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Proc. nº 316/94
2ª Secção
Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. O Dr. F ..., juiz de direito, recorreu
para o Supremo Tribunal de Justiça da deliberação do Conselho Superior da
Magistratura (Plenário) de 11 de Maio de 1993 que, nos termos do disposto nos
artigos 89º, 94º, 96º, 97º, 99º e 105º do Estatuto dos Magistrados Judiciais,
lhe aplicou a pena disciplinar de vinte e quatro meses de inactividade, em
cúmulo jurídico de duas penas parcelares de vinte meses de inactividade cada uma
- por infracções que considerou denotarem baixeza de carácter e conduta imoral e
desonrosa, só não conduzindo à aposentação compulsiva por no caso haver lugar a
atenuação extraordinária da pena, conforme havia sido decidido por acórdão
anterior do mesmo Tribunal.
O recorrente pediu a anulação do acto
recorrido por dois motivos: em primeiro lugar, por a pena não ter sido
devidamente ponderada em conformidade com o decidido nesse anterior acórdão (que
mandara ter em conta tudo quanto relevasse do comportamento posterior do
arguido, em especial a sua actuação como magistrado); e, em segundo lugar, por
não ter sido devidamente fundamentada a escolha da 'pena de escalão inferior'
referida no mesmo acórdão. Teria sido assim duplamente violado o disposto no
artigo 97º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e até a regra geral do artigo
663º do Código de Processo Civil.
Por acórdão de 23 de Março de 1994, o
Supremo Tribunal de Justiça negou provimento ao recurso, confirmando
inteiramente a decisão do Plenário do Conselho Superior da Magistratura.
2. Reclamou, então, o recorrente, por
nulidades, alegando que esse acórdão não tinha abordado a primeira questão
suscitada no recurso e não tinha fundamentado em termos suficientes a decisão
que proferiu quanto à segunda: teria assim sido violado o artigo 668º, nº 1,
alíneas b) e d), do Código de Processo Civil, 'com a acrescida ofensa dos arts.
2º, 205º/1 e 208º/1 da Constituição, face à interpretação por essa forma dada a
tais preceitos da lei processual e à própria regra da parte inicial do art.
8º/1 do Cód. Civil'.
Contudo, a reclamação foi indeferida por
acórdão de 5 de Maio de 1994: o S.T.J. considerou, com efeito, não terem sido
praticadas as reclamadas nulidades nem haver lugar a qualquer suprimento ou
esclarecimento do acórdão reclamado.
3. Inconformado, recorreu o Dr.
F... para o Tribunal Constitucional, invocando ofensa das mencionadas normas
constitucionais pelas também citadas disposições do Código de Processo Civil e
do Código Civil, «na interpretação dada» pelo S.T.J., conforme esclareceu depois
de notificado para o efeito, naquele tribunal, pelo relator.
O Supremo Tribunal, por acórdão de 15 de
Junho de 1994, decidiu não admitir o recurso, porquanto as
inconstitucionalidades em questão não haviam sido suscitadas durante o
processo, não se integrando a situação em apreço na previsão do artigo 70º, nº
1, alínea b), da L.T.C., nem em qualquer outro fundamento de recurso admitido no
mesmo diploma.
4. Desta decisão que não admitiu o
recurso, houve reclamação para o Tribunal Constitucional.
O Ministério Público é de parecer de que
a reclamação deve ser indeferida.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
5. O S.T.J. indeferiu o requerimento de
interposição de recurso com os seguintes fundamentos:
Da leitura do processo resulta que nas alegações do recorrente para
este S.T.J., bem como nas contra‑alegações do Conselho Superior da Magistratura,
e ainda no parecer do Ministério Público, jamais foi suscitada a questão da
inaplicabilidade de qualquer norma, por inconstitucional. Assim, no acórdão
deste S.T.J., de que se quer recorrer, nenhuma questão dessa natureza foi
abordada.
Proferido o acórdão neste S.T.J., o ora recorrente veio arguir a
nulidade do aresto, nos termos do artigo 668º do C.P.C., tirando as seguintes
conclusões nessa arguição: '7º Incorreu assim em dupla nulidade (als. b) e d) do
nº 1 do art. 668º do Cód. de Proc. Civil), com acrescida ofensa dos arts. 2º,
205º/1 e 208º/1 da Constituição, face à interpretação por essa forma dada a tais
preceitos da lei processual e à própria regra da parte inicial do art. 8º/1 do
Cód. Civil'.
Sobre essa arguição foi lavrado acórdão que julgou não verificadas
as arguidas nulidades de sentença, fundamentando-se o entendimento, outrossim
afirmando-se o acórdão não ter desrespeitado qualquer das normas constitucionais
ditas violadas pelo recorrente neste requerimento.
[...]
Tudo visto, concluem que o relato feito do que se tratou no processo
não se pode integrar na previsão da al. b) do nº 1 do artº 70º da Lei Orgânica
do Tribunal Constitucional, nem de qualquer outro fundamento admitido pelo mesmo
diploma, para recurso para o mesmo Tribunal Constitucional.
6. A este entendimento, objecta o
reclamante que a questão de inconstitucionalidade foi suscitada em tempo útil no
requerimento de arguição de nulidades, já que, 'no caso de se verificar uma
hipótese de nulidade, esta deve ser suprida, sendo pois obviamente possível
alterar a decisão arguida dessa nulidade'.
7. O Ministério Público, porém, opõe o
seguinte:
Limitou-se este [o reclamante], na verdade, a imputar, em
requerimento posterior à prolação do acórdão de que pretendia recorrer e de
forma vaga e inconclusiva o cometimento de uma 'dupla nulidade' e de ofensa a
certos preceitos da Lei Fundamental (fls. 48). As pretensas
'inconstitucionalidades' surgem, deste modo, intempestivamen- te imputadas à
própria decisão de que se pretende recorrer, o que naturalmente torna o recurso
de constitucionalidade inadmissível, por evidente falta dos seus pressupostos
legais.
8. Discute-se, pois, se foi ou não
suscitada durante o processo a questão de inconstitucionalidade dos artigos
668º, nº 1, alíneas b) e d), do Código de Processo Civil, bem como do artigo 8º,
nº 1, parte inicial, do Código Civil.
Porém, uma outra questão se poderá, desde
logo, colocar: terá o ora reclamante indicado devidamente a norma cuja
inconstitucionalidade pretende que o Tribunal aprecie, como se exige no nº 1 do
artigo 75º-A da LTC?
É sabido que se vem considerando legítimo
que as partes peçam a apreciação da inconstitucionalidade de determinada norma
«na interpretação dada» pelo tribunal recorrido, desde que hajam perante ele
suscitado a questão de inconstitucionalidade. Contudo, parece que cabe às
partes, em tais casos, para cabal identificação da norma a apreciar, a indicação
precisa da interpretação adoptada que consideram violadora da Constituição.
Ora, no caso sub judicio, tal
manifestamente não ocorreu. Na verdade, o ora reclamante limitou-se a indicar os
preceitos legais donde constariam as normas a apreciar, invocando a
«interpretação dada» pelo S.T.J., mas não referindo qual fosse essa
interpretação, pelo que se fica na dúvida sobre a concreta questão que se
quereria ver apreciada, até porque na decisão recorrida não se refere, pelo
menos de modo expresso e minimamente claro e inequívoco, qualquer interpretação
dos referidos preceitos legais que tivesse servido de fundamento a essa mesma
decisão.
Assim sendo, logo se verifica que falece
o requisito do recurso estabelecido no nº 1 do artigo 75º-A da LTC.
9. Mas, para além disso, e ainda que se
ultrapassasse esse problema, terão aquelas normas sido aplicadas pelo tribunal a
quo com o sentido alegadamente inconstitucional a que, presumivelmente, se
reportará o reclamante?
É que o recurso a que se refere a
presente reclamação é interposto ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da
Lei nº 28/82: segundo esta disposição, cabe recurso para o Tribunal
Constitucional de decisão judicial que aplique norma cuja inconstitucionalidade
haja sido suscitada durante o processo. Isto significa que a norma a apreciar
tem de ter sido aplicada durante o processo, e aplicada com o sentido
inconstitucional invocado. Se a norma não foi aplicada com esse sentido
alegadamente inconstitucional, mas sim com um outro, não há manifestamente
fundamento para recurso ao abrigo desta disposição, pois não pode dizer-se que
tenha havido aplicação de norma alegadamente inconstitucional (sobre esta
questão, vejam-se os acórdãos n.os 487/94 e 551/94, ainda inéditos).
As normas em causa têm a seguinte
redacção:
Código Civil
Artigo 8º
(Obrigação de julgar e dever de
obediência à lei)
1. O tribunal não pode abster-se de julgar, invocando a falta ou obscuridade da
lei ou alegando dúvida insanável acerca dos factos em litígio.
[...]
Código de Processo Civil
Artigo 668º
(Causas de nulidade da sentença)
1. É nula a sentença:
[...]
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que
justificam a decisão.
[...]
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse
apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
O reclamante não indica expressamente,
como vimos, qual o sentido inconstitucional com que as normas em causa terão
sido interpretadas e aplicadas, limitando-se a referir que a interpretação que o
tribunal lhes deu viola os artigos 2º, 205º, nº 1, e 208º, nº 1, da
Constituição.
Poderia, todavia, presumir-se que esse
sentido alegadamente inconstitucional consistiria, em sua opinião, em que as
normas questionadas permitem que na sentença se não decidam as questões
suscitadas pelas partes, ou que as decisões dos tribunais possam ser
insuficientemente fundamentadas.
Ora, não resulta do acórdão do S.T.J. de
23 de Março de 1994 que os artigos 8º, nº 1, do Código Civil (parte inicial) ou
o artigo 668º, nº 1, alíneas b) e d) do Código de Processo Civil tenham sido
aplicados com tal sentido alegadamente inconstitucional.
10. Na verdade, não tendo sido aquelas
normas expressamente referidas pelo acórdão, a sua interpretação e aplicação só
podem ter ocorrido de forma implícita. Mas não há nesse acórdão quaisquer
elementos que apoiem a afirmação de que elas teriam sido aplicadas com a
interpretação (inconstitucional) sugerida (eventualmente) pelo reclamante.
Ao julgar improcedente o recurso, o
S.T.J. apreciou ambas as questões que aí haviam sido suscitadas: considerou que
a decisão do Plenário do C.S.M. 'não sofre de qualquer das críticas que lhe são
dirigidas pelo recorrente, tendo criteriosamente respeitado o que determinara
este Supremo, bem como as disposições legais aplicáveis'. E prossegue,
afirmando: (a) que a anterior decisão do Supremo, apesar da atenuação especial,
'não admitia a possibilidade de aplicação de pena inferior à de inactividade'
(isto quanto à primeira questão) e que, por outro lado (b) 'da decisão do
Plenário do C.S.M. constam as razões que justificaram a medida da pena aplicada'
(isto quanto à segunda questão).
Por outro lado, nada permite dizer que
este acórdão do S.T.J. contemporiza com o entendimento de que se pode admitir
uma fundamentação insuficiente da decisão: quanto à primeira questão, o S.T.J.
cita o anterior acórdão, para concluir que do mesmo resulta a impossibilidade
de escolher pena inferior à de inactividade; e quanto à segunda, cita as
considerações feitas pelo próprio Plenário do C.S.M., acrescentando que foi
atendendo aos elementos do registo disciplinar posterior às infracções, e
nomeadamente atendendo às classificações de serviço entretanto obtidas, que o
magistrado em questão não foi definitivamente afastado do exercício da
judicatura.
Ou seja, o S.T.J. não considerou que se
podia abster de julgar, nem tão-pouco entendeu que se podia eximir à
especificação das razões de facto e de direito que justificavam a decisão.
Não se mostra, pois, que as normas em
causa tenham sido interpretadas (ainda que apenas implicitamente) com o sentido
de que na sentença podem não ser decididas as questões suscitadas pelas partes
ou podem ser insuficientemente fundamentadas as decisões do tribunal.
Mas, sendo assim, não poderá dizer-se que
essas normas tenham sido aplicadas com tal sentido alegadamente
inconstitucional.
11. Poderá, talvez, considerar o
reclamante que as questões que haja suscitado deveriam merecer outro tratamento
por parte do S.T.J. e que, na forma como aplicou concretamente as normas
questionadas, o Supremo acabou por violar a Lei Fundamental.
É esta uma questão, porém, cuja
apreciação se encontra vedada ao Tribunal Constitucional, cuja competência se
limita ao conhecimento de questões atinentes à eventual inconstitucionalidade de
normas jurídicas, na ausência, na nossa ordem jurídica, de um verdadeiro recurso
de amparo.
12. Portanto, e em conclusão: tenha ou
não sido tempestivamente suscitada a questão, ou questões, de
inconstitucionalidade em apreço, a verdade é que não foram devidamente
identificads as normas alegadamente inconstitucionais; e que, ainda que se
presumisse o seu conteúdo, nada permite concluir que elas hajam sido aplicadas
no processo com o sentido inconstitucional que o reclamante sugere.
Não se encontram, assim, verificados
requisitos indispensáveis para a admissão do recurso. E, consequentemente, a
reclamação não pode proceder.
III - DECISÃO
13. Nestes termos, decide-se indeferir a
reclamação, fixando-se a taxa de justiça em dez U.C.'s.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 1995
Luis Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José Manuel Cardoso da Costa