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Procº nº 153/93 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I- Relatório.
1. No 1º Juízo Correccional da Comarca do Porto, em processo por crime de abuso de liberdade de imprensa, e em consequência do pedido de indemnização civil deduzido, foram submetidos a julgamento o arguido A. e a demandada B., tendo sido proferida sentença, em 23 de Abril de 1992, a qual foi lida nesse mesmo dia na presença dos interessados.
2. Inconformada, a referida demandada civil interpôs recurso daquela sentença para o Tribunal da Relação do Porto, através de requerimento apresentado em 7 de Maio de 1992. Mas o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 11 de Novembro de 1992, decidiu 'não conhecer do recurso, que não se recebe por extemporâneo', pois, tratando-se de processo por crime de imprensa, que tem natureza urgente, o prazo normal de 10 dias para interposição de recurso
é reduzido a metade, nos termos do artigo 52º do Decreto-Lei nº 85-C/75, de 26 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº
377/88, de 24 de Outubro, pelo que 'o prazo de interposição do recurso terminou em 30 de Abril, uma vez que não foi invocado qualquer suposto justo impedimento que viesse possibilitar a prática desse acto processual para além dessa data'.
3. Notificada deste aresto, impugnou-o a recorrente, através de reclamação dirigida ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto, sustentando que aquela redução de prazos só se justifica quanto à parte penal dos processos por crimes de imprensa e só se aplica até ao julgamento, e já não à fase de recurso, pelo que devia ser revogado o acórdão e ordenado o prosseguimento dos autos para conhecimento do recurso.
Conclusos os autos ao Presidente do Tribunal da Relação do Porto - entidade a quem foi dirigida aquela reclamação -,determinou o mesmo a conclusão dos autos ao Relator do acórdão objecto de reclamação (despacho de 25 de Novembro de 1992), o qual, em 30 de Novembro de 1992, proferiu o seguinte despacho:
'Do acórdão questionado não há recurso, não sendo por isso susceptível de reclamação. Aliás, a argumentação do reclamante não tem qualquer suporte legal'.
4. Notificada deste despacho por carta registada expedida em 2 de Dezembro de 1992, interpôs a B., em 17 de Dezembro de 1992, recurso do mesmo para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, nele esclarecendo que:
'2 - A norma sobre cuja legalidade e inconstitucionalidade se pretende que o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL se pronuncie é o artigo 52º do Decreto-Lei nº 85-C/85, de 26 de Fevereiro, conhecido como LEI DA IMPRENSA, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 377/88, de 24 de Outubro, na medida em que o Tribunal recorrido se recusou a aplicar a norma constante do nº 1 do artigo 411º do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Fevereiro, na medida em que, em seu entender, constituiria violação de lei com valor reforçado.
3 - A recusa da aplicação do citado normativo constante do nº 1 do artigo
411º do Código de Processo Penal, por interpretação restritiva do citado artigo
52º do Decreto-Lei nº 85-C/85, de 26 de Fevereiro, além de meramente literal, constitui violação do princípio constitucional consagrado da igualdade dos cidadãos perante a lei, violando-se assim o artigo 13º da Constituição da República Portuguesa; além do mais, essa recusa constitui uma diminuição gravosa e injustificada das garantias de defesa da recorrente, o que constitui violação do nº 1 do artigo 32º da citada Constituição.'
Conclusos os autos ao Desembargador Relator - como autor do acto recorrido -, entendeu este, porém, que os mesmos deviam ser conclusos ao Presidente do Tribunal da Relação (despacho de 4 de Janeiro de 1993). Mas este, por despacho de 5 de Janeiro de 1993, não admitiu o recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
'Pretende interpôr-se recurso para o Tribunal Constitucional.
Invoca-se, como base, o disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 71º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Ora,
Tendo em devida conta que no dispositivo legal citado se refere, expressamente, que cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisões
...'que recusem a aplicação de norma constante de diploma regional, com fundamento na sua ilegalidade por violação do estatuto de região autónoma ou de lei geral da República...', é bem de ver que, no caso dos autos, se não está perante hipótese como a referida.
Não se admite, assim, o recurso interposto.'
5. Notificada deste despacho por carta registada expedida em 6 de Janeiro de 1993, veio a recorrente, no subsequente dia 11, dele reclamar para o Tribunal Constitucional, nos termos do nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82. No requerimento corporizador da reclamação, refere, inter alia, o seguinte:
'2 - Salvo o devido respeito, os fundamentos invocados apenas se compreendem como lapso ou confusão na análise das normas invocadas ou na base de recolha dos dados normativos.
3 - Com efeito, desde logo, o recurso foi interposto ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 70º da citada Lei nº 28/82 e não artigo 71º como se refere no despacho sob reclamação, até por que este normativo apenas contém dois números sem qualquer alínea, devendo ser lapso de escrita, querendo referir-se efectivamente ao artigo 70º.
4 - Assim sendo, deparamos com outra perplexidade. É que a alínea c) do nº
1 do artigo 70º da citada Lei nº 28/82, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, diz textualmente: corpo do nº 1: 'Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais: alínea c) que recusem a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado', sendo este exactamente o caso dos autos.
5 - O texto invocado no despacho sob reclamação refere-se à alínea d) e não c) do citado nº 1 do artigo 70º.
6 - Mas ainda que a recorrente tivesse cometido clamoroso e manifesto lapso na indicação da alínea, como agora aconteceu com o despacho sob reclamação, não era fundamento só por si para indeferir a admissão do recurso, porquanto o nº 2 do requerimento de interposição da requerente é bem explícito quanto ao objecto do recurso que se inscreve claramente na alínea c) do nº 1 do artigo 70º, sendo certo que certamente por lapso o despacho sob reclamação não atendeu à versão dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, que alterou a ordem das alíneas.'
Face a este requerimento, proferiu, em 25 de Janeiro de 1993, o Presidente do Tribunal da Relação do Porto o seguinte despacho:
'1 - Foi manifesto - particularmente na cópia dactilografada - o não entendimento do número do artigo referenciado da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, ainda que admitamos a pouca legibilidade do mesmo no despacho manuscrito.
Aliás, tal deficiente legibilidade encontrava-se logo ultrapassada pela transcrição integral do texto da alínea, na redacção inicial da mesma.
2 - Tendo, agora, em conta a redacção dada ao dispositivo legal em causa pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, tal não significa seja de receber a reclamação deduzida.
Isto porque, ultrapassada a consideração liminar corrigida, conforme logo se põe, face ao disposto no artigo 405º, nº 1, do Código de Processo Penal e ao constante dos autos, o problema da viabilidade legal da reclamação formulada do acórdão proferido.
E tal viabilidade inexiste - como bem refere sucintamente o Mmº Juiz Relator do acórdão (cfr. fls. 4) - porque se não está, como é óbvio, perante
'despacho' em que se não admita ou retenha o recurso ..., condicionante legal determinante para a admissão da reclamação, sim, face a acórdão que não admite recurso.
Nestes termos, não se admite a reclamação formulada'.
Notificada deste despacho por carta registada expedida em 28 de Janeiro de 1993, veio a reclamante, em 3 de Fevereiro seguinte, requerer a remessa dos autos ao Tribunal Constitucional, a quem compete julgar a reclamação, o que foi deferido por despacho do Presidente do Tribunal da Relação do Porto de 8 de Fevereiro de 1993.
6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções neste Tribunal emitiu parecer no sentido do indeferimento da presente reclamação, não sem antes realçar a ocorrência de diversas anomalias na tramitação processual destes autos, facilmente detectáveis no relato feito anteriormente.
7. Corridos os vistos legais, cumpre então apreciar e decidir a presente reclamação.
II - Fundamentos.
8. Como foi salientado, o recurso para o Tribunal Constitucional foi interposto ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, ou seja, por a decisão recorrida ter recusado a aplicação de norma constante de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado. Segundo o requerimento de interposição do recurso, a norma cuja aplicação teria sido recusada teria sido a do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal de 1987, que estabelece o prazo de 10 dias para a interposição dos recursos, e essa recusa de aplicação ter-se-ia fundado na atribuição de valor reforçado à norma do artigo 52º, nº 2, do Decreto-Lei nº 85-C/85, na redacção do Decreto-Lei nº 377/88, que, nos processos por crimes de imprensa, reduz a metade qualquer prazo previsto no Código de Processo Penal, salvo se for de 24 horas.
Não subsistem dúvidas de que o recurso, interposto nos termos assinalados, era inadmissível. Várias razões concorrem para esta solução.
8.1. Em primeiro lugar, como foi acima referido, tal recurso foi interposto do despacho do Desembargador Relator de 30 de Novembro de 1992.
Ora, este despacho - que declarou insusceptível de reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto o Acórdão deste Tribunal de 11 de Novembro de 1992 - não fez aplicação do artigo
52º, nº 2, da Lei de Imprensa, nem recusou a aplicação do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal de 1987. Esse despacho limitou-se, como bem salienta o Exmº Procurador-Geral Adjunto, a invocar implicitamente o artigo 400º, nº 1, alínea d), daquele Código - que dispõe não ser admissível recurso de acórdãos das relações em recursos interpostos de decisões proferidas em primeira instância - e a extrair daí a inadmissibilidade da 'reclamação', aliás carecida de qualquer suporte legal.
Não tendo esse despacho recusado a aplicação de qualquer norma, designadamente com fundamento em ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, nunca dele podia caber recurso ao abrigo da alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
8.2. Em segundo lugar, mesmo que se admitisse que a recorrente cometeu um lapso, ao referir expressamente o despacho do Desembargador Relator, e que, na verdade, o que pretendia era interpor recurso do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Novembro de 1992, nem assim o recurso era admissível. Na verdade, a entender-se que a decisão recorrida é este aresto e não aquele despacho, então o recurso deverá ser considerado, por um lado, extemporâneo e, por outro lado, não subsumível na previsão da alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82.
8.2.1. Extemporâneo, porque, sendo o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional de 8 dias (artigo 75º, nº 1, da Lei nº 28/82), ele estava há muito excedido, quando, em 17 de Dezembro de 1992, foi apresentado o respectivo requerimento de interposição (note-se que, apesar de não estar documentada nos autos a data da notificação do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Novembro de 1992 à recorrente, ela foi seguramente anterior a 20 de Novembro de 1992, data da apresentação da
'reclamação' daquele aresto para o Presidente do Tribunal da Relação do Porto). E é manifesto que a apresentação de uma 'reclamação' processualmente inadmissível não tem a virtualidade de fazer funcionar a regra especial do nº 2 do artigo 75º da Lei nº 28/82.
8.2.2. Não subsumível no fundamento de recurso previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, porque, mesmo que se admita que, ao aplicar o artigo 52º, nº 2, da Lei de Imprensa, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Novembro de 1992 afastou a aplicação do artigo 411º, nº 1, do Código de Processo Penal, tal 'desaplicação' não se baseou na ilegalidade desta última norma, por pretensa violação de lei com valor reforçado (que, no caso, seria aquela norma da Lei de Imprensa).
Ora, no caso sub judicio, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11 de Novembro de 1992 não considerou a Lei de Imprensa (e o seu artigo 52º, nº 2) lei reforçada em relação ao Código de Processo Penal (e a seu artigo 411º, nº 1). Limitou-se a considerar aquela como lei especial face a esta, que é a lei geral. E foi com base nesta especialidade
- e não em qualquer prevalência constitucionalmente consagrada - que a aplicou em detrimento do regime geral.
Não se configura, pois, qualquer situação de recusa de aplicação de normas de acto legislativo com fundamento na sua ilegalidade por violação de lei com valor reforçado, pelo que, in casu, era inadmissível o recurso previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82.
8.3. O que, em direitas contas, a recorrente pretendia questionar era, como vinca o Exmº Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, a constitucionalidade do artigo 52º, nº 2, da Lei de Imprensa, que, em seu entender, violaria o princípio da igualdade e as garantias de defesa, consagrados nos artigos 13º e 32º, nº 1, da Constituição.
Mas, nesta perspectiva, o recurso adequado seria o previsto na alínea b) do nº 1 do citado artigo 70º. Só que não foi dessa espécie de recurso que a recorrente lançou mão, para o que, aliás, seria exigível que tivesse suscitado, 'durante o processo' (isto é, antes de proferida a decisão recorrida), a questão da inconstitucionalidade dessa norma, aplicada pelo tribunal a quo, ou então que demonstrasse não ter tido oportunidade processual de a suscitar.
Deve, assim, concluir-se que o recurso interposto para este Tribunal pela B., era inadmissível, pelo que, embora por fundamentos diversos dos invocados no despacho reclamado, se deve indeferir a presente reclamação.
III - Decisão.
9. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação, condenando-se a reclamante em custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 unidades de conta.
Lisboa, 26 de Outubro de 1994
Fernando Alves Correia José de Sousa e Brito Luís Nunes de Almeida Messias Bento Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa