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Proc. nº 201/93
1º Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No Tribunal de Instrução Criminal do Porto, o arguido A. foi pronunciado como autor de um crime previsto e punido pelos artigos 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro e
313º, nº 1 e 314º, alínea c) do Código Penal, porquanto, com data de 31 de Março de 1992, preencheu, assinou e entregou a favor de B. um cheque sobre o banco C., no valor de 2.057.669$00, que se destinava ao pagamento de carnes fornecidas por aquela empresa.
Apresentado a pagamento o respectivo cheque, foi o mesmo devolvido por falta de provisão em 3 de Abril de 1992, causando ao portador uma diminuição patrimonial pelo menos igual ao valor nele titulado.
O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo que não tinha fundos suficientes para o seu pagamento e que tal conduta era proibida e punida por lei.
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2 - O arguido, que no requerimento de abertura da instrução, havia suscitado a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo
11º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, veio então interpôr recurso daquele despacho para o Tribunal Constitucional, sob a invocação do disposto nos artigos 69º, alínea b), 70º, nºs 1 e 2, 75º, 75º-A, nº 4, 78º e 79º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 8/89, de 7 de Setembro.
Nas alegações depois produzidas o recorrente formulou um quadro de conclusões assim concebido:
'1 - A lei que define o crime deve também expressamente cominar a respectiva pena, atento o seu próprio espírito e razão de ser, pelo que, a remissão do corpo do nº 1, do art. 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, para as penas do crime de burla, mostra-se inconstitucional por violação do princípio constitucional básico em matéria de punição criminal - o princípio da legalidade - conf. nº 3, artigo 29º, C.R.P..
2 - O facto de o Decreto-Lei autorizado ter sido assinado por um Secretario de Estado Adjunto consubstancia uma inconstitucionalidade formal, quer por não estar justificada a substituição do Ministro, quer porque a assinatura do Ministro tem uma função específica, que é a de garantir a colegialidade governamental e salvaguardar a autonomia e responsabilidade de cada Ministro - conf. nº 3, art. 204º, Constituição.
3 - O Decreto-Lei nº 454/91, foi promulgado, referendado e publicado, fora do prazo de duração da respectiva autorização legislativa e depois do termo da V Legislatura da Assembleia da República, sendo que, havia já então caducado a autorização concedida, que tem a sua razão de ser, para além do mais, no facto de o Governo ser autorizado por uma determinada Assembleia da República, com a composição que lhe é inerente e ser absolutamente justificável que todas as condições da própria existência do Decreto se verifiquem dentro do prazo e da legislatura - conf. nº 4, art. 168º, Constituição;
4 - A reserva da competência legislativa da Assembleia da República relativa à 'definição de crimes' (art. 168º, nº 1, al. c), da Constituição) abrange quer a definição de novos tipos de crimes, quer a modificação, degradação ou eliminação de tipos existentes;
5 - No nº 1, do artigo 3º, da Lei nº 30/91, de 20 de Julho, a Assembleia da República define como sentido da autorização legislativa concedida ao Governo para definir as condutas integradoras do crime de emissão de cheque sem provisão, uma diferenciação consistente em exigir a verificação do requisito da produção do prejuízo patrimonial a outrem para a incriminação da conduta descrita na alínea c), e em não exigir a verificação desse requisito para a incriminação das condutas descritas nas alíneas a) e b);
6 - Ao estender a verificação deste requisito para a incriminação das condutas descritas nas correspondentes alíneas a) e b), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro - e, assim, ao não criminalizar tais condutas nos casos em que não ocorre a produção de prejuízo patrimonial para o tomador do cheque ou para terceiro -, o Governo desrespeitou o sentido da autorização legislativa que para o efeito lhe havia sido concedida;
7 - É, assim, inconstitucional (ou ilegal, consoante a qualificação que se prefira para o vício consistente em o Decreto-Lei autorizado, não extravasando o objecto da autorização legislativa, lhe desrespeitar o sentido), por violação do artigo 115º, nº 2, da Constituição, a norma constante do corpo e da alínea a), do nº 1, do artigo 11º, do Decreto-Lei nº 454/91, na parte em que exige a verificação da produção de prejuízo patrimonial para outrem para a incriminação da conduta prevista nessa alínea;
Por seu turno a recorrida B. na contra-alegação que veio trazer aos autos concluiu do modo seguinte:
1ª - O Decreto-Lei 454/91 não viola o princípio constitucional da legalidade das penas ao cominar certa conduta com uma pena prevista em norma preexistente na lei. Através de tal técnica legislativa não sofrem os cidadãos qualquer perda ou supressão de direitos, liberdades e garantias, pelo que não é merecedor de reparo o diploma em causa.
2ª - As competências ministeriais podem ser delegadas nos seus Secretários, sendo, aliás, tal prática corrente devido a razões de operacionalidade do executivo.
3ª - Muito embora alguns dos actos, concretamente a promulgação, referenda e publicação, tenham ocorrido após o decurso do prazo dentro do qual o Governo deveria legislar no uso da autorização legislativa, certo é que o diploma legal em questão foi aprovado dentro do prazo. No caso releva a aprovação, já que outros actos há que estão dependentes de factos puramente aleatórios.
4ª - O Decreto-Lei 454/91, de 28.12 não foi para além da autorização legislativa. Ainda que se entendesse que esta deve ser esgotada, isto é, não ficar o Governo aquém, sempre se dirá que a lei de autorização fala em crime de burla, de acordo com as circunstâncias, sinal de que ao executivo foi conferida alguma manobra para se mover.
Dada a simplicidade de que a resolução da presente causa se reveste, atenta a jurisprudência já definida a seu respeito pelo plenário do Tribunal, foram dispensados os vistos.
Cumpre apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
Como se pode alcançar dos desenvolvimentos precedentes, o objecto do presente recurso circunscreve-se à questão da constitucionalidade do artigo 11º, nº 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 454/91, de
26 de Dezembro, cuja formulação é a seguinte:
Artigo 11º
(Crime de emissão de cheque sem provisão)
1 - Será condenado nas penas previstas para o crime de burla, observando-se o regime geral de punição deste crime, quem, causando prejuízo patrimonial:
a) Emitir e entregar a outrem cheque de valor superior ao indicado no artigo 8º que não for integralmente pago por falta de provisão, verificada nos termos e prazos da Lei Uniforme Relativa ao Cheque.
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Ora, questão inteiramente coincidente com a que aqui se coloca, foi objecto de apreciação e julgamento deste Tribunal no Acórdão nº 349/93, Diário da República, II Série, de 3 de Agosto de 1993.
E tal acórdão, tirado com intervenção do plenário do Tribunal, ao abrigo do disposto no artigo 79º-A, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, aditado pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, decidiu no sentido de não julgar inconstitucional a norma cuja validade vem questionada.
Deste modo, tendo em atenção a jurisprudência definida naquele aresto, que por inteiro se perfilha, não importa já desenvolver qualquer outra argumentação, recebendo-se e dando-se aqui por reproduzidos os fundamentos que lhe serviram de suporte.
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III - A decisão
Nestes termos, com base no exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, consequentemente, o despacho recorrido.
Lisboa, 27 de Outubro de 1993
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa