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Procº nº 87/92
1ª Secção Rel.Cons. VÍtor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A A. propôs contra B. uma acção com processo ordinário em que pedia a condenação da ré no pagamento da quantia de Escs.: 1 913 733$50 acrescida de juros à taxa legal, relativa a encargos financeiros decorrente de contrato de compra e venda entre ambos celebrado.
Por decisão de 11 de Janeiro de
1988, do 1º Juízo Cível da Comarca de Lisboa, foi a ré condenada a pagar à autora 5/6 do montante correspondente aos juros moratórios sobre o capital de 3
160 000$00, relativamente ao período decorrente de 1 de Julho de 1984 a 27 de Maio de 1986, de acordo com as sucessivas taxas e condenou a autora e a ré nas respectivas custas, na proporção de 1/5 para a primeira e 4/5 para a segunda.
Elaborada a conta do processo, após o trânsito em julgado da sentença, a ré apresentou uma reclamação da conta, que dirigiu ao juiz da causa, invocando a inconstitucionalidade 'nos termos dos artigos 17º e 18º, nº 3, da Constituição, do artigo 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº
387-D/87, de 29 de Dezembro, e do artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, na medida em que abrangem os processos pendentes à data neles referida -
1 de Janeiro de 1988 -' concluindo no sentido de que a conta devia ser reformada.
Esta reclamação veio a ser decidida pelo secretário judicial, que a indeferiu, tendo a ré interposto recurso de tal despacho para o Tribunal Constitucional, na suposição de que tinha sido proferido pelo juiz do processo, requerimento este que o juiz veio a indeferir por ter sido proferido por entidade diversa daquela a quem era dirigido. A ré, notificada de tal despacho requereu que o juiz decidisse ele próprio a reclamação apresentada ou admitisse a reclamação da decisão proferida pelo secretário judicial, tendo tal pretensão sido indeferida por se ter considerado esgotado o poder jurisdicional - artigo 666º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC).
Em recurso interposto pela ré para o Tribunal Constitucional veio a ser proferido o Acórdão nº 354/91, de 4 de Julho de 1991, que julgou inconstitucional, por violação do disposto no artigo
168º, nº 1, alínea q), da Constituição, a norma do artigo 37º, mapa I, alínea b), terceiro parágrafo do Decreto-Lei nº 376/87, de 11 de Dezembro, na parte em que atribui aos secretários judiciais competência para decidir as reclamações da conta de custas, entendida no sentido de que a mesma retira tal competência ao juiz do processo e, consequentemente, mandou substituir tal decisão por outra que se conformasse com o juízo de inconstitucionalidade formulado.
2. - Na sequência deste acórdão, o juiz do processo veio a proferir um despacho do seguinte teor:
' Cotejando os elementos dos autos e o preceituado em matéria de custas,
Nomeadamente o facto da sentença que se proferiu neste processo o ter sido já na vigência do actual Código das Custas,
Nenhum reparo se nos oferece fazer em relação à forma como as contas se mostram elaboradas, concluindo-se naturalmente pelo indeferimento da reclamação apresentada a fls. 207'.
Deste despacho a ré interpôs recurso para o Tribunal Constitucional e, uma vez admitido o recurso e remetidos os autos, foi proferido pelo relator um despacho a convidar a recorrente a esclarecer o requerimento de interposição do recurso, nos termos decorrentes do artigo 75º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de
7 de Setembro (Lei do Tribunal Constitucional -LTC), o que a recorrente fez nos termos seguintes:
'(...) vem explicitar que no presente recurso se pretende a apreciação da inconstitucionalidade do art. 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, e bem assim, do artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, por ofensa dos preceitos dos arts. 18º, nº 3 e 20º da Lei Fundamental, inconstitucionalidade suscitada no requerimento de fls. 207 dos autos.'
3. - A recorrente apresentou alegações e na conclusão formulada afirma que 'é inconstitucional a norma do artigo 6º, nº 1 do Dec.-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, tal como o é a do artigo 5º do Dec.-Lei nº 92/88, de 17 de Março, ao abrangerem os processos pendentes à data neles referida, 1.1.1988.'
Também o Procurador-Geral adjunto em exercício neste Tribunal apresentou as respectivas alegações e nelas formulou as seguintes conclusões:
'1º A aplicação imediata aos processos pendentes do agravamento de custas determinado pelas normas impugnadas pelo recorrente não ofende o direito de acesso aos tribunais, já que os mecanismos legais do apoio judiciário suprem plenamente as situações de eventual carência económica superveniente para suportar as custas do pleito - podendo perfeitamente, sem qualquer dificuldade adicional, ser desencadeados pelos interessados em qualquer estado da causa;
2º Do mesmo modo não ocorre qualquer violação do princípio da não retroactividade, ínsito no nº 3 do artigo 18º da Constituição, já que a dívida de custas apenas se constitui com a prolação da decisão de que deriva a responsabilidade de uma das partes, e não com o início da instância;
3º A oneração da posição da ré, parte vencida na causa, em consequência de alteração legislação ocorrida na pendência da lide, não se configura, no caso dos autos, como intolerável, opressiva ou arbitrária - e, portanto, violadora do princípio constitucional da confiança - ponderado o valor da acção e a relação entre este e o montante da taxa de justiça que veio a ser liquidada'.
Corridos que foram os vistos legais, importa apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTOS:
4. - A recorrente questiona a conformidade constitucional do artigo 6º, nº 1, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de
29 de Dezembro e o artigo 5º do Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, na medida em que, impondo a aplicação imediata do regime de custas (mais gravoso) que o primeiro daqueles diplomas estabeleceu aos processos pendentes, tal aplicação representa uma limitação retroactiva do direito de acesso aos tribunais, violando-se, por isso, os artigos 17º, 18º, nº 3 e 20º, nº 1, da Constituição.
Vejamos, então, os preceitos legais em questão.
'Artigo 6º
1 - O presente diploma entra em vigor na data da entrada em vigor do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro.'
O artigo 5º do Decreto-Lei nº
92/88, de 17 de Março, tem a seguinte redacção:
'Artigo 5º
1 - O Decreto-Lei nº 387-D/87, de 29 de Dezembro, aplica-se às acções cíveis pendentes em 1 de Janeiro de 1988.
2 - Porém, cada uma das contas deve ser efectuada de harmonia com a lei vigente
à data em que foi proferida a respectiva decisão sobre a condenação em custas.
3 - Não pode ser exigido o reforço dos preparos, iniciais ou para julgamento, que tenham sido calculados antes de 1 de Janeiro de 1988.
4 - Nas acções em que não tenha sido observado o disposto nos números anteriores deverão ter lugar as correspondentes correcções, a requerimento dos interessados.'
Dos preceitos transcritos, tendo em atenção que o Código de Processo Penal de 1987 entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1988, pelo que esta data é também a data do início de vigência do Decreto-Lei nº 387-D/87 (nº 1 do seu artigo 6º) e a data em que o diploma de
1988 começou a produzir os seus efeitos (artigo 6º, do Decreto-Lei nº 92/88).
De acordo com a norma do artigo
5º deste último diploma, as alterações ao Código das Custas introduzidas pelo diploma de 1987, passaram a aplicar-se a todas as acções cíveis que estivessem pendentes em 1 de Janeiro de 1988, embora se determinasse que cada conta deveria ser efectuada tendo em atenção a lei em vigor na data da sentença condenatória em custas (nº 2, do artigo 5º) e se proibisse a possibilidade de exigir o reforço dos preparos efectuados antes de 1 de Janeiro de 1988, permitindo que, no caso de tais determinações legais não terem sido cumpridas, as partes pudessem requerer a sua efectivação.
Assim, a primeira questão de constitucionalidade que vem suscitada pela recorrente é a da aplicação dos aumentos de custas às acções cíveis pendentes, que no seu entender é retroactiva e viola o direito de acesso aos tribunais e a segunda, não tão explicitamente levantada, é a da desproporcionalidade dos aumentos decorrentes do Decreto-Lei nº 387-D/87.
Vejamos se tem razão.
5. - O despacho do Sr. juiz do
1º Juízo Cível de Lisboa que indeferiu a reclamação levantada pela recorrente contra a conta elaborada nos autos, assentou essencialmente na constatação de que, tendo a sentença de que emanou a condenação em custas, sido proferida já no domínio de vigência das alterações ao Código das Custas Judiciais aprovadas pelo Decreto-Lei nº 387-D/87 (tal decisão tem a data de 11 de Janeiro de 1988), a conta estava elaborada de acordo com a legislação em vigor, não podendo ser outra a conclusão.
Esta aplicação imediata da nova lei sobre custas violará, conforme pretende a recorrente, quer o nº 1 do artigo
20º quer o nº 3 do artigo 18º, da Constituição?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
5.1. - O artigo 20º, nº 1, da Constituição, onde se consagra o direito de acesso aos tribunais, estabelece que
'a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
Não basta, porém, a consagração deste direito geral á protecção jurídica, tornando-se indispensável a disponibilização dos meios concretos para tal direito ser exercido por forma a que todos possam defender em juízo os seus direitos em condições de igualdade e independentemente da situação económica de cada parte.
No caso de pessoas desprovidas de meios económicos, a lei criou o sistema de apoio judiciário para lhes assegurar o acesso à justiça; no caso de pessoas de médios rendimentos, importa garantir que os custos do sistema judiciário não tornem inoperante ou mesmo inatingível o respectivo acesso para defesa dos seus direitos e interesses legítimos.
Com efeito, a Constituição não contém nenhum preceito expresso nem das suas normas decorre qualquer princípio que aponte para uma administração da justiça gratuita.
Assim, pode o legislador estabelecer a obrigação do pagamento de custas, sem que isso envolva uma limitação do direito de acesso aos tribunais, desde que a justiça seja acessível
à generalidade dos cidadãos, sem recurso ao apoio judiciário.
Escreveu-se, a este respeito, no Acórdão nº 352/91, de 4 de Julho de 1991, ainda inédito:
'Na fixação das custas judiciais, há-de, pois, o legislador ter sempre na devida conta o nível geral dos rendimentos dos cidadãos de modo a não tornar incomportável para o comum das pessoas o custeio de uma demanda judicial, pois, se tal suceder, se o acesso aos tribunais se tornar insuportável ou especialmente gravoso, violar-se-á o direito em causa.'
Do que fica referido decorre que a inconstitucionalização, por violação do nº 1 do artigo 20º da Lei Fundamental, de normas legislativas respeitantes à fixação de novos valores de custas, só deverá ocorrer na hipótese de inviabilizarem ou de tornarem particularmente oneroso para o cidadão médio o acesso aos tribunais.
5.2. - Invoca também a recorrente como fundamento do recurso de constitucionalidade a violação do nº 3 do artigo 18º da Constituição.
Esta norma estabelece, em matéria relativa à força jurídica das normas constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias, que as leis que os restringirem só podem fazê-los nos casos expressamente previstos na Constituição, limitando-se ao essencial para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos, e que 'têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais'.
Entende a recorrente que a aplicação imediata das alterações do Código das Custas às acções pendentes envolve retroactividade e, por isso, violação do preceito referido.
Não existe aqui, porém, qualquer retroactividade.
Com efeito, é geralmente entendido que a dívida resultante da responsabilidade pelo pagamento das custas só surge com a prolação da sentença que define tal responsabilidade (artigo
446º, nº 1, do Código de Processo Civil; Alberto dos Reis, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 73º, pág.66), pelo que a determinação legal de fazer aplicar a lei de custas vigente no momento em que se proferiu a decisão condenatória reguladora de tal responsabilidade às acções iniciadas no domínio de diferente legislação, não implica retroactividade.
Tanto mais que, por força da norma do artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº 92/88, de 17 de Março, cada conta deveria ser elaborada de harmonia com a lei vigente à data em que foi proferida a decisão condenatória.
Assim, no caso em apreço, não pode sequer falar-se de aplicação retroactiva pois a decisão condenatória é posterior ao início de vigência do Decreto-Lei nº 387-D/87,tendo as custas reclamadas sido calculadas com base em tal diploma, para além de que, em princípio e dado que não está consagrada constitucionalmente - de forma genérica
- a proibição da retroactividade, só poderia falar-se de aplicação retroactiva violadora do artigo 18º, nº 3 da Constituição, se se partisse do princípio segundo o qual a exigência de custas nos tribunais constitui uma restrição ao direito de acesso aos tribunais.
Ora, como se concluiu acima
(ponto 5.1.), tal só ocorrerá se a elevação de custas levar à inviabilização daquele direito ou o tornar particularmente oneroso para o cidadão médio.
Mas, mesmo inexistindo qualquer retroactividade constitucionalmente proibida, a aplicação imediata de um diploma agravador do regime de custas pode vir a afectar o princípio da confiança ínsito no princípio do Estado de Direito democrático consagrado no artigo 2º da Constituição.
Efectivamente, tem sido entendimento uniforme da jurisprudência do Tribunal, no seguimento da Comissão Constitucional, que aquele princípio de protecção da confiança postula a exigência de um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e também quanto às expectativas que lhes são juridicamente criadas, de tal forma que, não obstante a inexistência de preceito constitucional que proíba a irretroactividade das leis (salvo a matéria penal e as restritivas de direitos, liberdades e garantia), têm de se considerar constitucionalmente inadmissíveis as normas que afectem de maneira intolerável, arbitrária ou demasiadamente opressiva aqueles mínimos de segurança e certeza que o direito não pode deixar de respeitar.
Importa, assim, considerar se no caso dos autos ocorre uma situação de agravamento de custas tal que inviabilize ou torne particularmente oneroso o acesso ao tribunal ou que frustre as legitimas expectativas do devedor de custas e recorrente .
5.3. - Na presente acção, cujo valor foi fixado em Escs.: 3 690 454$00, a recorrente foi condenada a pagar 5/6 do montante correspondente aos juros moratórios sobre aquele capital, no período de 1 de Julho de 1984 a 27 de Maio de 1986, sendo as custas repartidas na proporção de 4/5 para a recorrente e 1/5 para a autora.
Elaborada a respectiva conta de custas, ao abrigo das disposições do Decreto-Lei nº 387-D/87, foi liquidada à recorrente o valor de Escs.: 103 470$00, sendo a taxa de justiça correspondente ao valor do montante de Escs.: 99 000$00.
Ora, se a conta de custas tivesse sido elaborada de acordo com a legislação de custas anterior, a taxa de justiça seria de Escs. 48 750$00 e o montante de custas em dívida, considerando os mesmos elementos que levaram à fixação do valor contado de Esc: 103.470$00, seria agora apenas de Esc:57.597$00.
Um agravamento do valor das custas tal como o que fica demonstrado, pode ser considerado como inviabilizando ou tornando excessivamente oneroso o acesso ao tribunal ou frustrante das legitimas expectativas da recorrente?
Parece-nos manifesto que a resposta não pode deixar de ser negativa.
Com efeito, tendo em atenção o elevado valor fixado à acção, não se vê como o agravamento para cerca do dobro do valor da taxa de justiça possa tornar inviável o recurso aos tribunais de um cidadão médio para defender os seus direitos e interesses legítimos ou que o valor resultante da legislação agravadora seja de tal modo elevado que as expectativas das partes possam considerar-se substancialmente afectadas, tanto mais que, no caso, a recorrente, enquanto ré na acção mesmo que tal legislação já existisse, não se vê que outra actuação pudesse ter tido, pelo que não pode considerar-se violado o princípio da protecção da segurança.
Tem, por isso, de se concluir que um aumento como o referido, em acções cujo valor situado entre 3 500 000$00 e 3 800 000$00, é um valor que ultrapassa a média do comum das acções e atentando em que há mais de 15 anos que as custas judiciais não viam as respectivas taxas actualizadas, não seria de todo imprevisível um aumento daquelas taxas, pelo que situando-se o aumento em questão em pouco mais do dobro do valor anteriormente previsto a imediata aplicabilidade desta legislação não viola o direito de acesso aos tribunais nem o princípio da protecção da confiança nem o nº 3 do artigo 18º da Constituição, não merecendo provimento o presente recurso.
III - DECISÃO:
6. - Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o recurso e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Lisboa, 1994.03.23
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa Armindo Ribeiro Mendes Antero Alves Monteiro Dinis Maria da Assunção Esteves (com discordância da fundamentação, nos termos da declaração de voto aposta ao Acórdão nº 161/93, D.R. II Série, de 10.04.93) José Manuel Cardoso da Costa