371/91 (in Diário da República, II Série, nº 284, de 10 de Dezembro de 1991). e uma segunda vez, em hipótese afim à dos presentes autos, no Acórdão nº 349/93
(publicado no Diário da República, II Série, nº 180, de 3 de Agosto de 1993). Em ambas as ocasiões, o Tribunal Constitucional pronunciou-se pela não inconsti-tucionalidade da norma em causa.
Entende-se, por isso, dever-se reafirmar, no presente caso, a orientação assumida no citado Acórdão nº 349/93, dando-se como integralmente reproduzidos os fundamentos aí acolhidos.
III
6. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso de constitucionalidade, determinando-se, em consequência, que o acórdão recorrido seja reformulado de harmonia com o julgamento em matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 27 de Outubro de 1993
Armindo Ribeiro Mendes
Vítor Nunes de Almeida
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
José Manuel Cardoso da Costa