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Proc. nº 499/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., enfermeira especialista, residente na Rua
--------------------, nº ------, --------------, veio requerer em 21 de Novembro de 1991 ao Supremo Tribunal Administrativo a suspensão da eficácia do despacho de 25 de Setembro do mesmo ano do Ministro da Saúde, através do qual este membro do Governo lhe aplicou a pena disciplinar de inactividade, graduada em um ano, na decisão do recurso hierárquico necessário interposto pela requerente. Invocou que a execução imediata do acto administrativo na pendência do recurso contencioso causaria à requerente prejuízo de difícil recuperação, visto que da mesma execução viria a resultar a privação total, ainda que temporária, do vencimento percebido do Estado, constituindo tal vencimento o único rendimento de que a requerente dispunha para prover ao seu sustento e ao dos dois filhos a seu cargo, um dos quais menor.
O membro do Governo requerido apresentou resposta a opor-se ao pedido, e o representante do Ministério Público preconizou, no seu visto, o deferimento do pedido de suspensão.
Por acórdão proferido em 9 de Janeiro de 1992, a
1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo decidiu indeferir o pedido de suspensão, por entender não se mostrar preenchido no caso o pressuposto enunciado na alínea b) do nº 1 do art. 76º da Lei do Processo nos Tribunais Administrativos (a suspensão não determinar grave lesão do interesse público).
Notificada deste acórdão, veio a requerente interpor recurso do mesmo para o Pleno da Secção de Contencioso Administrativo, apresentando logo alegações em que suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma constante da alínea d) do art. 103º da Lei de Processo nos Tribunais Administrativos, norma que exclui o recurso em casos como o dos autos.
Afirmou nessas alegações que o direito disciplinar é um dos ramos dos direitos sancionatórios, sendo-lhe subsidiariamente aplicáveis as regras e princípios dos direitos penal e processual penal. Por tal motivo, teria neste domínio dignidade constitucional o princípio do duplo grau de jurisdição, princípio com cabimento no âmbito das garantias de defesa referidas no art. 32º da Constituição, 'se não mesmo, e desde logo, por força do «direito de acesso aos tribunais» constante do art. 20º da Lei Básica' (a fls. 69 vº).
O Relator não recebeu o recurso interposto, por despacho de 14 de Fevereiro de 1992 (a fls. 74 dos autos), indicando que a norma impugnada não sofria da inconstitucionalidade apontada pela recorrente 'uma vez que não existe na Lei Fundamental preceito algum que imponha «duplo grau de Jurisdição»'.
Inconformada com este despacho, reclamou a recorrente para a conferência, reeditando no seu requerimento as razões por que reputava a norma aplicada de inconstitucional. O representante do Ministério Público teve visto, onde preconizou o indeferimento da reclamação, em virtude da suspensão de eficácia ser um meio processual acessório do recurso contencioso, onde não se faz qualquer pronúncia sobre a legalidade do acto impugnado.
Por acórdão de fls. 80 a 83º vº, a 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo manteve o despacho reclamado. Pode ler-se neste acórdão o seguinte passo, após aí se ter feito a resenha da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal Constitucional em sentido contrário ao da tese propugnada pela reclamante:
'Por isso, «não gozando esta garantia de genérica protecção constitucional, nem
à luz do art. 20º, nº 2, nem a luz dos arts. 212º, nº 1, al. b), e 2 e 215º, da CRP», de concluir é que as normas dos arts. 103º al. d) da LPTA e 24º als. a) e b) do ETAF, enquanto limitam o recurso jurisdicional de acórdãos do STA que decidam sobre a suspensão da eficácia dos actos contenciosamente impugnados, não ofendem qualquer princípio constitucional.
É certo que o Acórdão nº 401/91 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, I Série, de 8/1/92) citado pela requerente se pronunciou a favor do duplo grau de jurisdição ao declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma do art. 665º do Código de Processo Penal de 1929 na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de
29/6/34.
Todavia, para além do carácter controverso da questão, como o demonstram as quatro declarações de voto de vencido que acompanhavam o acórdão, parece-nos fora de dúvida que no caso em apreço não se verifica o pressuposto em que assentou aquela decisão.
Por um lado, só a especial gravidade das sanções impostas pelo direito penal (que já se não verifica no direito disciplinar) é que implicará essa garantia suplementar do direito a um reexame judicial.
Ao que se não opõe a invocada relação de subsidiariedade que aqui não exige, de modo algum, uma transposição acrítica nos seus precisos contornos, das soluções encontradas no âmbito do direito ou do processo penal.
Por outro, não estamos perante uma decisão de mérito sobre a legalidade da aplicação de uma pena disciplinar, mas antes face a uma providência cautelar destinada a suspender durante um período de tempo
(enquanto não transitar a decisão a proferir no processo principal), submetida a um regime processual célere e assente em prova perfunctória.
Ora a natureza provisória da decisão não importa para o seu destinatário um desvalor com o peso suficiente para impor a referida garantia do direito ao duplo grau de jurisdição que, de resto, nenhum preceito da Lei Fundamental consagra em termos genéricos'.
2. Inconformada com este acórdão, dele interpôs a requerente A. recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da lei deste Tribunal.
O recurso foi recebido por despacho de fls. 87.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Neles apenas apresentou alegações a recorrente, onde formulou as seguintes conclusões:
'1 - O direito disciplinar é ramo do direito punitivo - por isso que lhe são subsidiariamente aplicáveis as regras e princípios dos direitos penal e processual penal.
2 - Dos arts. 20º, nº 1, e 32º, nº 1, da Constituição, desprende-se o direito ao recurso dos tribunais, por forma a que haja um duplo grau de jurisdição.
3 - O que é igualmente válido em sede de direito disciplinar.
4 - Assim, o art. 103º, d), da LPTA, por ofensa ao que se desprende dos arts.
20º, nº 1 e 32º, nº 1, da C.R.P. (aplicáveis ao direito disciplinar, como ramo que é do direito punitivo), enferma de inconstitucionalidade material - e, consequentemente, dever-lhe-ia ter sido recusada aplicação pela douta decisão sob recurso (cfr. artº 207º da C.R.P. e art. 4º, nº 3, do ETAF - que mais não é do que direito constitucional legislado).
5 - Na legislação ordinária está previsto o duplo grau de jurisdição, em sede de suspensão de eficácia, para funcionários e agentes que estão submetidos ao mesmo Estatuto Disciplinar que a ora Recorrente: cfr. artº.244º, nº 2, da C.R.P., artº. 1º, nº 1, do Estatuto Disciplinar, em leitura conjugada, e arts. 26º, nº
1, a), e 51º, nº 1, l), do ETAF, conjugada com o art. 103º da LEPTA.
6 - Esta diferenciação de tratamento determina a inconstitucionalidade material do artº. 103º, d), da LEPTA, por ofensa ao artº. 20º, nº 1, da C.R.P. (na segunda linha significativa essencial) e ao artº. 13º da C.R.P.' (a fls. 99 vº
-100)
4. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivo que a tal obste, cumpre apreciar e conhecer do objecto do pedido.
II
5. Preliminarmente, deverá pôr-se em realce que carece de razão a recorrente ao sustentar que a natureza da matéria disciplinar, alegadamente análoga à matéria criminal, impõe que se garanta o duplo grau de jurisdição nos processos em que a mesma seja apreciada, em especial quando se trate de processos de natureza cautelar, como é o caso do processo de suspensão de eficácia de actos administrativos.
De facto e como se acentuou no acórdão recorrido, no presente processo não se visou apreciar a legalidade da sanção disciplinar aplicada à recorrente, mas tão-somente a susceptibilidade de ser suspensa a eficácia do acto administrativo contenciosamente impugnado, na pendência do recurso contencioso. Trata-se aí de um procedimento de natureza cautelar que a própria lei do processo administrativo considera um meio processual acessório.
Não é, assim, possível considerar que eventuais razões justificativas da necessidade de garantir um duplo grau de jurisdição quanto ao processo contencioso de anulação da decisão sancionatória disciplinar
- razões justificativas que não carecem de ser apreciadas no presente recurso e que não decorrem do art. 32º, nº 1, da Constituição - hajam de estender-se ao meio processual acessório de suspensão de eficácia do acto administrativo.
Terá, por isso, de analisar-se, num plano de generalidade e quanto aos processos de suspensão de eficácia, se ocorre a inconstitucionalidade apontada pela recorrente.
6. O art. 103º do Decreto-Lei nº 267/85, de 16 de Julho (LPTA - Lei de Processo nos Tribunais Administrativos) estabelece casos de inadmissibilidade de recurso de acórdãos da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo.
Transcreve-se esse artigo:
'Salvo por oposição de julgados, só não é admissível recurso dos acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo que decidam:
a) Em segundo grau de jurisdição;
b) Sobre conflitos de jurisdição ou de competência;
c) Sobre recursos de actos do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais ou do seu presidente;
d) Sobre a suspensão de eficácia de actos contenciosamente impugnados.'
Sustenta a recorrente que a norma do art. 103º, alínea d), da LPTA, é inconstitucional a vários títulos, discordando, por isso, da jurisprudência em contrário firmada pelo Tribunal Constitucional.
Impõe-se, por isso, analisar a argumentação que tem sido apresentada para fundar o alegado juízo de inconstitucionalidade.
7. Luciano Marcos sustentou em anotação ao Acórdão nº 65/88 do Tribunal Constitucional (decisão publicada no Diário da República, II Série, nº 192, de 20 de Agosto de 1988; a referida anotação acha-se publicada, por seu turno, na Revista Jurídica, nºs 13 e 14, Junho de
1990, nova série, pág. 41 e segs.) que a inconstitucionalidade da indicada norma decorreria de violação de diferentes normas constitucionais.
Embora por ordem diferente da contemplada nessa anotação, comecemos pela invocada inconstitucionalidade orgânica.
Assim, segundo o entendimento deste autor, o art. 103º, alínea d), da LPTA, 'ao regular o recurso das decisões jurisdicionais que se pronunciam sobre a suspensão da eficácia de actos administrativos impugnados é uma norma que respeita lógica e necessariamente a «direitos, liberdades e garantias» e à «organização e competência dos tribunais» que constitui matéria da competência da Assembleia da República (v. arts. 17º, 20º,
168º/1/b) e q) e 268º/4 da C.R.P.' (anot. cit, pág. 50).
É, assim, apontada uma inconstitucionalidade orgânica, a duplo título, à norma aplicada pela decisão recorrida, visto que o Decreto-Lei nº 267/85 provém do Governo, não dispondo este de autorização legislativa da Assembleia da República para o editar.
Desde já se afirma que não procede tal alegação de inconstitucionalidade orgânica.
Sem discutir a bondade da afirmação deste autor - por tal não ser necessário para o conhecimento do objecto deste recurso - de que
'a suspensão da eficácia de actos administrativos ilegais, tendo como fim acautelar o efeito útil do recurso contencioso, é um instituto que integra o conteúdo essencial do direito ao recurso contencioso contra actos administrativos ilegais' (anot. cit, pág. 51), desde já se adianta que não pode aceitar-se a afirmação subsequente de que 'a regulamentação do instituto de suspensão de eficácia, podendo significar a restrição ou anulação do direito fundamental ao recurso contencioso contra actos administrativos ilegais, é matéria que respeita a esse direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias'. Na verdade uma tal posição conduziria necessariamente à conclusão de que toda a regulamentação adjectiva de procedimentos cautelares cíveis, na medida em que integrassem o conteúdo essencial do direito de acção judicial, só poderia ser feita por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado por esta. Ninguém defende, porém, tal tese, ao que se julga saber.
Ora, esta última conclusão acha-se claramente repudiada pela própria Constituição, já que, em matéria processual, a Lei Fundamental só inclui na reserva relativa da Assembleia da República a legislação sobre processo criminal (art. 168º, nº 1, alínea c)), bem como sobre
'o regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo' (art. 168º, nº 1, alínea d), da Constituição). A edição de disposições claramente adjectivas, como as referentes à admissibilidade de recursos jurisdicionais, em processo civil, comum ou laboral, e em processo administrativo, não cabe na reserva relativa de competência da Assembleia da República.
Tão-pouco se verifica o outro caso de inconstitucionalidade orgânica apontado nesse estudo.
De harmonia com a posição que se vem analisando, o art. 24º do Decreto-Lei nº 129/84, de 7 de Maio (ETAF, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais) - diploma este publicado no uso de autorização legislativa conferida pela Lei nº 29/83, de 8 de Setembro - disciplinou a matéria de competência da Secção de Contencioso Administrativo em pleno, estabelecendo na alínea a) que compete a esse pleno conhecer 'dos recursos de acórdãos proferidos em recurso directamente interposto para a Secção que não sejam da competência do plenário'. Ora, face a tal alínea, resultaria que 'seria sempre admissível recurso dos acórdãos proferidos em processos directamente instaurados na secção e, consequentemente, seria também competente o Pleno de Secção para conhecer dos recursos de acórdãos que julgassem pedidos de suspensão de eficácia, independentemente do fundamento do recurso'. Assim, do cotejo destes normativos legais resultaria também que o artigo 103º/d) da L.P.T.A., 'ao permitir o recurso para o pleno da secção unicamente com o fundamento em oposição de julgados, veio revogar implicitamente a alínea a) do art. 24º do E.T.A.F., que, como vimos, atribuía competência ao pleno da secção para conhecer dos recursos de acórdãos das subsecções sobre pedidos de suspensão da eficácia, não se estabelecendo tal limitação quanto aos fundamentos, tanto mais que a alínea b) desse artigo 24º, essa sim, atribui competência ao pleno para conhecer dos recursos com esse fundamento'(anotação cit., págs. 54-55). Para completo esclarecimento do argumento, refira-se que tal alínea b) do art. 24º do ETAF atribui competência ao pleno da Secção de Contencioso Administrativo para conhecer 'dos recursos de acórdãos da Secção que, relativamente ao mesmo fundamento de direito e na ausência de alteração substancial da regulamentação jurídica, perfilhem solução oposta à de acórdão da mesma Secção'. Convém, ainda, chamar a atenção para que esta tese se vê forçada a considerar que a expressão
'recurso directamente interposto para a secção', na alínea a) do art. 24º do ETAF, se tem de interpretar em sentido amplo, e equivalente a processo, pois, de outro modo, não conseguiria explicar como tal previsão se aplicaria aos meios processuais acessórios que são os pedidos de suspensão de eficácia dos actos administrativos (arts. 76º e segs. da LPTA).
Não se aceita a tese da revogação da norma da alínea a) do art. 24º, nº 1, do ETAF pela norma posterior da alínea d) do art.
103º da LPTA. Diferentemente do que se sustenta na anotação referida, a primeira norma é uma norma de organização judiciária que estabelece a competência em razão da matéria de certo órgão jurisdicional (o pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA), ao passo que a segunda é uma norma de direito processual administrativo que fixa casos de inadmissibilidade de recurso para o pleno dessa Secção (inadmissibilidade de recurso por disposição da lei). A norma em causa do ETAF estatui que o pleno da Secção de Contencioso Administrativo é competente para conhecer dos recursos de acórdãos proferidos em recursos directamente interpostos para a 1ª Secção 'que não sejam de competência do plenário', sem com isso querer decidir que todas as decisões da 1ª Secção são recorríveis. É que, como se sustentou no Acórdão nº 65/88, a melhor interpretação das duas normas em presença permite a sua compatibilidade, afastando a ideia de que ocorreu revogação da primeira pela segunda:
'Segundo o art. 26º, nº 1, al. m), do ETAF, compete à 1ª Secção do STA conhecer, pelas suas subsecções, dos pedidos de suspensão de eficácia de actos administrativos, para a mesma Secção contenciosamente impugnados, actos a que se referem as als. b) a h) do nº 1 do mesmo art. 26º. Dos acórdãos resultantes do exercício de tal competência é que o art. 103º, al. d), da LPTA proíbe, a menos que se registe oposição de julgados, a interposição de qualquer recurso.
O art. 24º, als. a) e b), do ETAF, quando mais não seja num primeiro nível de interpretação, não é já tão categórico em tal sentido. De facto, nessas als. a) e b) - ao igual do que se verifica nas als. c) e d) do mesmo art. 24º - prefixa-se sim, e em primeira linha, a competência do pleno da
1ª Secção do STA. Só numa interpretação sistemática do art. 24º, als. a) e b), e conjugado o preceito com outros dispositivos que dele se aproximam, é possível deduzir-se - e pondo de parte a competência, muito especial, definida nas als. c) e d) desse mesmo artigo - que, na medida em que aí se restringe a competência do pleno da 1ª Secção aos recursos de acórdãos proferidos em recurso directamente interposto para a Secção que não sejam da competência do plenário do STA [al. a)] e aos recursos de acórdãos da Secção que perfilhem solução oposta à do acórdão da mesma Secção [al. b)], se está, em regra, a proibir o recurso dos acórdãos que decidam incidentes de suspensão de eficácia de actos impugnados.
Delimitado interpretativamente o sentido e alcance das normas cuja constitucionalidade é contestada, torna-se de imediato evidente que qualquer delas só entrará em confronto com a CRP [o art. 103º, al. d) da LPTA, de um modo mais incisivo e directo, e o art. 24º, als. a) e b), do ETAF de um modo menos peremptório e algo oblíquo], se naquela tiver tido acolhimento em termos genéricos, o princípio do duplo grau de jurisdição' (nº 5; sublinhado acrescentado).
Mas ainda que se admitisse a solução de revogação parcial preconizada por esta doutrina, nem, assim, se estaria perante um caso de inconstitucionalidade orgânica. Na verdade, as normas processuais podem regular os pressupostos de admissibilidade de recursos jurisdicionais e nem por isso se pode dizer que tais normas têm de ser encaradas, necessariamente e sempre, como normas sobre a competência dos tribunais de recurso. A jurisprudência do Tribunal Constitucional indicada por Luciano Marcos não pode ser invocada para apoio de tal entendimento. Na verdade, quando se trate de processo constitucional, criminal ou contraordenacional, a competência para legislar sobre tais processos é sempre da Assembleia da República por expressa disposição constitucional (reserva de competência absoluta no caso do processo constitucional - art. 167º, alínea c) da Constituição; reserva relativa nos outros casos, devendo referir-se que, no último, a competência parlamentar abrange apenas o regime geral deste processo - art. 168º, nº 1, alíneas c) e d)
). E quando esteja em causa a jurisdição de tribunais arbitrais necessários ou voluntários, é óbvio que a questão de saber se há ou não recurso das respectivas decisões para os tribunais judiciais envolve necessariamente uma questão de jurisdição e competência daqueles e destes (é especialmente significativo nesse sentido o caso do Acórdão nº 33/88, in Diário da República, I Série, nº 43, de
22 de Fevereiro de 1988). Como se escreveu no Acórdão nº 132/88 do Tribunal Constitucional, 'qualquer que seja o nível ou o grau de definição da competência dos tribunais reservado à A.R., seguramente que nele não entram as modificações da competência judiciária a que deve atribuir-se simples carácter processual
[...]' (in Diário da República, nº 208, de 8 de Setembro de 1988; neste acórdão remete-se para jurisprudência anterior do Tribunal na matéria).
Por estas razões, conclui-se no sentido de que a norma aplicada pela decisão recorrida não sofre de inconstitucionalidade orgânica.
8. Numa outra linha de argumentação, sustenta a recorrente que a norma constante da alínea d) do art. 103º da LPTA se acha afectada por vício de inconstitucionalidade material, quer por violação do princípio da igualdade, quer por violaçao do princípio da garantia do duplo grau de jurisdição.
Começar-se-á pela alegada violação do princípio da igualdade.
Sustenta a recorrente que tal violação resulta da circunstância de se admitir a possibilidade de recurso - e, portanto, o duplo grau de jurisdição - de decisões que conheçam de pedido de suspensão de eficácia de actos administrativos, quando elas sejam proferidas pelos Tribunais Administrativos de Círculo, e de não se admitir tal possibilidade quando idênticas decisões sejam proferidas pela 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. De tal diversidade de regimes resultaria o favorecimento de certos órgãos da Administração Pública, em detrimento de outros. Tal desigualdade de tratamento não justificada seria, como sustenta Luciano Marcos,
'ainda mais flagrante se atendermos a que ele pode ocorrer no âmbito de relações jurídico-administrativas com o mesmo objecto, como é o caso referido de acto praticado por um director-geral com delegação de poderes ou pelo ministro respectivo' (citada anotação, pág. 49).
Entende-se que não tem razão a recorrente.
Existe uma manifesta falta de identidade de situações, diferentemente do que a recorrente inculca.
No caso de decisões proferidas pelos Tribunais Administrativos de Círculo respeitantes a processos de suspensão de eficácia dos actos administrativos, as mesmas são proferidas por juiz singular (arts. 47º, nº
2, do ETAF e 78º, nº 4, da LPTA). Nestes casos, justifica-se especialmente que se admita o duplo grau de jurisdição, permitindo-se o recurso para uma formação colegial de uma das subsecções da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo. Quando a suspensão de eficácia do acto administrativo seja requerida directamente numa das subsecções da 1ª Secção do STA (art. 77º, nº 1, LPTA), a decisão vai caber a um colégio de três juízes conselheiros, oferecendo a decisão as mesmas garantias que a proferida, em via de recurso jurisdicional, por subsecção da 1ª Secção, relativamente aos processos de suspensão interpostos nos Tribunais Administrativos de Círculo.
Quer isto dizer que não pode falar-se de uma violação do princípio de igualdade pois que, como sustenta o mesmo Luciano Marcos, citando Gomes Canotilho e Vital Moreira, a proibição de discriminações não tem de significar uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento. É relevante aqui que o legislador haja pretendido garantir em qualquer caso a intervenção em última instância da 1ª Secção do S.T.A. (formação colegial) embora tal intervenção possa ocorrer em decisão de primeira (e única) instância, ou de decisão de segunda instância
(através de recurso jurisdicional). Sucede algo de semelhante ao que ocorre com a situação prevista no art. 753º, nº 1, do Código de Processo Civil ou, ainda, à que ocorre com os arts. 1089º e 1090º do Código de Processo Civil, quando a acção de indemnização de magistrados seja de competência do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. art. 28º, nº 3, alínea b), da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, Lei nº 38/87, de 23 de Dezembro).
Entre garantir o duplo grau de jurisdição e, para tal, atribuir competência ao pleno da Secção de Contencioso Administrativo para conhecer dos recursos jurisdicionais das decisões da 1ª Secção, proferidas em primeira instância em processos de suspensão de eficácia como o dos autos, ou eliminar em certas circunstâncias o duplo grau de jurisdição, mantendo como
última instância a 1ª secção do STA, em qualquer caso de processos de suspensão de eficácia, o legislador optou pela segunda alternativa. Com tal opção, não agiu de forma irrazoável ou desproporcionada, nem pode dizer-se que a disparidade de soluções (duplo grau de jurisdição/instância única) traduza uma distinção arbitrária ou não tenha fundamento material bastante (pode invocar-se, entre outras, a ideia de que é inexigível que se garanta, num meio processual acessório de natureza cautelar, a intervenção de um colégio de dez juízes ou, eventualmente, de cinco ou seis juízes - cfr. art. 25º do ETAF - apenas para garantir o duplo grau de jurisdição, salvo se estiver em causa uma invocada oposição de julgados).
Não obstante haver vozes autorizadas que apontam para que terá presidido à solução a vontade do legislador de favorecer o Governo face às autoridades administrativas de cujos actos se recorre para o Tribunal Administrativo de Círculo (neste sentido, José Luís Pereira Coutinho, Sobre os Recursos Processados como Recursos de Agravo nos Tribunais Administrativos, in Revista de Direito Público, nº 4, págs. 41 e 42), é duvidoso que tal ideia explique cabalmente o regime legal. De facto, os actos administrativos praticados pelo Governo e pelos seus membros podem ter a sua eficácia suspensa por decisão de única instância, sem que haja possibilidade de, na pendência do recurso contencioso, essa decisão ser revogada por uma instância ulterior, diversamente do que sucede em caso paralelo quanto a uma decisão dos Tribunais Administrativos de Círculo. Não parece, por isso, que a diversidade de soluções possa ter na sua base uma ideia de favorecer umas autoridades administrativas, em detrimento de outras.
Acrescente-se, por último, que, neste ponto, a solução em análise se situa na mesma linha do regime constante de legislação anterior de contencioso administrativo, com as adaptações tornadas necessárias pela autonomização processual do antigo incidente de suspensão da executoriedade do acto recorrido (incidente processado nos próprios autos de recurso contencioso - art. 839º, § 3º, do Código Administrativo e art. 57º, § 1º, do Regulamento da Lei Orgânica do STA) e pela ampliação da competência dos Tribunais Administrativos de Círculo para os recursos contenciosos de anulação, por referência à competência das extintas auditorias administrativas (cfr. arts.
51º do ETAF e 820º do Código Administrativo; sobre esta matéria, vejam-se Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. I, 10ª ed., Coimbra,
1973, págs 562 e segs; vol. II, 9ª ed., 1972, págs. 1212-3 e 1388-9; Vitor M. Lopes Dias, Contencioso Administrativo, Porto, sem data, págs 151, 334 e segs.; Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo, vol. IV, policop., Lisboa,
1988, págs. 301 e segs., maxime 323; F.B. Ferreira Pinto e Guilherme P. Fonseca, Direito Processual Administrativo Contencioso, págs. 160 e segs.).
9. A recorrente sustenta, nas suas alegações, que a norma aplicada pelo acórdão recorrido é materialmente inconstitucional, por violação da garantia do duplo grau de jurisdição.
A Constituição, ao garantir a todos 'o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos'
(art. 20º, nº 1), estaria em primeira linha a acautelar estes mesmos direitos e interesses, de tal sorte que aí se incluiria a garantia do acesso a um segundo tribunal, para fiscalização da decisão de primeira instância: 'o princípio do duplo grau de recurso constitui, assim, um corolário lógico e necessário do Estado de Direito, bem como do princípio da tutela jurisdicional consagrado no artigo 20º da Constituição' (Luciano Marcos, citada anotação, pág. 62).
Gomes Canotilho, por seu turno, depois de referir que 'o Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais não garante, necessariamente, e em todos os casos, o direito a um duplo grau de jurisdição (...)', reconhece que 'o direito a um duplo grau de jurisdição não é, prima facie, um direito fundamental, mas a regra - que não poderá ser subvertida pelo legislador, não obstante a liberdade de conformação deste, desde logo quanto ao valor das alçadas - é a existência de duas instâncias quanto a «matéria de facto» e de uma instância de revisão quanto a
«questões de direito» (cfr. M. WOLF, Gerichtsverfassungsrecht aller Verfahrenzweige, 1987, p. 121 ss)' (Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra,
1991, pág. 667).
Nesta questão da garantia do duplo grau de jurisdição, o Tribunal Constitucional dispõe de uma jurisprudência firme, que remonta a 1985, e que fora antecedida já por uma orientação idêntica da Comissão Constitucional. Assim, no domínio do processo criminal, essa jurisprudência reconhece que, por força dos arts. 27º, 28º e 32º, nº 1, da Constituição, se acha constitucionalmente assegurado o duplo grau de jurisdição quanto às decisões condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a quaisquer outros direitos fundamentais
(vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs 31/87, 178/88, 340/90 e 401/91, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., págs 463 e segs. e os outros no Diário da República, II Série, nº 277, de 30 de Novembro de 1988, nº 65, de 19 de Março de 1991, e I Série-A, nº 6, de 8 de Janeiro de 1992, respectivamente). Mas tal garantia de duplo grau de jurisdição não abrange outras disposições proferidas em processo penal (o Tribunal tem sustentado em sucessivas decisões que não sofre de inconstitucionalidade o art. 390º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1929).
No domínio dos outros ramos de direito processual, o Tribunal Constitucional tem entendido que o duplo grau de jurisdição não se acha constitucionalmente garantido, reconhecendo-se ampla liberdade de conformação ao legislador para estabelecer requisitos de admissibilidade dos recursos, nomeadamente em função do valor da causa. Assim, no Acórdão nº 359/86, considerou-se que a Constituição não garantia em todos os casos o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (triplo grau de jurisdição), muito embora o princípio da igualdade vedasse qualquer discriminação no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça em função da natureza sindical de uma associação, face ao regime aplicável às outras associações (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 8º vol., págs. 605 e segs). E em numerosos arestos posteriores reconheceu-se que o nº 1 do art. 678º do Código de Processo Civil não está afectado de inconstitucionalidade (vejam-se os Acórdãos nºs 163/90 e 210/92, in Diário da República II Série, nº 240, de 18 de Outubro de 1991 e nº 211, de 12 de Setembro de 1992).
Especificamente no que toca ao art. 103º, alínea d), da LPTA, o Tribunal Constitucional teve ocasião, em três acórdãos, de negar que a norma estivesse afectada de inconstitucionalidade material, por violação do art.20º, nº 1, da Constituição (Acórdãos nº 65/88, já citado, 202/90, in Diário da República, II Série, nº 17, de 21 de Janeiro de 1991 e 447/93, ainda inédito). As duas primeiras decisões não foram unânimes quanto à fundamentação. Em declaração de voto subscrita pelo Conselheiro Vital Moreira relativa ao primeiro acórdão, foi sustentado que havia de considerar-se 'constitucionalmente garantido - ao menos por decurso do princípio do Estado de direito democrático - o direito à reapreciação judicial das decisões judiciais que afectem direitos fundamentais, o que abrange não apenas as decisões condenatórias em matéria penal - como se reconhece no acórdão - mas também todas as decisões judiciais que afectem direitos fundamentais constitucionais, pelo menos os que integram a categoria constitucional dos «direitos, liberdades e garantias» (arts. 25º e segs. da CRP)'. E no segundo acórdão referido, o Cons. António Vitorino, em declaração de voto nele aposta, aderiu à posição do Cons. Vital Moreira, sustentando que, 'se do seu texto [da Constituição de 1976] não ressalta, expressamente, um preceito que funde directamente um genérico princípio de duplo grau de jurisdição, tal não obsta a que o intérprete da lei fundamental e o próprio julgador de constitucionalidade dos actos normativos, maxime em sede de fiscalização concreta, formulem um entendimento (deduzido quer do princípio de Estado de direito democrático, quer da forma ampla com que o artigo 20º da Constituição da República consagra o direito de acesso ao direito e aos tribunais) que assegure plenamente tal tutela judicial efectiva para garantia dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos'.
Estes mesmos acórdãos merecem 'muitas reticências' a Gomes Canotilho, por entender que o processo de suspensão de eficácia dos actos administrativos, não obstante a sua íntima conexão com a interposição de recurso, 'é um processo jurisdicional distinto, na causa petendi e no petitum, tem natureza decisória autónoma, é susceptível de incidir de forma decisiva na solução material do litígio'. Este constitucionalista considera, dubitativamente embora, mais defensável a posição já várias vezes citada de Luciano Marcos (ob. cit., pág. 667).
10. Sem deixar de admitir o carácter controvertido das soluções em presença, considera-se de manter a jurisprudência firmada. Não se vê que haja uma diversidade de natureza essencial entre este específico meio cautelar administrativo, e, por exemplo, os procedimentos cautelares em processo civil, relativamente aos quais se aplicam as regras dos nºs 1 a 3 do art. 678º do Código de Processo Civil (cfr. arts. 381º e 463º, nº
3, e ainda o art. 738º, todos do mesmo diploma).
Importa destacar - como já atrás se sublinhou - que a supressão do duplo grau de jurisdição não é, de resto, estabelecida na LPTA quanto a todos os processos de suspensão de eficácia de actos administrativos, mas só quanto àqueles que são directamente interpostos numa das subsecções da Secção de Contencioso Administrativo do STA, instância que funciona como tribunal de recurso para as decisões proferidas em processos dessa natureza nos Tribunais Administrativos de Círculo. Tal solução era já adoptada na legislação precedente, vigorava à data da aprovação da Constituição de 1976. Há, aqui, a garantia de apreciação por um órgão colegial de elevada hierarquia na pirâmide dos tribunais administrativos. E, nestes processos, está assegurado em qualquer caso o recurso para o pleno da 1ª Secção do STA, quando seja invocada oposição de julgados.
Continua, por isso, a perfilhar-se o entendimento adoptado nos Acórdãos nºs 65/88 e 202/90.
Como se observou no primeiro destes arestos, - numa análise literal do nº 1 do art. 20º da Constituição, 'o direito a tutela jurisdicional não é de qualquer modo imperativamente referenciado a sucessivos graus de jurisdição. Ali, se assegura apenas em termos absolutos, e num campo de estrita horizontalidade, o acesso aos tribunais para obter a decisão definitiva de um litígio'. E, numa perspectiva histórica, referenciando a situação dos diferentes direitos processuais no período em que foi elaborada e aprovada a Constituição de 1976, há-de reconhecer-se que é 'lícito afirmar que, se com o nº
1 do art. 20º da CRP, texto primitivo [...] tivesse tido o poder constituinte originário o propósito de erradicar do nosso sistema jurídico este regime
(regime que comportava uma grande variabilidade na definição dos graus de jurisdição a que cada causa poderia ou não ser sucessivamente reconduzida), e de garantir, em termos absolutos, o acesso a um segundo ou mesmo a um terceiro grau de jurisdição, por certo teria sido cristalinamente explícito nesse sentido. Ora, como se viu, não foi isto que se verificou'.
Por outro lado, e como reconheceram ainda os acórdãos nºs 65/88 e 202/90, a mera enunciação na Lei Fundamental das diferentes ordens de tribunais e dos órgãos jurisdicionais que se encontram hierarquizadamente dispostos nessas ordens' [cfr. art. 211º, nº 1, alíneas a) e b), da Constituição], 'não envolve logicamente que, em qualquer hipótese, sempre haja de haver recurso sucessivo até ao tribunal colocado no topo da linha hierárquica desta ou daquela ordem de tribunais. Antes tal escalonamento das sucessivas instâncias, dentro da mesma ordem judiciária, exigirá apenas que, em alguns casos - naturalmente nos de maior relevo (por aplicação do princípio da proporcionalidade, que domina o regime constitucional dos direitos, liberdades e garantias) - seja possível a impugnação de uma primeira decisão judicial junto de um tribunal superior e, eventualmente ainda, a impugnação da decisão deste
último junto de outro tribunal, necessariamente colocado um grau acima na escala hierárquica.' (nº 13 do Acórdão nº 65/88).
11. Concluindo, pois: reafirma-se que o princípio do duplo grau de jurisdição não dispõe, salvo em processo criminal e quanto às decisões condenatórias, duma protecção geral, no plano constitucional, não sendo, por isso, constitucionalmente censurável o art. 103º, alínea d), da LPTA.
III
12. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional julgar improcedente o recurso, confirmando-se, em consequência, o acórdão recorrido.
Lisboa, 22 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa