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Processo nº 595/93
2ª Secção
Relator: Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A ... - invocando um contrato de subempreitada
(celebrado entre si, como subempreiteiro, e a ré, como empreiteira - contrato
que, a dada altura, esta terá deixado de cumprir) e, bem assim, um contrato de
fornecimento de materiais - propôs, no Tribunal Judicial da Figueira da Foz, uma
acção, com processo ordinário, contra O ..., LDª, pedindo a condenação desta na
quantia de 3.859.891$00 (acrescida de juros a partir da data da citação) e
ainda, como litigante de má fé, em indemnização e multa a seu favor (este último
pedido foi formulado na réplica, que o autor pôde apresentar, em virtude de a ré
ter deduzido reconvenção).
Por sentença de 7 de Junho de 1993, foi a ré condenada a
pagar ao autor a quantia de 3.748.095$00 (acrescida de juros, desde a data da
citação, à taxa de 15%); as custas da acção e também as da reconvenção, que ela,
ré, havia deduzido e que improcedeu; e ainda a multa de 100.000$00, por haver
litigado de má fé. (Para o efeito de se fixar a quantia a pagar pela ré ao
autor, a título de indemnização, por ter litigado de má fé, mandaram-se ouvir as
partes).
Nessa sentença, o juiz recusou-se a condenar os
sócios-gerentes da ré nas custas, em multa e em indemnização, por ter entendido
que o artigo 458º do Código de Processo Civil era inconstitucional. Não
fundamentou, porém, esse seu entendimento, limitando-se a remeter para as
páginas 184 e seguintes da obra de LUSO SOARES, Responsabilidade Processual.
2. É desta sentença (de 7 de Junho de 1993) que, ao
abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, vem
interposto o presente recurso pelo Ministério Público.
Neste Tribunal, apenas alegou o Procurador-Geral
Adjunto, que formulou as seguintes conclusões:
1º - O regime estatuído no artigo 458º do Código de Processo Civil não ofende
nenhuma norma ou princípio constitucional, desde que interpretado no sentido de
que a responsabilidade processual aí cominada aos legais representantes da parte
só tem cabimento quando o tribunal se haja previamente certificado, com
garantias suficientes do contraditório, de que actuaram no processo de forma
reprovável, resultando preenchido, com a sua conduta, o conceito de má fé
previsto no artigo 456º do Código de Processo Civil.
2º - Termos em que deverá proceder o presente recurso, determinando-se a reforma
da decisão recorrida, em consonância com o juízo de constitucionalidade da norma
cuja aplicação foi recusada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir a questão de saber
se o artigo 458º do Código de Processo Civil é ou não inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. Dispõe o mencionado artigo 458º do Código de Processo
Civil:
Quando a parte for um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, a
responsabilidade das custas, da multa e da indemnização recai sobre o seu
representante que esteja de má fé na causa.
De acordo com o preceito acabado de transcrever, os
representantes dos incapazes, das pessoas colectivas ou das sociedades, que
tenham agido dolosamente (de má fé) no processo, ficam responsáveis pelo
pagamento da multa e da indemnização, impostas pela litigância de má fé, e bem
assim pelo das custas.
As relações jurídico-privadas devem conformar-se com as
regras da boa fé.
BAPTISTA MACHADO (Tutela da Confiança e 'venire contra
factum proprium', in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 117º, página
232), depois de referir 'o significado profundo do princípio da boa fé (do fides
servare) nas relações entre os homens' e de afirmar que 'o princípio da
confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo' e que 'a ordem
jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de
outrem', acrescenta:
[...] poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da
cooperação entre os homens. Mais ainda: esse poder confiar é logo condição
básica da própria possibilidade da comunicação dirigida ao entendimento, ao
consenso e à cooperação (logo, da paz jurídica).
Correspondentemente com isto, quando houverem que fazer
valer os direitos em juízo, têm as partes que agir com verdade e probidade:
sobre elas impende, com efeito, 'o dever de, conscientemente, não formular
pedidos ilegais, não articular factos contrários à verdade, nem requerer
diligências meramente dilatórias' (cf. artigo 264º, nº 2, do Código de Processo
Civil). Sobre as partes impende, ao cabo e ao resto, um dever geral de boa fé
(cf., neste sentido, ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual
de Processo Civil 2ª edição, Coimbra, 1985, página 477).
A violação deste dever de verdade e probidade constitui
litigância de má fé: 'diz-se litigante de má fé não só o que tiver deduzido
pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, como também o que
tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais
e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente
reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção
da justiça, ou de impedir a descoberta da verdade' (cf. artigo 456º, nº 2, do
Código de Processo Civil).
O litigante de má fé é, pois, aquele que actua com dolo
(de má fé) no processo, fazendo dele - no dizer de MANUEL DE ANDRADE, Noções
Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, página 341 - uma 'utilização
maliciosa e abusiva'. Tal acontece, quando se recorre a juízo em casos em que se
sabe não assistir o direito que se invoca, quando se usam os meios processuais
para fim diverso daquele para que a lei os prevê, e, de um modo geral, quando se
atenta, conscientemente, contra a verdade, por acção ou omissão.
A condenação por litigância de má fé só deve,
obviamente, ter lugar, dando-se à parte (ou, sendo o caso, ao seu
representante), antes de assim ser condenada, a oportunidade de se defender,
para o que tem que ser, previamente, ouvida. Ou seja: uma tal condenação exige
que se observe, no processo, o princípio do contraditório, que - no dizer de
MANUEL DE ANDRADE (Noções Elementares de Processo Civil cit. páginas 364 e 365)
- está ao serviço do princípio da igualdade das partes e consiste em que 'cada
uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a
oferecer as provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o
valor e resultados de umas e de outras'.
O princípio do contraditório, embora não formulado na
Constituição expressamente para o processo civil, não pode, na verdade, deixar
de valer também neste domínio. Ele traduz, com efeito, uma exigência própria da
ideia de Estado de Direito [cf., neste sentido, acórdãos nºs 397/89, 62/91 e
284/91 (publicados no Diário da República, II série, de 14 de Novembro de 1989 e
de 24 de Outubro de 1991, o primeiro e o último, e I série-A, de 19 de Abril de
1991, o segundo)].
A parte que surge no processo a litigar de má fé pode,
no entanto, ser um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade. Nesse caso -
diz ALBERTO DOS REIS (Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, Coimbra,
1949, página 271) -, 'a actividade processual que conta é a do respectivo
representante. É este que age, em nome do representado; se no exercício da acção
ou da defesa puder descobrir-se dolo substancial ou instrumental, há-de
imputar-se ao representante, e não ao próprio incapaz ou à pessoa colectiva'.
Não se trata, assim, de uma responsabilidade do
representante ao lado da do representado, cumulativa com a deste, antes de uma
responsabilidade daquele em vez da deste, uma responsabilidade substitutiva.
É que, nessa hipótese, a decisão de ir a juízo, a
conduta e a estratégia processual adoptadas são da responsabilidade dos órgãos
ou representantes da pessoa colectiva (no caso, dos gerentes da sociedade).
Por isso, se agirem dolosamente (de má fé), são eles
quem deve ser responsável pelo pagamento da multa, da indemnização e das custas
devidas pela litigância de má fé.
A responsabilidade dos gerentes das sociedades (única
que aqui está em causa) é, assim, uma responsabilidade por uma actuação em nome
de outrem.
5. Será, então, constitucionalmente admissível esta
responsabilização dos gerentes pelo pagamento da multa e da indemnização,
impostas pela litigância de má fé, e bem assim pelo pagamento das custas (quanto
a estas - ao menos para certa doutrina: cf. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de
Processo Civil, volume II, Lisboa, 1965, página 378 -, 'as que forem unicamente
resultantes da sua conduta dolosa' e não as da acção)?
O juiz recorrido entendeu que não, mas, como se disse,
não fundamentou minimamente esta sua decisão, pois que nem sequer indicou a
norma ou princípio constitucional violado. Limitou-se, antes, a remeter para as
páginas 184 e seguintes da obra de LUSO SOARES (Responsabilidade Processual).
Só que, neste passo da obra em causa, LUSO SOARES,
apontando, embora, o que considera ser uma inconstitucionalidade, não se está a
referir ao artigo 458º do Código de Processo Civil, mas sim ao artigo 459º do
mesmo Código, que dispõe sobre a responsabilidade do mandatário da parte
(advogado ou solicitador) 'nos actos pelos quais se revelou a má fé'.
Se, porém, o juiz recorrido, tendo recusado aplicação ao
artigo 458º, com fundamento na sua inconstitucionalidade, pretendeu remeter-se
para o comentário de LUSO SOARES a este normativo, então, errou o alvo, pois o
que, a respeito de tal norma, o autor escreve, de interesse para o caso (cf.
páginas 288), é o seguinte:
O dolo do representante do incapaz, pessoas colectivas ou sociedades, previsto
no artigo 458º, implica a responsabilidade processual subjectiva do
representante.
Fica-se, assim, sem se saber em que é que, no entender
do juiz recorrido, consistirá a inconstitucionalidade de que padecerá o
mencionado artigo 458º. E este Tribunal também não consegue descortinar no
preceito em causa a existência de um motivo de incompatibilidade com o texto
constitucional, susceptível de conduzir à sua desaplicação no caso.
De facto, pressupondo a condenação, nele prevista, dos
gerentes das sociedades, como se disse já, que a sua conduta processual seja
dolosa (de má fé), é evidente que tal condenação tem uma óbvia base ética:
respondem, porque violaram, consciente e voluntariamente, o dever de verdade e
de probidade que, ao irem a juízo, sobre eles impendia.
A sua responsabilidade, sendo, embora, uma
responsabilidade por uma actuação em nome de outrem, assenta, assim, na ideia de
culpa, num juízo de censura de um comportamento que o gerente adoptou em nome da
sociedade, que é obra ou 'realização da sua liberdade' - de um comportamento que
ele adoptou como ser livre (e, assim, como 'centro de imputação ético-social de
responsabilidade').
Não pode, pois, ver-se, aí, qualquer incompatibilidade
com o princípio do Estado de Direito -(recte, com a ideia, que nele vai
implicada, de que a responsabilidade - ao menos quando se trate de medidas
sancionatórias - há-de assentar na culpa).
6. É certo que o artigo 458º (e o mesmo sucede com o
artigo 456º) não prevê a prévia audição da parte que, no processo, se condene
como litigante de má fé (ou do seu representante).
Ora - já se disse -, essa prévia audição é essencial,
pois que, sem ela, não pode impor-se-lhe uma sanção, nem decidir-se a causa
contra si. De outro modo, o processo deixará de ser, como o exige a ideia de
Estado de Direito, um processo justo e leal, e a condenação surgirá como uma
condenação‑surpresa (e, assim, injusta, ao menos em termos procedimentais).
O facto de o artigo 458º do Código de Processo Civil não
prever a audição do gerente da sociedade, previamente à sua condenação como
litigante de má fé, não deve, porém, conduzir à recusa da sua aplicação, por
inconstitucionalidade.
Como sublinha o Procurador-Geral Adjunto, nas suas
alegações, 'a plena garantia do princípio do contraditório poderá passar pela
própria audição dos que o tribunal entenda deverem ser condenados como
litigantes de má fé - em termos, de algum modo análogos, aos que o artigo 84º,
nº 6, da Lei nº 28/82 prevê - e não pela recusa de aplicação das normas que
dispõem sobre os pressupostos e o âmbito da responsabilidade processual do
litigante de má fé'. E acrescenta o mesmo Magistrado:
Cumprirá, deste modo, ao juiz, no uso dos seus poderes de direcção do processo,
quando entenda que o respeito pelo princípio do contraditório e o completo
esclarecimento da situação impõem necessariamente a previa audição dos sujeitos
a quem é imputada conduta processual reprovável, adequar a respectiva tramitação
do que considere serem as exigências da Lei Fundamental, realizando as
diligências pertinentes para que o acto processual respeite integralmente os
princípios da Constituição.
7. Concluindo, pois: o artigo 458º do Código de Processo
Civil - interpretado (como deve ser) no sentido de que a responsabilidade
processual, aí cominada para os representantes das partes, só tem lugar,
certificando-se o tribunal, previamente, com observância das regras do
contraditório, de que eles actuaram no processo, de má fé, em termos de a sua
conduta preencher o conceito de litigância de má fé, previsto no artigo 456º do
mesmo Código - não viola qualquer norma ou princípio constitucional.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso e, em consequência,
revoga-se a sentença recorrida, que deve ser reformada em conformidade com o
aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 22 de Fevereiro de 1995
Messias Bento
Bravo Serra
Guilherme da Fonseca
Luis Nunes de Almeida