Imprimir acórdão
Proc. nº 384/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e B., com os sinais dos autos, arguidos em processo crime pela prática de um crime de extorsão de depoimento, reclamaram para o Presidente da Relação de Lisboa do despacho do Sr. Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal que não admitiu recurso por eles interposto do despacho de pronúncia.
Na sua reclamação, reafirmaram a tese antes sustentada de que o nº 1 do art. 310º do Código de Processo Penal de 1987 se achava afectado de inconstitucionalidade, por violação do art. 32º da Lei Fundamental, conjugado com os arts. 1º, 2º, 8º, 13º e 16º do mesmo diploma, considerando também que os arts. 406º, 407º e 408º do mesmo Código de Processo Penal se achavam afectados de inconstitucionalidade material. Em sua opinião seria inadmissível, do ponto de vista constitucional, que o art. 310º referido abrisse a possibilidade ao Ministério Público do recurso do despacho de não pronúncia, do mesmo passo que vedava o recurso quando a decisão instrutória fosse conforme à acusação pública. Ocorreria, assim, uma violação do princípio da «igualdade de armas» em processo penal, afastando-se o Código de Processo Penal da directriz constante da lei de autorização legislativa (art. 2º, nºs 1 e
2, al. 3, da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro)
A reclamação foi indeferida por despacho do Sr. Presidente da Relação de Lisboa, proferido em 18 de Maio de 1992. Pode ler-se nesse despacho:
'É geral o entendimento segundo o qual podem existir restrições à recorribilidade. Isto decorre do art. 399º do CPP, e julgo que ninguém se lembrou de dizer que este artigo é inconstitucional.
O que seria inconstitucional e inaceitável seria a irrecorribilidade da sentença condenatória (cfr. nº 5 do art. 14 do Pacto Internacional sobre os direitos civis e políticos, aprovado pela lei 29/78, de
12.6; art. 8º da Constituição).
Ora, pronúncia não é sentença ou decisão final.
Por outro lado, a palavra «todas», reportada a
«garantias de defesa», que aparece no nº 1 do art. 32 da Constituição, tem de ter uma interpretação razoável e assumida pela lei, sob pena, quando assim não fosse, de se cair em inseguro e ilimitado subjectivismo.
Aliás, as «garantias de defesa», nos termos constitucionais, reportam-se ao «processo penal», enquanto tramitação global e complexa, e não, específica e directamente, a cada acto processual.
Caso contrário, toda e qualquer decisão seria, pelo menos, recorrível, e lá cairíamos na inconstitucionalidade, pura e simplesmente, da 2ª parte do art. 399 do CPP, que nem sequer está questionada.
Como é sabido, a orientação motivadora, a causa final, do art. 310 nº 1 do CPP está numa intenção de celeridade que subjaz a todo esse diploma, tida por conveniente à Justiça penal (cfr. Cons. Maia Gonçalves, 'Anotado', 3ª ed., pág. 433).
E não há ofensa ao princípio da igualdade, por isso que a aplicação deste princípio pressupõe, exactamente, o mesmo condicionalismo.
Portanto, tal princípio seria ofendido, então sim, se o art. 310º nº 1 do CPP permitisse recurso do despacho de pronúncia a uns sujeitos processuais, e não a outros.
E não é o caso.
Aliás, o nº 2 do art. 310º do CPP, em conjugação com o art. 309º do mesmo Código, não deixa de viabilizar uma certa margem de impugnabilidade.
Outrossim e decisivamente, o nº 1 do art. 310 do CPP decorre, em linha directa, da alínea 53 do nº 2 do art. 2 da lei 43/86, de 26 Set. (autorização legislativa)'. (a fls. 28 vº -29)
Inconformados com este despacho, dele interpuseram os reclamantes recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº
1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Este recurso foi admitido por despacho de fls. 43.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Foram apresentadas alegações pelos recorrentes e pelo Ministério Público.
Os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões, na respectiva alegação:
'I - O art. 310º nº 1 do CPP é inconstitucional por vedar aos arguidos a possibilidade de recorrer do despacho de pronúncia.
II - Esta norma viola os arts. 1º, 2º, 8º, 13º, 16º, e 32º da Constituição e, bem assim, o art. 2º, nº 2, 3) da Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, e esta última precipita, do mesmo modo, a violação do art. 168º, nº 1, c), e 2, da Lei Fundamental, porquanto posterga o princípio da igualdade de «armas» em processo penal entre a acusação e a defesa e potencia a injustificada submissão a julgamento dos arguidos o que, no fundo, contende com os princípios fundamentais da dignidade humana, o bom nome e a paz jurídica a que têm direito'. (a fls.
58-59 dos autos)
Por seu turno, o Representante do Ministério Público concluiu assim as suas contralegações:
'1º A irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal) não ofende o princípio constitucional da igualdade de armas, nem as garantias do processo criminal, emergentes do disposto nos artigos
13º e 32º da Constituição.
2º Deve, pois, negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se inteiramente a decisão recorrida'. (a fls. 71)
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar e conhecer do objecto do recurso, por não se verificar qualquer obstáculo a tal conhecimento.
II
4. Constitui objecto do presente recurso a questão da alegada inconstitucionalidade do nº 1 do art. 310º do Código de Processo Penal de 1987.
A Lei nº 43/86, de 26 de Setembro, concedeu autorização ao Governo para aprovar um novo Código de processo Penal e revogar a legislação vigente sobre essa matéria.
O art. 2º fixou o sentido e extensão dessa autorização legislativa. Dispôs-se no nº 1 desse art. 2º que o Código a elaborar deveria observar 'os princípios constitucionais e as normas constantes de instrumentos internacionais relativos aos direitos da pessoa humana e ao processo penal a que Portugal se encontra vinculado'.
O art. 2º, nº 2, desta lei de autorização estabeleceu o sentido e extensão da mesma autorização legislativa. Transcrevem-se as alíneas invocadas pelos recorrentes e pelo despacho recorrido:
'2 - A autorização referida no artigo anterior tem o seguinte sentido e extensão:
1) Construção de um sistema processual que permita alcançar, na máxima medida possível e no mais curto prazo, as finalidades de realização da justiça, de preservação dos direitos fundamentais das pessoas e de paz social;
2) Simplificação, desburocratização e aceleração da tramitação processual compatíveis com a realização das finalidades assinaladas, evitando-se todavia a criação de novos formalismos;
3) Parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os actos do processo e incrementação da igualdade material de «armas» no processo;
---------------------------------------------
53) Irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, confinando-se a sindicabilidade da mesma ao próprio julgamento.'
No uso da autorização legislativa, o Governo preparou o Código de Processo Penal, o qual foi aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro.
No título III do Livro VI da Parte II deste Código é regulada a fase processual da instrução, a qual visa 'a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento' (art. 286º, nº 1). Trata-se de uma fase de carácter facultativo no processo comum, não podendo ter lugar nas formas especiais.
No final desta fase, é proferida a decisão instrutória, através da qual o arguido é pronunciado ou não pronunciado, consoante hajam sido ou não 'recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança' (art. 308º, nº 1).
Da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público não há recurso, determinando
'a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento' (art.
310º, nº 1). É, porém, recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo 309º (art. 310º, nº 2). Tal solução afasta-se do disposto no art. 371º do Código de Processo Penal de 1929 visto que este artigo previa recurso do despacho de pronúncia ou de não-pronúncia.
Pode haver recurso do despacho de não pronúncia
(arts. 399º, 400º, alínea b), do mesmo diploma; cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 5ª ed., Coimbra, 1992, págs. 452-453).
5. Basta atentar nas alíneas transcritas do nº 2 do art. 2º da lei de autorização legislativa para concluir, sem margem para dúvidas, que o nº 1 do art. 310º do Código de Processo Penal de 1987 não está afectado por inconstitucionalidade orgânica no segmento aplicado, uma vez que a mesma lei de autorização legislativa previu a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação, confinando-se a sindicabilidade da decisão instrutória ao próprio julgamento. Razão teve, pois, o Senhor Presidente da Relação de Lisboa em chamar à colação a norma da alínea 53 do nº 2 do art. 2º da Lei nº 43/86, sendo, por isso, dificilmente perceptível qual a razão por que os recorrentes continuam a insistir nesse vício de inconstitucionalidade, sobrevalorizando a intensidade conformadora do acolhimento do princípio da igualdade de armas no processo penal, em detrimento de solução expressamente prevista em alínea própria da lei delegante. (Só poderá duvidar-se da constitucionalidade da restrição constante da primeira parte do nº 1 do art. 310º, uma vez que a lei de autorização não distingue entre a acusação do Ministério Público e a do assistente - cfr. Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Lisboa, 1990, pág. 377, nota (1). A questão não releva para o caso sub judicio).
6. Resta, pois, averiguar se o nº 1 do art. 310º do Código de Processo Penal novo viola os arts. 1º, 2º, 8º, 13º, 16º, e 32º da Constituição, como pretendem os recorrentes.
Desde já se adianta que a norma impugnada não sofre de vício de inconstitucionalidade.
Vejamos, pois, as razões de tal afirmação.
7. A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
É certo que a Constituição garante a todos 'o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos' (art.
20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa' (art. 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto as decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes
à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se nesse sentido o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º volume, pág. 235), a verdade é que, como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo Tribunal, 'se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido.' E, mais à frente, lê-se no mesmo aresto:
'Ora, a salvaguarda desse direito de defesa impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória, como se determina, aliás, de forma expressa no nº 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho:
«Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei»; como imporá, também, que a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Mas já não impõe que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz'. (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol. págs. 467-468; no mesmo sentido, veja-se o Acórdão nº 178/88, in Acórdãos, vol. 12º, págs. 569 e seguintes).
Relativamente ao art. 390º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1929 (na redacção do Decreto-Lei nº 377/77, de 6 de Setembro)
- o qual só admitia recurso para o Tribunal da Relação do despacho de designação de dia para julgamento em processo correcional, quando se tratasse de crime doloso e o Ministério Público não tivesse deduzido acusação - teve ocasião o Tribunal Constitucional, em quatro acórdãos proferidos entre 1987 e 1992, de considerar que tal solução não violava a Constituição, visto que não podia entender-se que o legislador estivesse constitucionalmente adstrito a consagrar a garantia de recurso jurisdicional quanto a todos os despachos proferidos em processo penal (Acórdãos nºs 31/87, 118/90, 332/91 e 189/92, o primeiro já citado, achando-se o segundo publicado no Diário da República, II Série, nº 204, de 4 de Setembro de 1990 e no Boletim do Ministério da Justiça, nº 396, pág.
123, e estando os dois últimos ainda inéditos).
É manifesta a semelhança entre a norma indicada do antigo Código de Processo Penal quanto ao processo correccional e a norma que constitui objecto do presente recurso, que é aplicável a todo o processo comum.
Como põe em destaque o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, existem outras espécies jurisprudenciais do Tribunal Constitucional que acolhem semelhante orientação:
'Neste sentido, não têm sido consideradas inconstitucionais certas limitações ao aludido direito de recurso, designadamente em situações dotadas de manifesto paralelismo com a hipótese discutida nos autos; assim:
[...]
- não foi considerado inconstitucional o nº 6 do artigo 646º, também do Código de Processo Penal [de 1929] na parte em que não admitia recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos das Relações proferidos sobre recursos interpostos em processo correccional que, não sendo condenatórios, não houvessem posto termo ao processo (Acórdãos nºs 178/88 e 132/92);
- não foi julgado inconstitucional o artigo 7º do Decreto-Lei nº 14/84, de 11 de Janeiro, que aboliu o recurso do despacho que recebe a acusação por crime de emissão de cheque sem provisão (Acórdão nº 259/88);
- não foi considerada inconstitucional a norma dos artigos 647º, § 4º, e 371º
(corpo) do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que limita o direito de recurso do despacho de pronúncia às situações em que o arguido esteja preso ou caucionado, sendo certo que as cauções sempre poderiam ser dispensadas nos termos da lei (Acórdão nº 353/91)'. (a fls. 65 dos autos; na jurisprudência mais recente, veja-se o acórdão nº 321/93, ainda inédito, que não julgou inconstitucional a norma do art. 127º do Decreto-Lei nº 783/76, de 29 de Outubro).
8. Nas suas alegações, os recorrentes sustentam que o preceito do art. 310º, nº 1, do Código Penal de 1987 não acolhe o princípio da igualdade de armas entre a acusação e a defesa, mostrando-se violados os nºs 1, 2 e 5 do art. 32º da Constituição. Em sua opinião, o novo diploma legal afasta uma das importantes garantias de defesa que se achava consagrada, quanto ao processo de querela, no art. 371º do Código de Processo Penal precedente, potenciando tal medida, 'a submissão injustificada do cidadão a julgamento o que, no fundo, contende com os seus direitos fundamentais ao bom nome e paz jurídica, o que, convenhamos, não é próprio de um Estado que se reclama do Direito e defensor da dignidade humana'. (a fls. 48).
Não têm, porém, razão os arguidos.
A submissão a julgamento dos arguidos pronunciados não afecta de forma intolerável o direito ao bom nome e à paz jurídica uma vez que se presumem inocentes os arguidos 'até ao trânsito em julgado de sentença de condenação' (art. 32º, nº 2, da Constituição). Por outro lado, ao suprimir um recurso com subida imediata de um despacho interlocutório - solução considerada um dos factores responsáveis pelo crónico atraso no julgamento dos processos crimes quando era, ou ainda é, aplicável o velho Código - visou o legislador dar execução à norma constitucional que impõe que o julgamento penal deva ocorrer no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32º, nº
2, in fine, da Constituição). Confessadamente, com as inovações introduzidas em matéria de recursos, visou o legislador de 1987 obter um duplo efeito:
'potenciar a economia processual numa óptica de celeridade e de eficiência e, ao mesmo tempo, emprestar efectividade à garantia contida num duplo grau de jurisdição autêntico' (preâmbulo do Decreto-Lei nº 78/87, III, 7, c)).
Como nota o representante do Ministério Público nas suas alegações, os recorrentes sustentam uma posição quanto à invocada violação do princípio de igualdade de armas que não pode ser acolhida:
'(...) deixando-se arrastar pela aparente simetria formal entre os despachos de pronúncia e de não pronúncia, esquecem os recorrentes que, do ponto de vista da tramitação processual, eles revestem naturezas estruturalmente diversas: na realidade, a decisão instrutória que contenha um despacho de não pronúncia é uma decisão final, que põe termo ao processo; pelo contrário, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação é um despacho interlocutório, determinando o prosseguimento da causa, através da «remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento» (artigo 310º, nº 1 do Código de Processo Penal).
É, pois, por demais óbvio que a problemática de uma ou outra daquelas decisões se assume como estruturalmente diversa: no primeiro caso, trata-se de saber em que termos se deve eventualmente denegar às partes ou sujeitos processuais a faculdade de impugnarem a decisão final, que encerra o processo; no segundo caso, em que termos é que objectivos de celeridade no andamento da causa deverão obstar ao recurso de uma decisão interlocutória, de carácter meramente instrumental, sendo certo que a preclusão derivada da limitação do direito de recurso não impede que ulteriormente se venha a questionar a decisão final de mérito - o facto de o arguido não poder impugnar o juízo indiciário constante da pronúncia, naturalmente que lhe não veda a faculdade de contraditar o ulterior juízo de certeza constante da sentença condenatória...' (a fls. 66-67)
Tem-se por inteiramente correcta a verificação constante do passo acima transcrito. Não existindo uma simetria real entre o despacho de pronúncia e de não pronúncia, não pode dizer-se que ocorre uma violação do art. 32º, nº 1, da Constituição, nem a violação do princípio de igualdade de armas, a admitir que o mesmo tem consagração constitucional (sobre este princípio, veja-se o Acórdão nº 132/92, in Diário da República, II Série, nº 169, de 24 de Julho de 1992; J. Figueiredo Dias, Sobre os Sujeitos Processuais no novo Código de Processo Penal, O Novo Código de Processo Penal, ob. col., Coimbra, 1988, págs. 29-30). Não se duvida que o legislador pudesse admitir a regra da recorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (como sucedia, quanto ao processo de querela, com o art. 371º do Código antecedente). Mas a opção de eliminação de tal recurso tem credencial constitucional nos nºs 1 e 2 do art. 32º da Constituição, nomeadamente na garantia de celeridade do processo criminal, não podendo falar-se de uma opção arbitrária ou materialmente infundada.
Daí que se conclua que não viola o art. 310º, nº 1, do Código de 1987 os arts. 1º, 2º, 8º, 16º e 32º da Constituição. Quanto aos arts. 1º e 2º da Constituição, dificilmente se vê como poderiam os mesmos ser violados pela norma impugnada, atendendo ao seu carácter de grande generalidade, o qual se acha densificado, no domínio do processo penal, pelo art. 32º da Lei Fundamental. E quanto ao art. 8º nada se alega de que possa concluir-se ter ocorrido uma violação directa ou indirecta dessa norma, uma vez que se não conhece nenhuma convenção internacional de que Portugal seja parte que obrigue a consagrar o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões interlocutórias em processo penal. Tão-pouco tem também sentido falar de uma violação do art.
16º da Constituição.
9. Os recorrentes sustentam que a norma impugnada viola ainda o princípio constitucional da igualdade, ao admitir que o despacho instrutório possa ser impugnado em certos casos, por certos sujeitos processuais, e não possa ser impugnado em outros casos pelo arguido.
Mas o que se deixou dito, permite repudiar que ocorra a pretendida violação do princípio de igualdade. É que, como se referiu, não existe uma simetria real entre o despacho de pronúncia e o despacho de não-pronúncia. Ora, o princípio de igualdade só impõe que devam ser tratados de forma igual casos iguais.
Como põe em relevo a entidade recorrida nas suas alegações, o acórdão nº 189/92 do Tribunal Constitucional afrontou a invocada violação do princípio da igualdade pelo segundo inciso do nº 2 do art. 390º do Código de Processo Penal de 1929, respondendo a tal invocação do seguinte modo:
'Pode já antecipar-se que a não recorribilidade do despacho de pronúncia por parte do arguido, quando confrontada com a recorribilidade do despacho de não pronúncia por parte do Ministério Público, não traduz a consagração de soluções diferentes para situações substancialmente idênticas, não envolvendo por isso violação do princípio da igualdade. [...]
Na situação em apreço há-de dizer-se que, em duplo grau, são dissemelhantes as condições que caracterizam a não recorribilidade do despacho de pronúncia pelo arguido e a recorribilidade do despacho de não pronúncia pelo Ministério Público.
Por um lado, a natureza destes despachos é diversa, como diversas são as consequências processuais que deles derivam:
1) O despacho de pronúncia representa um momento intermédio do processo, através do qual a acusação é sancionada garantisticamente pelo juiz em ordem a possibilitar a sujeição do arguido a julgamento;
2) O despacho de não pronúncia, ao contrário, traduz a rejeição da acusação e consequencia o arquivamento do processo [...]
Por outro lado, pese embora o facto de o posicionamento do arguido num processo de tipo acusatório dever revestir uma situação de reciprocidade dialéctica face à acusação, o certo é que não pode inteiramente ignorar-se a especial postura do Ministério Público enquanto exerce a acção penal e defende a legalidade democrática, surpreendendo-se aí uma perspectiva complexa de funções que lhe compete assegurar.
Há-de assim dizer-se que as situações representadas no recurso do despacho de pronúncia pelo arguido (e na relativa limitação que lhe é imposta por lei) e no recurso do despacho de não-pronúncia pelo Ministério Público, não traduzem o verso e o reverso de uma mesma realidade, a ponto de se poder afirmar que a materialidade de ambas é substancialmente idêntica. Ao contrário, tais situações revelam diversos elementos de dissemelhança e não exigem nem impõem, ao legislador, por isso mesmo, um tratamento idêntico e uma solução coincidente'.
Entende-se que tais considerações são inteiramente aplicáveis à solução consagrada pelo art. 310º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1987, descontadas, claro, diferenças de pormenor.
Daí a conclusão de que não ocorre no caso sub judicio violação do princípio constitucional de igualdade por parte da norma que constitui objecto do recurso.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso de constitucionalidade, confirmando, em consequência, a decisão recorrida.
Lisboa,23 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa