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Proc. nº 597/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Em processo de contra-ordenação que correu termos na Câmara Municipal de Bragança, por decisão proferida pela competente autoridade administrativa, foi aplicada ao arguido A. coima no montante de
11.825$00, com base no facto de haver permitido que, em 19 de Outubro de 1991, um seu rebanho, composto por cem cabeças de gado lanígero, pernoitasse num barracão sito no interior da povoação de --------, freguesia de -----------, concelho de Bragança, no que era reincidente, integrando esta conduta a contra-ordenação prevista e punível pelo § único do artigo 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais, aprovada pela Assembleia Municipal de Bragança, em 2 de Novembro de 1989.
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2 - Desta decisão foi interposto recurso pelo acoimado para o Tribunal Judicial da comarca de Bragança, sustentando-se, além do mais, a inconstitucionalidade daquela norma, por violação de diversos princípios e preceitos constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Lei Básica.
Por sentença de 3 de Julho de 1992, o senhor juiz da comarca não concedeu atendimento à questão de inconstitucionalidade suscitada, alterando porém o montante da coima aplicada, que reduziu para
5.000$00, por não ter por verificada a situação de reincidência.
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3 - Recorreu então o arguido para o Tribunal Constitucional sob a invocação do disposto no artigo 280º, nºs 1 e 2 da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, com as alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro.
Nas alegações entretanto produzidas, formulou o seguinte quadro de conclusões:
a) O parágrafo único do artigo 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais do Município de Bragança, que fundamenta a aplicação da coima pela autoridade administrativa e o despacho que decidiu o recurso de impugnação judicial, que manteve a aplicação da mesma, é inconstitucional por violador do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição;
b) A mesma norma não se conforma ainda (ao restringir o exercício de direitos e ao coarctar os objectivos aí consagrados) com os artigos 2º, 9º alínea d), 47º, nº 1, 58º, nº 3, alínea b), 81º, alíneas a), b), c) e d) e 96º da Constituição;
c) São ainda violados, por inexistência de regulamentação da referida Postura Municipal, os princípios gerais de Direito da Segurança e Estabilidade Jurídicas, bem como as justas expectativas dos titulares de relações jurídicas validamente constituídas, por impossibilidade prática e efectiva de adaptação, com certeza e segurança, à nova realidade pretendida pela norma;
d) Sendo o parágrafo único do artigo 11º da já referida Postura Municipal inconstitucional, carece o mesmo de validade - vd artigo 3º, nº 3, da Constituição, que se repercute no despacho-decisão sub judice.
e) Deve ser concedido provimento ao recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com a decisão que se vier a proferir no presente recurso.
Por seu turno, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, na contralegação que veio a oferecer, concluiu do modo seguinte:
1º - A norma constante do § único do artigo 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais, vigente no município de Bragança, não viola o princípio constitucional da igualdade, nem qualquer outro preceito ou princípio constitucional, não sendo arbitrária ou desrazoável a concreta proibição nela estabelecida;
2º - Deverá, pois, negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Passados que foram os vistos legais, cabe agora apreciar e decidir a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente durante o processo e agora posta nas suas alegações.
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II - A fundamentação
1 - A Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais já referida, logo no artigo 1º proíbe na área do município de Bragança 'a apascentação e divagação de animais de qualquer espécie, incluindo aves de capoeira, em terrenos municipais e paroquiais, ruas, lugares e logradouros públicos ou comuns e, bem assim, em propriedades particulares, sem licença, por escrito, das respectivas Entidades Administrativas ou dos respectivos proprietários'.
E no artigo 9º, a propósito da divagação de animais, desenvolve e concretiza o alcance desta proibição, prescrevendo que
'nas ruas públicas e demais lugares ou logradouros públicos da cidade e das povoações do Município, é proibida a divagação de quaisquer espécies de animais, quando não atrelados ou conduzidos por pessoas e, bem assim, a divagação de aves de capoeira'.
Aquele regulamento municipal, trata depois no artigo 11º do estacionamento de diversas espécies de gado, dispondo que 'na cidade de Bragança, é proibido o estacionamento de gado ovino, caprino, bovino, cavalar, muar, asinino e suíno, fora do lugar destinado ao campo da feira ou dos locais ou parques de estacionamento a eles destinado, salvo para carga e descarga'.
E a seguir, no § único deste preceito, reporta-se à estabulação ou pernoita de gado lanígero ou caprino, dentro das povoações, dispondo assim:
'§ único - É expressamente proibida a estabulação ou pernoita de gado lanígero ou caprino, dentro das povoações, sob pena de ser aplicada ao transgressor a coima de 5.000$00 a 25.000$00'.
Em conformidade com a prescrição contida no artigo
12º as coimas previstas neste postura serão elevadas de um terço por cada reincidência verificada, respondendo pelo seu pagamento, solidariamente, os pastores e os donos dos animais.
Face a este quadro normativo, em especial ao texto do § único do artigo 11º, sustenta o recorrente que este preceito estabelece
'diferenciações de tratamento irrazoáveis, porque carecidas de fundamento ou justificação material bastante'.
Segundo o seu entendimento, 'é do conhecimento comum e portanto facto notório que outras espécies de gado - para além do ovino e caprino - e animais domésticos podem pôr, e por vezes põem efectivamente em risco a higiene e saúde públicas, logo a qualidade de vida das populações. Não se compreende ou aceita, portanto, a restrição legal àquelas duas categorias de gado, discriminando assim, sem razão válida e lógica os criadoras de diversas espécies de animais. Tendo em conta, enfatize-se, a razão de ser e finalidade do parágrafo único do artigo 11º da Postura, aliás aceites na própria sentença, em que critérios se louvou o legislador?
Escolheu, de forma discricionária - e nenhuma justificação apresenta que fundamente essa escolha como não discricionária - dentre um grupo de realidades geradoras de situações essencialmente iguais, dois deles . Escolheu ovelhas e cabras, como poderia ter escolhido vacas e porcos, burros e aves de capoeira...'.
Será defensável esta visão das coisas?
Vejamos.
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2 - Em conformidade com a jurisprudência pacífica e uniforme do Tribunal Constitucional, suportada aliás em posições doutrinais generalizadas, o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeçam o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações da vida que as disposições normativas visam regular.
A este respeito, escreveu-se no Acórdão nº 188/90, Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1990, o que agora se repete:
'o princípio da igualdade entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções.
Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot)'.
O legislador não pode introduzir diferenciações na estatuição sobre 'facti species' essencialmente idênticas, isto é, o princípio da igualdade proíbe o legislador de tratar desigualmente aquilo que é essencialmente igual e de tratar igualmente aquilo que é essencialmente desigual.
Um dos principais problemas metodológicos que se colocam a propósito da aplicação do princípio respeita ao exacto significado do que seja 'essencialmente igual' ou 'essencialmente desigual'.
A determinação da igualdade das situações requer a prévia definição do aspecto que, retirado do todo, permite o estabelecimento da igualdade. Visto que a igualdade é um conceito relativo, ela remete-nos desde logo para a caracterização do plano em que a igualdade se determina. A igualdade
é o fruto da existência de um elemento relacionador de duas situações. O juízo de igualdade pressupõe a consciência desse elemento (cfr., neste sentido, Maria da Glória Ferreira Pinto, princípio da Igualdade: Fórmula Vazia ou Fórmula
`Carregada' de Sentido?, separata do Boletim do Ministério da Justiça, nº 358, pp. 21 a 23).
Não existe um método comprovado de confirmação da existência ou falta de fundamento material para se poder afirmar a desigualdade de tratamento, havendo para tanto de se apelar à 'evidência' de certos elementos materiais e à 'plausibilidade' de determinadas valorações.
O legislador dispõe de uma ampla discricionariedade ou espaço de conformação para a estatuição de disciplinas desiguais, apresentando-se o controlo jurisdicional da inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade como um controlo negativo, no sentido de que incide apenas sobre os casos em que manifestamente aquela liberdade conformadora foi usada para além dos limites admissíveis.
Não se trata de saber se as normas suspeitas de inconstitucionalidade estabelecem tratamentos suficientes ou convenientemente iguais para situações comparáveis, mas sim de detectar aqueles casos em que a desigualdade foi longe de mais por desrespeitar imperativos evidentes de racionalidade. O arbítrio reside precisamente na falta de justificação racional da desigualdade de disciplinas normativas.
À luz dos princípios esquematicamente expostos, cabe agora averiguar se a norma que vem questionada não dispõe, como sustenta o recorrente, de 'qualquer justificação razoável, de acordo com critérios de valor objectivos, constitucionalmente relevantes.
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3 - Muito embora a postura a que se reportam os autos não disponha de exposição preambular justificativa das medidas e opções que nela se contêm, parece poder afirmar-se que a proibição de estabulação e pernoita de gado lanígero e caprino dentro das povoações estabelecida na norma do § único do artigo 11º, se filiou em razões de higiene e de salubridade pública intimamente relacionadas com a defesa e preservação da qualidade de vida das populações, às quais é reconhecido o direito a 'um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado' (artigo 66º, nº 1, da Constituição).
Ora, tendo em atenção os moldes em que na região transmontana onde se situa o concelho de Bragança, se exerce a criação de gado caprino e ovino - grandes rebanhos, muitas vezes sem zonas de pastagem certas e permanentes, obrigados a deslocações diárias em regime de pastorícia tradicional
- parece fácil apontar as razões que, em nome da defesa da higiene e da salubridade pública, terão conduzido à proibição da estabulação e pernoita deste gado dentro das povoações.
Com efeito, a estabulação e deambulação diárias de grandes rebanhos de cabras e ovelhas - no caso em apreço o rebanho do recorrente era constituído por cem cabeças de gado lanígero - não só durante a sua permanência nos locais de abrigo e recolha, mas particularmente na sua partida dos lugares de pernoita e na sua chegada das pastagens e nos trajectos para tanto percorridos dentro das povoações, não pode deixar de acarretar um particular tipo de poluição ambiental, traduzido na libertação de maus cheiros, na conspurcação das ruas e na ocupação maciça dos espaços por onde os rebanhos transitam.
E na área do concelho de Bragança, por força do tipo de actividades agro-pecuárias que ali são prevalecentes, aquele tipo de consequências, negativas para a qualidade de vida das populações, não assume, quanto às restantes espécies de animais a que a postura se reporta - gado bovino, cavalar, muar, asinino e suíno e aves de capoeira - um idêntico grau de lesão, o que resulta não só do menor número de animais destas espécies, como também das especificidades e exigências próprias que são postas pela sua criação a alimentação.
Com efeito, o gado bovino, cavalar, muar, asinino e suíno não é criado em manadas, nem assim transita pelas ruas, o mesmo se podendo dizer das aves de capoeira.
E por outro lado, as exigências da sua criação e alimentação não impõem, como sucede no caso do gado ovino e caprino, um quase obrigatório trânsito diário pelo interior dos povoados a caminho dos locais de pastagem.
Esta diversidade de situações apresenta-se como fundamento material, razoável e objectivo, legitimador da diferenciação de tratamento estabelecida na norma em causa entre o gado lanígero e caprino e as restantes espécies de animais.
A proibição de pernoita dentro das povoações imposta ao gado ovino e caprino, traduzindo embora uma medida de discriminação, assume-se como diferenciação legítima por se basear numa distinção objectiva de situações e se apresentar como materialmente fundada, não arbitrária, nem desrazoável.
A norma que vem questionada não viola assim o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
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4 - A recorrente sustenta ainda nas suas alegações que aquela norma viola também o disposto nos artigos 2º, 47º, nº 1, 58º, nº 3, alínea b), § 1º, alíneas a), b), c) e d) e 96º, todos da Constituição.
A argumentação a este respeito aduzida é de todo improcedente.
Afastada a pretensa violação do princípio da igualdade não tem qualquer sentido fazer-se apelo ao estado de direito democrático e à complexa componente conceitual que o integra.
O mesmo se pode dizer a respeito do disposto no artigo 47º, nº 1, do texto constitucional onde se consagra a liberdade de escolha de profissão.
Parece evidente que a proibição de pernoita e estabulação do gado lanígero e caprino dentro das povoações, não põe em causa o direito daqueles que pretendam (nomeadamente os pastores ou criadores desse gado) escolher livremente uma profissão ou um género de trabalho que se exerça na área deste enquadramento pecuário. É inteiramente ilegítimo considerar aquela imposição como uma medida de restrição ao acesso ou exercício de tais actividades profissionais.
De igual modo, não faz sentido convocar-se, a propósito da questão em apreço a norma do artigo 58º, nº 3, alínea b) da Constituição, segundo a qual, incumbe ao Estado, através da aplicação de planos de política económica e social, garantir o direito ao trabalho, assegurando 'a igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho e condições para que não seja vedado ou limitado, em função do sexo, o acesso a quaisquer cargos, trabalho ou categorias profissionais'.
Esta norma visa combater a desigualdade social de condições de acesso profissional e, em particular, eliminar na prática a tradicional desigualdade de oportunidades para as mulheres. Trata-se de dar conteúdo efectivo a uma das componentes da liberdade de escolha de profissão e, por via dela, ao direito ao trabalho (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª. ed. revista, p. 316).
Também aqui não se reconhece a existência de qualquer violação constitucional.
E o mesmo se há-de afirmar a propósito das normas dos artigos 81º e 96º da Constituição na qual se consagram, respectivamente, as incumbências prioritárias do Estado no âmbito económico e social e os objectivos da política agrícola, e cujo sentido e alcance se apresentam de todo alheios à questão de constitucionalidade posta nos presentes autos.
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5 - Mas, não obstante tudo o exposto, importa ainda confrontar a postura municipal sob exame com o artigo 115º, nº 7, da Constituição.
Este preceito contém a seguinte estatuição:
'7 -Os regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'
Resulta deste normativo constitucional que os regulamentos em que se contenham normas regulamentares externas, hão-de indicar, expressamente, a lei que visam regulamentar ou que define a competência subjectiva e objectiva para a sua edição.
Ao impor o dever de citação da lei habilitante, a Constituição visa garantir que a subordinação do regulamento à lei e, deste modo, a precedência da lei relativamente a toda a actividade administrativa, seja explícita.
Segundo Gomes Canotilho, com aquela norma pretende alcançar-se '(1) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; (2) dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta disciplina é, em princípio (...), extensiva a todas as espécies de regulamentos, incluindo os chamados regulamentos independentes (cfr. art. 115º/6 e 7), isto é, aqueles cuja lei se limita a definir a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão' (Direito Constitucional, 5ª ed.,
1991, pp. 924 e ss.).
Ora, isto vale para todos os regulamentos que contenham normas regulamentares externas.
Os regulamentos que não respeitem a imposição contida naquela norma, hão-de ter-se por inconstitucionais, como tem sido, de forma reiterada e uniforme, assinalado pela jurisprudência deste Tribunal (cfr. por todos os Acordãos nº. 63/88 e 268/88, Diário da República, II série, de, respectivamente, 10 de Maio e 21 de Dezembro de 1988).
Ora, considerando que a Postura Municipal sobre Apascentação e Divagacão de Animais aqui em causa, não cita a lei ao abrigo da qual foi editada, há-de concluir-se no sentido da sua inconstitucionalidade, por afronta ao disposto no artigo 115º, nº 7 da Constituição.
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III - A decisão
Nestes termos decide-se:
a) Julgar inconstitucional a norma constante do § único do artigo
11º da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais
(aprovada pela assembleia municipal em 2 de Novembro de 1989, e publicitada por edital de 17 de Janeiro de 1990) na parte em que proíbe a pernoita de gado lanígero dentro das povoações, por violação do artigo 115º, nº 7, da Constituição.
b) Conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte impugnada.
Lisboa, 22 de Março de 1994
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
José Manuel Cardoso da Costa