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Procº. nº. 713/93
2ª. Secção
Rel. Cons.: Sousa e Brito
Acordam na 2ª. Secção do Tribunal Constitucional:
I
A CAUSA
1. A., cidadão caboverdiano, foi julgado no Tribunal do
Seixal em processo comum, afecto ao tribunal colectivo, acusado de haver
cometido um crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131º. do Código Penal (CP).
Por Acórdão de 9/11/92 (fls. 122/124) foi o
arguido condenado, por esse mesmo crime, na pena 'especialmente atenuada' (nos
termos dos artigos 73º e 74º do CP) a 5 anos de prisão. No Acórdão, tendo-se
consignado residir o arguido em Portugal 'Há cerca de 15 anos', decidiu-se
ainda, '... nos termos do artigo 43º., c), do Dec-Lei 264-B/81, de 3/9, por se
tratar de cidadão estrangeiro, aplicar-lhe igualmente a pena acessória de
expulsão do território nacional, pelo período de 5 (cinco) anos '.
2. Desta decisão recorreu o arguido para o Supremo Tribunal
de Justiça (STJ), limitando o recurso - no que aqui interessa - à aplicação da
pena acessória de expulsão, defendendo não poder ser a mesma aplicada
automaticamente.
O STJ viria, através de Acórdão de 23/9/93 (fls.
157/162), a conceder provimento ao recurso, revogando a sobredita medida de
expulsão.
A este respeito teceu o Supremo Tribunal as
seguintes considerações:
' Por se tratar de cidadão estrangeiro, ao arguido foi aplicada, no
acórdão recorrido, a pena acessória de expulsão do território nacional, pelo
período de cinco anos, nos termos do art. 43. al. c) do DL nº 264-C/81, de
3.9.81, que apresenta a seguinte redacção:
' Sem prejuízo do disposto na legislação penal, será aplicada a pena
acessória de expulsão (...), c) ao estrangeiro residente no País há mais de
cinco anos e menos de vinte condenado a pena maior '.
Recentemente, foi no entanto, publicado o DL nº. 59/93, de 3.3.1993,
que estabeleceu novo regime de entrada , permanência, saída e expulsão de
estrangeiros do território nacional, cujo art. 68, nº 1, preceitua que:
' Sem prejuízo do disposto na legislação penal, será aplicada a pena
acessória de expulsão: (...), c) ao estrangeiro residente no País há mais de
cinco anos e menos de vinte condenado em pena superior a três anos de prisão '.
O nº 1 do art. 68, do DL nº 59/93, de 3.3.1993, constitui
efectivamente uma simples adaptação do texto do art. 43, do DL nº 264-C/81, às
penalidades do Código Penal em vigor desde 1 de Janeiro de 1983 (art. 2º do DL
nº 400/82, de 23.9.1982).
O art. 43 do DL nº 264-C/81 foi, assim, tacitamente revogado pelo nº
1 do citado art. 68, que tem aplicação imediata ao caso em apreço, por se tratar
de direito público e não implicar uma situação mais gravosa para o arguido.
Resta saber se o preceito deve ou não aplicar-se automaticamente na
condenação em recurso, como se fez no acórdão recorrido, com apoio no texto do
art. 43 do DL nº 264-C/81.
Numa primeira análise literal do nº 1 do art. 68, tudo aponta para
uma resposta afirmativa. 'Será aplicada' a pena acessória de expulsão ao
estrangeiro residente no País há menos de 20 anos que seja condenado em pena
superior a três anos de prisão. O futuro imperativo empregue no texto do
artigo -- 'será aplicada' -- sugere, de facto, a interpretação de que o
estrangeiro condenado a cinco anos de prisão e residindo em Portugal há cerca de
15 anos -- como acontece com o arguido recorrente -- será expulso do País, como
consequência inevitável da referida condenação.
O nº 4 do art. 30 da CRP prescreve, todavia, que 'nenhuma pena
envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis,
profissionais ou políticos', e igual disposição foi consagrada no art. 65 do
Código Penal.
No sentido da eliminação dos efeitos automáticos das penas,
argumenta-se que eles constituem um sério obstáculo à recuperação social do
deliquente -- que constitui um dos fins essenciais das penas -- e que os seus
efeitos implicam inelutavelmente um carácter infamante e estigmatizante para o
condenado (EDUARDO CORREIA, 'As grandes linhas da reforma penal', in 'Jornadas
de Direito Criminal' e FIGUEIREDO DIAS, 'Os novos rumos da Política Criminal e o
Direito Penal do Futuro').
Com fundamento no art. 30, nº 4, da CRP, têm sido declaradas
materialmente inconstitucionais disposições da lei ordinária que estabelecem a
produção automática de efeitos profissionais, civis ou políticos decorrentes da
aplicação de penas criminais (veja-se, por exemplo, o Ac. do TC com força
obrigatória geral, de 20.4.1986, no DR, I, de 3.6.1986).
Sob pena de violação da lei fundamental, o preceituado no nº 1 do
art. 68 do DL nº 59/93 não pode então ser aplicado automaticamente no caso 'sub
judice', como pretende o recorrente e é jurisprudência dominante no Supremo
Tribunal de Justiça (Acs. de 11.7.1990, Pº 40 682; de 26.9.1991, Pº 41 978; de
12.12.1991, Pº 42 179, 17.12.1992, Pº 42 885; contra, no entanto, os Acs. de
5.6.1991, Pº 41 565, e de 15.7.1992, Pº 42 921).
A expulsão do País, como pena acessória que é, não deve, por
conseguinte, ser decretada como efeito automático da condenação em pena de
prisão por cinco anos, de arguido residente em Portugal há menos de 20 anos; e
só terá lugar em caso de grave violação dos deveres inerentes à sua condição de
estrangeiro (neste sentido, vd. FIGUEIREDO DIAS, 'Novos rumos da Política
Criminal e do Direito Penal Português do Futuro', pág. 346).
As penas acessórias visam, efectivamente, a produção de um fim
específico, para além dos fins gerais de reprovação e prevenção de novos crimes
consignados no art. 72, nº 1, do Código Penal (VITOR FAVEIRO e LAURENTINO
ARAÚJO, 'Código Penal Português Anotado', 1960, pág. 210), e implicam, ainda,
necessariamente, um mal ou uma perda de bens jurídicos para o sujeito passivo
da condenação.
Aplicando esta doutrina ao caso ora em recurso, fácil será provar e
convencer dos reflexos que a pena de expulsão tem na esfera dos direitos
privados do cidadão estrangeiro, mormente na área dos direitos de gozo de
família, de propriedade e creditórios.
Tendo apenas em consideração a prova produzida no caso em apreço,
expulso que seja do País, o arguido perderá necessariamente o seu emprego na
construção civil: desintegrado da sociedade que há mais de 15 anos o acolheu,
sentir-se-á, por certo, desenraizado na que voluntariamente abandonou, em busca
de melhores condições de vida; e ficará ainda praticamente impossibilitado de
exercer o poder paternal sobre os três filhos menores que tem a seu cargo.
A expulsão do território nacional envolveria então para o arguido,
cidadão estrangeiro, a perda -- ainda que temporária -- de direitos civis, de
natureza familiar e profissional, o que a Lei fundamental não permite.
Além dos deveres especiais consagrados no DL nº 59/93, o arguido
está, porém, ainda vinculado à obediência e respeito das leis penais do país
que o acolheu como imigrante. Tal como a grande maioria dos imigrantes
africanos, o arguido veio para Portugal, a fim de aqui trabalhar na construção
civil, em circunstâncias por certo mais vantajosas do que as usufruídas no seu
país natal.
No respeito das leis portuguesas, competia ao arguido não perturbar
a paz social, e evitar brigas e agressões tão cruéis como aquela que levou à
morte do seu adversário e está na origem deste processo.
Temos de concluir, nestas circunstâncias, que o arguido incorreu em
grave violação dos deveres gerais inerentes à sua condição de imigrante, para o
que todavia concorreu o falecido B., que na luta de morte travada com o seu
adversário, produziu nele, também, ferimentos que o obrigaram a tratamento e
internamento hospitalar, e justificaram, no tribunal 'a quo', a atenuação da
culpa do recorrente.
Nestas circunstâncias, não se verifica no caso concreto a
perigosidade e a certeza indispensável da criação de um clima de desconfiança,
no tocante ao respeito pelas leis portuguesas, por forma a inviabilizar a
manutenção da permanência do arguido A. em território nacional (vd., neste
sentido, o já citado Ac. do STJ, de 12.12.1991).
A expulsão do território nacional, produziria, então, consequências
nefastas na esfera dos direitos privados do arguido A., claramente
desproporcionadas em relação à medida da sua culpabilidade, nesta violação
concreta dos seus deveres de cidadão estrangeiro.
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerações, não se
justifica, no caso, a pena de expulsão imposta ao arguido. '
3. Da decisão relativa à expulsão interpôs o Sr.
Procurador-Geral Adjunto, em exercício no STJ, recurso obrigatório para o
Tribunal Constitucional, fundamentando-o nos seguintes termos:
' A decisão recorrida recusou a aplicação do art. 68º, nº 1, do DL
nº 59/83, por violação do nº 4, do art. 30º da Const. da República, no
entendimento de que aquele preceito impunha automaticamente a expulsão do
arguido, do País como consequência inevitável da condenação.
Verifica-se assim a recusa de aplicação automática da pena acessória
de expulsão prevista naquele normativo com fundamento em
inconstitucionalidade, por violação do nº 4, do art. 30 da Const. da República.
A matéria foi oportunamente alegada nos autos.
Admitido o recurso subiram os autos a este
Tribunal onde o Sr. Procurador-Geral Adjunto alegou, concluindo da seguinte
forma:
' 1. Deve julgar-se inconstitucional a norma da alínea c) do nº 1 do
artigo 68º, do Decreto-Lei nº 59/93, de 3 de Março, enquanto aí se prevê a
aplicação imediata da pena acessória de expulsão ao estrangeiro residente no
País há mais de 5 anos e menos de 20 condenado em pena superior a 3 anos de
prisão, por violação do disposto no nº 4 do artigo 30º, da Constituição, desde
que aquele seja titular, como é no caso em apreço, de um direito de permanência
em território português.
2. Deve, assim, confirmar-se o acórdão recorrido, na parte
impugnada. '
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II
FUNDAMENTAÇÃO
4. Ocorreu, entre a decisão de 1ª Instância que aplicou ao
recorrido a pena acessória de expulsão e a decisão do STJ que a revogou, uma
situação de sucessão de leis, decorrente da substituição do artigo 43º., alínea
c), do DL 264-B/81, de 3 de Setembro (a norma aplicada em 1ª Instância), pelo
artigo 68º., nº. 1, alínea c), do DL 59/93, de 3 de Março (v. artigo 116º. do DL
59/93).
A decisão em apreço, do STJ, reportou-se (por a
entender imediatamente aplicável) à norma do referido artigo 68º., sendo,
portanto, a esta (alínea c) do nº. 1 do artigo 68º.) que se refere a questão de
constitucionalidade que importa apreciar.
5. Prescreve a norma em causa:
Artigo 68º
1 - Sem prejuízo do disposto na legislação penal,
será aplicada a pena acessória de expulsão:
....................................................
c) Ao estrangeiro residente no País há mais de 5
anos e menos de 20 condenado em pena superior a 3 anos de prisão.
O Supremo Tribunal -- tendo presente residir o
aqui recorrido, à data da decisão, 'em Portugal há cerca de 15 anos' e ter sido
condenado na pena de 5 anos de prisão -- formulou, relativamente à expulsão, o
critério de que esta, 'como pena acessória que é, não deve (...) ser decretada
como efeito automático da condenação em pena de prisão por cinco anos, de
arguido residente em Portugal há menos de vinte anos', acrescentando que a
mesma, 'só terá lugar em caso de grave violação dos deveres inerentes à sua
condição de estrangeiro'.
Assim, na lógica da decisão recorrida, comporta a
disposição em referência duas interpretações possíveis, sendo uma a aplicação
automática da expulsão, preenchidos os requisitos da alínea c) (ser estrangeiro,
residente em Portugal há mais de 5 anos e menos de 20 e ser condenado em pena de
prisão superior a 3 anos), e outra a que, preenchidos esses requisitos, verifica
ainda se existiu ou não grave violação dos deveres inerentes à condição de
estrangeiro.
A primeira destas interpretações ofende, segundo
o Acórdão recorrido, o artigo 34º., nº. 4, da Constituição, o mesmo não
acontecendo com a segunda. Daí que a decisão, excluindo a primeira, tenha
optado pela segunda, verificando se, em concreto e face à factualidade apurada,
era de decretar ou não a expulsão do recorrido.
Este encadeamento interpretativo levou a que a
opção tomada fosse a de não decretar essa expulsão, por se entender que as
'consequências nefastas' resultantes da medida se apresentavam 'claramente
desproporcionadas em relação à medida da (...) culpabilidade' do recorrido na
'violação dos seus deveres de cidadão estrangeiro'.
Significa isto que, o STJ, tendo detectado na
norma em causa duas dimensões interpretativas possíveis, sendo uma incompatível
e a outra compatível com o texto constitucional realizou, com a escolha que fez
do sentido compatível, uma operação de 'interpretação conforme à Constituição'
(v. Gomes Canotilho, Direito constitucional, 5º. ed., Coimbra 1992, págs.
235/236 e Vitalino Canas, Introdução às Decisões de Provimento do Tribunal
Constitucional, 2ª., ed., Lisboa 1994, págs. 81/82).
A opção pelo sentido conforme à Constituição,
implicando como implicou a recusa de aplicação da norma na sua dimensão
interpretativa inconstitucional, abriu a via do recurso previsto na alínea a)
do nº. 1 do artigo 70º. da LTC (v. Acórdão nº. 266/92, no DR-II de 23/12/92).
6. Constitui, assim, objecto do presente recurso a questão
da constitucionalidade da norma constante do artigo 68º., nº. 1, alínea c), do
DL 59/93, de 3 de Março, enquanto - como refere o Ministério Público a fls. 185
- 'prevê a aplicação imediata da pena acessória de expulsão ao estrangeiro
residente no País há mais de 5 anos e menos de 20 condenado em pena superior a 3
anos de prisão'.
A disposição da Lei Fundamental relativamente à
qual importa posicionar a norma sub judice, consta do nº. 4 do artigo 32º. e
estabelece, não envolver pena alguma 'como efeito necessário a perda de
quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos'.
Funciona na nossa ordem constitucional (artigo
15º., nº. 1) a regra da equiparação entre estrangeiros e cidadãos portugueses
no que tange ao gozo de direitos e sujeição a deveres. Sem cuidar aqui da
exacta definição de quais as excepções constitucionalmente lícitas a esta regra
(v. artigo 15º., nº 2; cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada, 3ª. ed., Coimbra 1993, pág. 135), podemos
assentar abranger o aqui recorrido a garantia constitucional, emergente do
artigo 30º., nº. 4, de que nenhuma pena que lhe seja aplicada envolva, como
efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.
Não estando em causa a expulsão em si (que o
texto constitucional só proíbe relativamente a nacionais - artigo 33º., nº. 1 -
e expressamente admite relativamente a estrangeiros - artigo 33º., nº. 5, há
que questionar o carácter automático desta, na medida em que envolva a perda de
direitos civis, profissionais ou políticos.
País de emigrantes que somos, fácil se nos torna
compreender como a expulsão pode afectar direitos subjectivos de um imigrante
entre nós: desde logo o direito de trabalhar em Portugal e todo o complexo de
situações vantajosas que, para ele, daqui decorrem (melhor situação económica
que nos país de origem, etc.). O carácter vantajoso dessa situação, aliás,
intui-se do interesse que o recorrido, através da posição manifestada no
processo, mostra ter na revogação da expulsão.
Sobre a automaticidade da expulsão (que a decisão
de 1ª. Instância bem ilustra) se pronuncia o Prof. Figueiredo Dias, a propósito
da disposição antecessora (o artigo 43º. do DL 264-B/81) - mas neste particular
substancialmente idêntica - da aqui em causa, em termos de considerar essa
produção 'ope legis' ( é expulso quem preenche os pressupostos formais da
norma), 'mesmo que se torne sempre necessária uma decisão judicial de expulsão',
como irremediavelmente inconstitucional (Direito Penal Português. As
consequências jurídicas do crime. Lisboa 1993, págs. 175/176).
Decorrência do princípio do Estado de direito
democrático, como se refere no Acórdão 127/84 deste Tribunal (DR-II de 12/3/85)
ou do 'princípio político-criminal de luta contra o efeito estigmatizante,
dessocializador e criminógeno das penas', como defende o Prof. Figueiredo Dias
(ob. cit. pág. 159), é indiscutível que a nossa 'Constituição
político-criminal', através do artigo 30º., nº.4, não aceita que a condenação de
alguém (no caso um estrangeiro residente há mais de 5 anos e menos de 20 em
Portugal) em pena superior a 3 anos de prisão, implique sem mais
(automaticamente, necessariamente) a sua expulsão. Conclusão esta à qual,
aliás, tem invariavelmente chegado a jurisprudência deste Tribunal (v., por
exemplo, Acórdãos 434/93 e 442/93, no DR-II de 19/1/94 e 577/94, ainda inédito).
Resta, assim, retirar as necessárias
consequências deste entendimento no caso concreto, não esquecendo que o ora
recorrido, trabalhador migrante em Portugal há cerca de 15 anos (isto em 1992),
detentor de bilhete de identidade, emitido em, 1985 pelas autoridades
portuguesas (v. auto de notícia de fls. 3), residia em Portugal de forma
tutelada pelo direito (o que nos afasta da problemática atinente à expulsão de
quem não é titular de qualquer direito de residir em Portugal, questão analisada
no Acórdão 442/93).
III
DECISÃO
7. Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 1995
José de Sousa e Brito
Luís Nunes de Almeida
Guilherme da Fonseca
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Messias Bento
José Manuel Cardoso da Costa