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Proc. nº 492/91
2ª Secção Cons. Rel.: Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. requereu execução no Tribunal Cível de Lisboa (10º Juízo) contra B., para dela haver o pagamento da quantia de 707.191$00, acrescida dos respectivos juros.
Nessa execução, foi oportunamente penhorada a fracção autónoma designada pela letra ----, correspondente ao ------º andar, apartamento
-----, do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua
---------------, lote ----, ---------, ---------, descrito, sob o nº ---------, na respectiva Conservatória do Registo Predial (antiga descrição nº --------, a fls. --------- do Livro ---------), e inscrito na matriz, sob o artigo
-----------.
Tal fracção autónoma veio a ser vendida, em 7 de Junho de 1990, em hasta pública, sendo arrematada pelo preço de 2.750.000$00 por C..
2. A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, CRÉDITO E PREVIDÊNCIA, veio, no entanto, em 18 de Setembro de 1990, requerer a anulação da venda realizada, com o consequente cancelamento dos actos registrais feitos a coberto da venda, uma vez que, sendo credora hipotecária da executada B. e tendo o respectivo crédito sido oportunamente reclamado na execução pelo Ministério Público, agindo em sua representação, devia ela ter sido notificada, sob pena de anulação da venda, do despacho que ordenara a venda - o que não sucedeu.
O juiz indeferiu o pedido de anulação da venda.
3. A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS interpôs, então, recurso para a Relação de Lisboa do despacho que indeferiu o seu pedido de anulação da venda. Obtendo ganho de causa, viu anulada a venda da aludida fracção autónoma, que havia sido arrematada em hasta pública (cf. acórdão de 10 de Outubro de 1991).
No recurso para a Relação, o arrematante (dito C.), que aí era recorrido, sustentou nas alegações que, tendo o despacho - que ordenara a venda em hasta pública da referida fracção autónoma - sido notificado ao Ministério Público, não tinha por que sê-lo também à Caixa Geral de Depósitos. E acrescentou que 'entendimento diferente do disposto no § 2º do artº
4º do DL nº 33.276 e do artº 18º do DL nº 693/70 violaria o princípio da igualdade perante a lei (artº 13º da Constituição)', e bem assim aquilo a que chamou 'princípio da independência de magistraturas', reportando-o ao artigo
205º da Constituição. Ao que acresce que o referido § 2º do artigo 4º foi revogado pela Lei nº 47/86, de 15 de Outubro.
A Relação, no seu já mencionado acórdão - depois de afirmar a plena vigência do dito § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, de
24 de Novembro de 1943 - assentou em que ele não é inconstitucional, como o não
é o artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro.
4. É do acórdão da Relação que vem o presente recurso, interposto pelo referido arrematante da fracção autónoma (dito C.), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, como ele veio esclarecer (tal como esclareceu outros pontos omissos), na sequência do convite que lhe foi feito ao abrigo do disposto no artigo 75º-A, nº
5, da mesma Lei.
Nas alegações que apresentou neste Tribunal, o aqui recorrente (dito C.) formulou as seguintes conclusões:
1 - O Ministério Público é, por força do nº 1 do art. 156º do Regulamento da C.G.D., aprovado pelo Decreto nº 694/70, de Dezembro, o representante em Juízo da Caixa Geral de Depósitos;
2 - No caso dos autos, o Ministério Público interveio como representante da C.G.D. não só por força daquela disposição legal, como ainda porque isso lhe foi requerido pela própria C.G.D.;
3 - A C. G. D., por seu lado, não utilizou nos autos, até 18/9/90, a faculdade, que a lei lhe confere, de constituir ela própria advogado;
4 - Não obriga a lei à notificação à C.G.D. de despacho que designa o dia para a venda em hasta pública, valendo aqui as regras gerais decorrentes dos nºs 1 e 2 do art. 253º do C.P.C., pois,
5 - O disposto no § 2º do art. 4º do D.L. nº 33.276 e do art. 18º do D.L. 693/70 viola o princípio da igualdade perante a Lei (art. 13º da Constituição); Além disso,
6 - O § 2º do art. 4º do D.L. 33.276, ao incumbir o Juiz ou o Tribunal de uma missão de fiscalização ou censura dos actos próprios do Ministério Público, no
âmbito do patrocínio judiciário de interesses que lhe estão confiados, tem de considerar-se inconstitucional, por ofensa ao disposto nos arts. 205º, 206º,
221º, nº 2 e 13º da Constituição (independência de Magistraturas e igualdade perante a Lei);
7 - Não podendo a C.G.D., no âmbito das relações jurídico-privadas, obter perante os Tribunais qualquer tratamento de privilégio em razão da circunstância de ser um instituto de crédito do Estado;
8 - Deverá, pois, declarar-se a inconstitucionalidade material, nos termos expostos, do § 2º do art. 4º do Dec.-Lei nº 33.276, de 24/11/43, e do artº 18º do Dec.-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, com todas as consequências legais e a revogação do acórdão recorrido, como é de Justiça.
De sua parte, a recorrida CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS concluiu como segue as suas alegações:
1ª - O requerimento de interposição de recurso não respeitou o estabelecido na Lei nº 28/82.
2ª - No presente recurso não se pode discutir o caso concreto ou, pelo menos, apreciar-se e decidir-se quanto à sua factualidade.
3ª - Não está em causa nos autos a legalidade da decisão judicial mas sim a constitucionalidade das normas aplicadas.
4ª - Só são de considerar, na apreciação do recurso, as conclusões 5ª e 8ª das alegações do recorrente.
5ª - As normas legais cuja constitucionalidade foi invocada nas conclusões das alegações do recorrente e no corpo destas foram as seguintes: o § 2º do artº 4º do Decreto-Lei nº 33.276 de 24.11.1943 e o artigo 18º, nº 3 e nº 1 (neste caso, na parte em que se reporta àquela outra norma) do Decreto-Lei nº 693/70.
6ª - As normas constitucionais pretensamente violadas são as da última revisão constitucional, de 1989.
7ª - Os princípios constitucionais violados são os referentes ao disposto, na Constituição:
- nos seus artigos 13º, 205º, 206º e 221º, nº 2, no tocante ao § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276; e
- no seu artigo 13º, no tocante ao artº 18º do Decreto-Lei nº 693/70.
8ª - As normas legais [do Decreto-Lei nº 33.276 e do Decreto-Lei nº 693/70] referidas na conclusão anterior têm natureza substantiva e não processual.
9ª - Não foram violadas pelo Tribunal da Relação de Lisboa nenhuma das normas constitucionais contidas nos artigos referidos na conclusão 7ª.
10ª - As normas legais em que se baseou o douto Acórdão daquele Tribunal são inteiramente constitucionais.
5. Corridos os vistos - e porque nada há que obste -, cumpre decidir a questão da constitucionalidade das normas do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, de 24 de Novembro de 1943, e do artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro (quanto a este último preceito, só o nº
3 é, de facto, questionado sub specie constitutionis).
II. Fundamentos:
6. O artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, de 24 de Novembro de 1943, dispõe como segue:
Artigo 4º- Nos processos em que a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência ou alguma das suas instituições anexas sejam exequentes ou reclamantes, o agente do Ministério Público, logo que designado o dia para a arrematação ou decidida a venda por meio de proposta em carta fechada ou por via de negociação particular, comunicará o facto à Administração da Caixa, remetendo-lhe uma relação dos bens a pracear ou a vender, donde conste, quanto a cada um dos bens, o encargo que o grava, o valor por que será posto em praça ou o preço mínimo que houver sido fixado para a negociação particular. Tratando-se de prédios, apontar-se-á ainda na relação o número da descrição na Conservatória e o artigo da inscrição na matriz, se o processo para tanto fornecer elementos.
§ 1º. Serão notificados ao agente do Ministério Público, no prazo máximo de vinte e quatro horas, os despachos que, nos processos visados pelo artigo, designem dia para a arrematação ou decidam sobre a venda por meio de propostas em carta fechada ou por via de negociação particular.
§ 2º. O juiz não mandará anunciar a abertura da praça ou proceder à abertura das propostas sem se assegurar de que se realizou a comunicação ordenada no artigo. Desta circunstância se fará expressa menção no respectivo auto.
§ 3º. Nos processos de que trata o artigo fica dependente de prévio despacho do juiz a passagem da certidão a que se refere o artigo 887º do Código de Processo Civil, e o juiz, ao proferir o despacho, tomará a cautela prescrita no parágrafo anterior.
Do preceito acabado de transcrever resulta que, se a Caixa Geral de Depósitos tiver reclamado um crédito num processo de execução, em que tenha sido penhorado um imóvel, ordenada a venda do mesmo em hasta pública, o despacho que designar dia para a arrematação deve ser notificado ao Ministério Público, no prazo máximo de 24 horas, para que este comunique tal facto, à Caixa, indicando-lhe o número de descrição, na Conservatória, do imóvel a pracear e o respectivo artigo matricial, e bem assim o encargo que sobre ele recai e o valor por que será posto em praça.
O juiz não mandará anunciar a abertura da praça sem se assegurar de que o Ministério Público procedeu a tal comunicação. Na acta, far-se-á menção expressa dessa circunstância.
O referido artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276 foi expressamente mantido em vigor pelo artigo 18º, nº 1, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, que, no que aqui importa, preceitua:
1. Mantém-se em vigor [...] a seguinte legislação respeitante a execuções por dívidas à Caixa:
Os artigos 4º [...] e seus parágrafos do Decreto-Lei nº 33.276, de 24 de Novembro de 1943.
Tal preceito - decidiu o acórdão recorrido, louvando-se num aresto do Supremo Tribunal de Justiça - mantém-se presentemente em vigor.
A falta de notificação à Caixa do despacho que ordenar a venda do imóvel importa a anulação da venda que dele se fizer.
Preceitua, na verdade, o nº 3 do citado artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro:
O despacho que ordene a venda em processos em que a Caixa Geral de Depósitos seja exequente ou reclamante ser-lhe-á sempre notificado, e a falta dessa notificação importará a anulação da mesma venda.
7. Pergunta-se então: a norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, de 24 de Novembro de 1943 - que dispõe que o juiz não mandará anunciar a abertura da praça para venda de imóvel, em execução em que a Caixa tenha reclamado um crédito, sem se assegurar de que o Ministério Público lhe comunicara a data da mesma, acompanhando essa comunicação dos elementos atrás referidos - será inconstitucional (como pretende o recorrente), por violar os artigos 205º, 206º, 221º, nº 2, e 13º, todos da Constituição da República? E, do mesmo modo, será inconstitucional, por violação do artigo 13º da Lei Fundamental, a norma do artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro - que preceitua que a falta de notificação à Caixa, em processos em que ela seja reclamante, do despacho que ordene a venda importa a anulação desta?
Estas são, de facto, as únicas questões que a este Tribunal cumpre decidir, restritos como são os recursos para si interpostos 'à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade suscitada' (cf. artigo 71º, nº 1, da Lei do Tribunal Constitucional).
8. A norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276 em confronto com os artigos 205º e 221º, nº 2, da Constituição:
O artigo 205º da Constituição atribui a 'competência para administrar a justiça' aos tribunais (nº 1), os quais são órgãos de soberania incumbidos de 'assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados' (nº 2).
Não cumprindo aos tribunais (recte, aos respectivos juízes) 'fiscalizar actos do Ministério Público mas administrar justiça', o citado § 2º do artigo 4º (diz o recorrente) viola o nº 1 deste artigo 205º. E este § 2º (ainda segundo o recorrente) viola também, ao mesmo título, o artigo
221º, nº 2, da Constituição, que preceitua que 'o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia nos termos da lei'.
É óbvio que aos juízes não cumpre fiscalizar os actos do Ministério Público, ao menos quando por 'fiscalização' se entenda o que o recorrente entende. E óbvio é também que este goza de 'autonomia nos termos da lei'.
A autonomia de que goza o Ministério Público, conforme este Tribunal acentuou no Acórdão nº 254/92 (Diário da República, I série-A, de
31 de Julho de l992), não significa, obviamente, independência, mas impõe ao legislador a adopção de medidas que impeçam que ele 'seja transformado em instrumento do poder político', organizando-o 'de forma a assegurar-se a sua
'isenção e imparcialidade'.
Não se vê, porém, que o citado § 2º do artigo 4º belisque a garantia constitucional da autonomia do Ministério Público ou ofenda o nº 1 do artigo 205º da Constituição.
De facto, o juiz, ao assegurar-se de que o Ministério Público fez à Caixa a comunicação a que se refere o corpo do dito artigo 4º
(indicando-lhe, designadamente, a data da praça a que vai o imóvel, dado em hipoteca para garantia do crédito que ela reclamou na execução, para aí ser vendido), não está a exercer qualquer competência de fiscalização dos actos do Ministério Público. Está, isso sim, a verificar o cumprimento da lei.
O juiz, ao verificar se foi ou não cumprida uma formalidade (comunicação à Caixa do despacho que ordenou a venda do imóvel penhorado em hasta pública) que, se omitida, importa a anulação da venda que vier a ser feita (cf. artigo 18º, nº 3, do citado Decreto-Lei nº 693/70), não faz coisa substancialmente muito diversa do que faz quando, numa acção declarativa, constatando que o réu não deduziu qualquer oposição, não constituiu mandatário, nem interveio de qualquer outra forma no processo, verifica se a citação foi ou não feita com as formalidades legais, a fim de a mandar repetir quando encontrar irregularidades (cf. artigo 483º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, essa verificação, feita pelo juiz, da observância pelo Ministério Público de uma obrigação que a lei lhe impõe não representa qualquer intromissão inconstitucional no exercício das respectivas funções.
Para assim se concluir, bastará pensar em que também não
é inconstitucional a norma do artigo 205º, nº 2, do Código de Processo Civil, da qual decorre o dever de o juiz não prosseguir com a praça quando se der conta de que algum credor que, devendo ser notificado do despacho que a designou, o não foi, em violação do artigo 882º, nº 2, do mesmo Código. Tal como o não seria a lei impusesse ao juiz o dever de verificar se o advogado do exequente (o do executado ou o de um outro qualquer credor) tinha comunicado a data da praça ao seu constituinte: neste último caso, estar-se-ia, é certo, a impor ao juiz que assumisse, na medida indicada, a tutela do interesse de particulares. A norma que tal impusesse não consagrava, porém, qualquer intromissão inconstitucional do juiz na autonomia das partes.
Sobre este ponto resta acrescentar que a garantia constitucional da autonomia encontra a sua real justificação na necessidade que há de o Ministério Público exercer, com distanciação em relação ao poder político, a sua função típica de defender a sociedade contra a violação de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário - a função, portanto, de 'exercer a acção penal'. Aí, com efeito, o Ministério Público tem que agir como verdadeiro
órgão de justiça, e não como uma parte (entendida esta expressão no sentido de entidade empenhada no triunfo de uma acusação deduzida contra o arguido). Há-de, por isso, 'colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito', decidindo-se e orientando-se por 'critérios de estrita objectividade'
(cf. o artigo 53º do Código de Processo Penal). À sua actuação há-de presidir sempre - no dizer de FIGUEIREDO DIAS - uma 'incondicional intenção de verdade e de justiça' (cf. Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, págs. 25 e 31).
No caso da norma em apreço, porém, o Ministério Público intervém num processo cível em representação da Caixa Geral de Depósitos, que o mesmo é dizer para defesa de interesses que a lei lhe determina que defenda
(como consente o artigo 221º, nº 1, da Constituição). Em tais processos, o Ministério Público representa um interessado que aí (ao menos, segundo certa jurisprudência), assume a posição de parte principal (cf. acórdão da Relação do Porto, de 9 de Novembro de 1973, cujo sumário se acha publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 231, p. 210); e, por isso, não necessita de muito mais
(ou de muito diferente) autonomia daquela de que precisa qualquer advogado em relação ao respectivo representado.
9. A norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276 e o artigo 206º da Constituição:
No artigo 206º da Constituição, consagra-se o princípio da independência dos tribunais (e dos respectivos juízes) - o que significa que os tribunais são independentes dos demais poderes do Estado e independentes entre si (salvo, naturalmente, o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso, por tribunais superiores). E significa, bem assim, como este Tribunal sublinhou no seu Acórdão nº 135/88 (Diário da República, II Série, de 8 de Setembro de 1988) e repetiu no Acórdão nº 52/92 (Diário da República, I Série-A, de 14 de Março de 1992), que o juiz, ao 'dizer o Direito' o deve 'fazer sempre esforçando-se por se manter alheio - e acima - de influências exteriores', sujeito apenas à lei e aos ditames da sua consciência. É a independência vocacional que, como então se pôs em destaque, é sobretudo, uma responsabilidade, um dever ético-social, 'que terá a 'dimensão' ou a 'densidade' da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz'. Independência vocacional, que o ordenamento jurídico há-de promover e facilitar, desde logo, rodeando o desempenho do cargo de juiz 'de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição', pois, 'quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de 'administrar justiça'. É iudex inhabilis (cf. citado Acórdão nº 135/88).
'A imparcialidade da jurisdição - escreveu-se no citado Acórdão nº 52/92 - não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada antes e durante o julgamento'.
Ora, não se vê em que é que a independência dos juízes e dos tribunais possa ser atingida pela norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276.
10. O princípio da igualdade e as normas do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276 e do nº 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº
693/70:
O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição, exige se trate por igual o que for essencialmente igual e diferentemente o que diferente for. Não proíbe ao legislador que estabeleça distinções de tratamento; veda-lhe tão- só que o faça sem ter fundamento material para tanto. O que a ideia de igualdade não suporta é o arbítrio, a discriminação, as distinções irrazoáveis, porque carecidas de justificação racional.
Esta ideia de igualdade vale, naturalmente, no domínio da jurisdição, pois que também esta função do Estado se lhe encontra vinculada. Para além de deverem poder aceder ao tribunal em condições de igualdade (cf. artigo 20º, nº 1, da Constituição), as partes num processo cível devem ser colocadas 'em perfeita paridade de condições, disfrutando, portanto, idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida' (cf. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, I, Coimbra, 1956, pág. 365).
É o princípio da igualdade das partes no processo ou da igualdade de armas, cuja observância se impõe para que o processo seja um processo equitativo.
Segundo o recorrente, este princípio da igualdade das partes no processo é afrontado, porque o § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº
33.276 e, bem assim, o artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70 'consagrou um tratamento diferenciado e de privilégio para a Caixa, relativamente ao exequente, executado e demais credores'. Este tratamento de privilégio (se bem se interpretam as alegações do recorrente) consistiria no facto de o exequente, o executado e a generalidade dos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender deverem ser notificados apenas do 'despacho que ordena a venda e a sua modalidade' (e não também da data e do local dessa venda), ao passo que a Caixa, essa tem que sê-lo também destes últimos factos.
10.1. Pois bem: independentemente da questão de saber se o despacho judicial que, numa execução, ordene a venda dos bens penhorados cumpre a lei 'logo que determine a venda de tais e tais bens' e 'indique a respectiva modalidade', sem necessidade de mencionar a data, a hora e o local dessa venda (cf., neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16 de Junho de 1970, publicado na Revista dos Tribunais, ano 88º, pág. 350) ou se, pelo contrário, tal despacho tem que indicar também o dia, a hora e o local da venda, uma coisa é certa: a dimensão normativa do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276 e do nº 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70, que aqui está em causa, não tem a ver com essa questão.
Tais normas, na verdade, foram aplicadas no caso sub iudicio, tão-só enquanto nelas se determina que, se a Caixa for um dos credores a notificar da venda, o despacho que a ordenar (deva o seu conteúdo ser um ou outro dos apontados) tem que ser-lhe comunicado (notificado, diz o nº 3 do artigo 18º), não obstante dele se haver notificado o Ministério Público (no caso sub iudicio, recorda-se, não foi comunicado à Caixa o despacho que ordenou a venda).
Esta é, pois, a única dimensão normativa dos aludidos preceitos legais que aqui tem que ser avaliada à luz do princípio da igualdade das partes no processo.
Prosseguindo, então.
As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais. Apenas quando a notificação se destine a chamar a parte para a prática de acto pessoal é que - além de ser notificado o mandatário - se expede também pelo correio um aviso à própria parte
(cf. artigo 253º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Esta disciplina legal repousa na ideia (certa) de que, se, por exemplo, numa execução, o juiz ordena a venda dos bens penhorados em hasta pública, designando dia e hora para a respectiva praça, os mandatários do exequente, do executado e dos credores reclamantes de créditos com garantia sobre esses bens, ao serem dele notificados (nos termos das disposições conjugadas do artigo 882º, nº 2, e do artigo 253º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil), se apressarão a dar conhecimento do facto aos respectivos mandantes. A estes, com efeito, é que, em última análise, interessa saber que foi marcada a praça, e a lei está, naturalmente, empenhada em que os reais interessados nos processos saibam o que neles se passa.
É a esta luz e tendo em conta a importância que tem a marcação de uma praça em que vão ser vendidos, em hasta pública, bens que garantem créditos por si concedidos, que há-de ser lida a obrigação (imposta ao Ministério Público pelo artigo 4º, e seu § 1º, do citado Decreto-Lei nº 33.276) de comunicar à Caixa tal facto nos termos sobreditos.
Do que, na realidade, se trata é de impor ao Ministério Público que adopte para com a Caixa, cuja representação assumiu no processo, o comportamento que é comum o mandatário ter com o seu representado.
É esta uma cautela que se compreende, pois o Ministério Público, devendo, embora, assumir a representação da Caixa na execução (cf. artigo 156º, nº 1, do Regulamento da Caixa, aprovado pelo Decreto nº 694/70, de
31 de Dezembro), não se relaciona com ela com a mesma naturalidade e com a mesma facilidade com que um advogado se relaciona com o credor que o constituiu seu mandatário no processo. E, depois, esse encargo de representar a Caixa pode cessar em qualquer momento: basta que esta decida fazer-se representar por advogado (cf. citado artigo 156º, nº 4).
Este quadro de circunstâncias explica que a lei imponha ao juiz que, antes de mandar anunciar a abertura da praça, se assegure de que o Ministério Público comunicara à Caixa o despacho que ordenara a venda em hasta pública.
A norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, ao impor esse encargo ao juiz, consagra, é certo, uma solução especial para o credor Caixa Geral de Depósitos (diferente, por isso, do regime comum aplicável
à generalidade dos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a pracear).
Essa diferenciação de tratamento, privilegiando o credor Caixa Geral de Depósitos, não é, porém, irrazoável, nem arbitrária, pois tem fundamento material e não se vê que desequilibre a relação processual entre os credores ou entre o credor Caixa e o exequente ou o executado, por forma a dever concluir-se que o processo deixou de ser um processo equitativo (o arrematante, no momento de actuação do comando legal sob exame, ainda não interveio no processo).
Sendo isto assim, a norma do § 2º do artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.276, de 24 de Novembro de 1943, não viola o princípio da igualdade das partes na execução.
10.2. Quanto à norma do nº 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, também ela não viola o mencionado princípio da igualdade de armas.
Se a notificação de que aí se fala houver de ser feita pelo próprio tribunal da execução, acrescendo, assim, à comunicação que o artigo
4º do Decreto-Lei nº 33.276 manda o Ministério Público fazer - questão que o tribunal recorrido não teve necessidade de decidir, nem a este Tribunal cumpre resolver - então, o preceito legal (assim entendido) não foi aplicado no processo, pois o que sucedeu foi que o Ministério Público não comunicou à Caixa o despacho que ordenou a venda da fracção autónoma em hasta pública. E, nesse caso, está fora do objecto deste recurso a questão da sua constitucionalidade.
Se a disciplina processual contida no dito nº 3 do artigo 18º do Decreto-Lei nº 693/70 coincidir com a consagrada no artigo 4º do Decreto-Lei nº 33.726, a conclusão a extrair é a de que, não contendo - como se mostrou a propósito do artigo 4º - uma diferenciação de tratamento irrazoável nem arbitrária, que desequilibre a posição das partes no processo, em termos de este deixar de ser um processo equitativo, não viola ela o princípio da igualdade das partes.
10.3. O artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, de
31 de Dezembro, e o princípio da igualdade (continuação).
Resta analisar a questão da constitucionalidade da norma em causa, no ponto em que nela se dispõe que a falta de notificação a que se vem fazendo referência (ou seja, a falta de notificação à Caixa do despacho que ordenar a venda de bens que garantam créditos por si concedidos) 'importará a anulação da mesma venda'.
Nesta parte, a norma o que faz é fulminar com a anulabilidade a venda que não seja precedida de notificação à Caixa do despacho que a ordenou.
Entende a jurisprudência que a norma aqui em análise não contém disciplina processual, mas, antes, substantiva: assim decidiu o acórdão recorrido, seguindo na esteira do Supremo Tribunal de Justiça.
Escreveu-se, a propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Novembro de 1973, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 231, pág. 105, que 'a nulidade da venda, cominada na disposição legal citada [...] é uma nulidade de direito substantivo, e não uma simples nulidade de processo, e são-lhe aplicáveis as disposições do artigo 285º do Código Civil'.
Simplesmente, a venda de bens penhorados também fica sem efeito (diz o artigo 909º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil) 'se for anulado o acto da venda, nos termos do artigo 201º' - o que sucede, inter alia, se tiver havido 'omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva' que 'possa influir no exame ou na decisão da causa' (cf. citado artigo 201º, nº 1).
Ora, um acto (uma formalidade) que a lei prescreve, cuja omissão é susceptível de influir no resultado da praça, é, justamente, a falta de notificação a credor reconhecido (e graduado) do despacho que ordenou a venda dos bens penhorados em hasta pública, pois que, não sendo notificado, ele fica impedido de exercer poderes que a lei lhe reconhece para esse acto (cf. os artigos 899º e 906º do Código de Processo Civil).
Por isso - acentua-se -, a falta de notificação a credor reconhecido (e graduado) do despacho que ordenou a venda dos bens em hasta pública constitui nulidade (cf. nº 1 do artigo 201º) que acarreta a nulidade da praça (cf. nº 2 do mesmo artigo 201º) e, consequentemente, a nulidade da arrematação (da venda) que aí tenha lugar [cf. artigo 909º, nº 1, alínea c)].
Neste sentido, decidiu a Relação do Porto, no seu acórdão de 30 de Julho de 1965 (Jurisprudência das Relações, 4, 718), e bem assim o Supremo Tribunal de Justiça, nos seus acórdãos de 19 de Maio de 1977 e de 29 de Julho de 1986 (Boletim do Ministério da Justiça, nºs 267 e 359, páginas
113 e 657, respectivamente). Em sentido contrário, havia decidido a Relação de Lisboa, no seu acórdão de 17 de Março de 1967 (Jurisprudência das Relações, 2,
254).
No citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29 de Julho de 1986, decidiu-se ainda que a arguição da referida nulidade tem que fazer-se nos termos dos artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil. Escreveu-se em tal aresto:
Como dispõe o artigo 882º, nº 2, do Código de Processo Civil, o despacho que ordene a venda é notificado ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender. Ora, a omissão desta notificação constitui uma nulidade, nos termos do artigo
201º, nº 1, do Código de Processo Civil, pois a mesma, imposta expressamente pela lei, influi ou pode influir no exame e decisão da causa, dado não poder o executado reagir e acompanhar essa venda, defendendo os seus interesses legítimos, por todos os meios ao seu alcance, possíveis e legais. Não se trata, pois, de uma mera irregularidade, sem consequências, como nos parece evidente, pois no sentido que defendemos o acórdão deste Supremo, de 19 de Maio de 1977, Boletim, nº 267, pág. 112, em caso idêntico. E essa nulidade tem um regime temporal de arguição, como se vê do artigo 205º, nº 1. Se a parte está presente, pode argui-la no momento em que for cometida, enquanto o acto não terminar; se não está, pode argui-la a partir da sua intervenção em qualquer acto do processo ou da sua notificação de qualquer termo deste, mas, neste caso, só quando deva presumir-se que tomou conhecimento da nulidade ou dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.
E mais adiante:
E como se dispõe no artigo 201º, nº 2, do Código de Processo Civil quando um acto tenha de ser anulado, anular-se-ão também os termos subsequentes que dele dependam [...].
O Supremo Tribunal de Justiça ainda recentemente, no seu acórdão de 14 de Janeiro de 1993, reafirmou a doutrina de que a omissão da notificação do despacho que ordena a venda de bens penhorados constitui nulidade. Aí se precisou que tal nulidade só pode ser arguida pelo interessado na efectivação da notificação omitida (cf. Colectânea de Jurisprudência. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo 1, 1993, página 49).
Assim, pois, como - por força das disposições conjugadas dos artigos 909º, nº 1, alínea c), e 202º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil - a falta de notificação a qualquer credor hipotecário (reconhecido e graduado) do despacho que determinou que o imóvel penhorado fosse vendido em hasta pública acarreta a anulação da praça (e, assim, a da venda aí feita), a omissão de tal acto (ou formalidade) tem a mesma consequência que o artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, prescreve para o caso de o credor ser a Caixa e de aquele despacho não lhe ser notificado.
Neste aspecto, também não existe, por conseguinte, qualquer violação do princípio da igualdade.
O certo, no entanto, é que, como se viu - conformemente à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - o meio processual para obter a anulação da venda feita em hasta pública para a qual o credor hipotecário não foi notificado difere consoante esse credor seja a Caixa ou um outro qualquer. E, do mesmo passo, os prazos para exercer o respectivo direito também são diferentes num caso e noutro. Assim, tratando-se da Caixa, o meio processual adequado é a acção de anulação (rescisão), a propor nos termos e no prazo do artigo 287º do Código Civil (e não no dos artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil), uma vez que - disse-se já - se está perante uma
'nulidade de direito substantivo, e não de uma simples nulidade de processo'
(cf. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de Novembro de 1973, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 231, página 105). Quando, pelo contrário, estiver em causa outro qualquer credor, o meio processual adequado é a arguição de nulidade, a fazer no próprio processo de execução, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil, e nos prazos aí previstos (cf. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
29 de Julho de 1986).
A diferença mais relevante é, pois, a seguinte: a Caixa, para obter a anulação da venda, dispõe, em princípio, do prazo de um ano (cf. artigo 287º do Código Civil); qualquer outro credor hipotecário que não tenha assistido à praça apenas dispõe, em regra, do prazo de cinco dias contados da data da primeira notificação que, na execução, lhe for feita após a realização da praça (e, assim, da venda): cf. citados artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil.
Ora, não se descobre fundamento material para uma tal diferença de regimes - uma diferença que se traduz em dispor a Caixa de um prazo razoável para exercer o direito de fazer anular a venda, enquanto que os demais credores, a quem não se aplique esse regime, dispõem de um prazo curto para o efeito.
Trata-se, assim, de uma distinção de tratamento injustificada e, por isso mesmo, irrazoável e arbitrária, com desrespeito pelo princípio da igualdade.
Assim sendo, o artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº
693/70, de 31 de Dezembro, interpretado (como foi no caso sub iudicio) no sentido de que a Caixa pode fazer valer em juízo a nulidade aí prevista em prazos diferentes dos dos artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil
(designadamente, no prazo previsto no artigo 287º do Código Civil) viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos:
(a). julga-se inconstitucional - por violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa - o artigo 18º, nº 3, do Decreto-Lei nº 693/70, de 31 de Dezembro, quando interpretado no sentido de que a Caixa pode fazer valer em juízo a nulidade aí prevista em prazos diferentes dos artigos 153º e 205º do Código de Processo Civil.
(b). em consequência, concede-se provimento ao recurso e revoga-se o acórdão recorrido, que deve ser reformado em conformidade com o aqui decidido quanto à questão de inconstitucionalidade.
Lisboa, 26 de Outubro de 1994
Messias Bento Fernando Alves Correia Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito José Manuel Cardoso da Costa