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Processo n.º 203/12
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrida B., o relator proferiu a Decisão Sumária n.º 183/2012, que decidiu não conhecer do objeto do recurso, com os seguintes fundamentos:
«(…) 2. A recorrente indica como objeto do recurso as normas contidas nos artigos 1377.°, n.ºs 2,3 e 4, conjugadas com os artigos 1376.°, n.º 2, e 1374.°, alínea a), do CPC e ainda conjugadas com os preceitos contidos nos artigos 2174.°, n.º 2, 334.º e 335.°, n.º 2, do Código Civil, conjugada com as normas contidas nos artigos 2179.°, 2182.°, 2l87.°, 2204.° e 2205.°, quando interpretadas no sentido de: «Mas licitando-se em mais de uma verba seria também negar o direito de licitação se o licitante não pudesse, em primeiro lugar, escolher de entre as verbas em que licitou, aquela que há de compor o seu quinhão, não se verificando abuso do direito, ainda que, mercê desse exercício venha a escolher um bem indivisível, objeto de licitação, cuja metade do valor seja inferior ao numerário que tem de repor de tornas, ou, ainda que, mercê dessa mesma escolha o valor do bem seja superior, e em muito, ao valor do ativo da herança do de cujos.»
Acontece que, sob a aparência formal de interpretação, e apresentando como suporte normativo um vasto conjunto de preceitos legais do Código Civil e do Código de Processo Civil, a recorrente o que faz é transcrever, sem qualquer distanciamento abstratizante, os dados concretos do caso. Ou seja, não vem impugnado, do ponto de vista da sua constitucionalidade, um critério normativo, de índole generalizante, que se possa autonomizar das circunstâncias específicas do caso concreto. Pelo contrário, a “interpretação” indicada é incidível das particularidades do concreto litígio decidido pelo acórdão recorrido, em que esteve em causa a licitação “em mais de uma verba”, a escolha de “um bem indivisível” que foi, ele próprio, “objeto de licitação” e cuja “cuja metade do valor seja inferior ao numerário”, obrigando a “repor tornas” e que “mercê dessa escolha o valor do bem seja superior, em muito, ao valor do ativo da herança do de cujus”.
Em suma, a interpretação indicada é insuscetível de fornecer um critério de decisão aplicável a outros casos, com particularidades diversas do aqui em causa.
Como é sabido, o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade só pode ter por objeto normas ou interpretações normativas, nunca podendo incidir sobre a decisão recorrida, em si mesma considerada.
Não estão, por isso, verificados os pressupostos necessários ao conhecimento do objeto do recurso. (…)»
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«(…) 1) A Reclamante colocou a questão da constitucionalidade das normas contidas no art.º 1377.°/2,3,4, conjugadas com o art.º 1376.°/2 e 1374.º/a do CPC e ainda conjugadas com os preceitos contidos nos art.° 2174.°/2, 334.° e 335.°/2 do Código Civil, conjugada com as normas contidas nos art.ºs 2179.°, 2182.°, 2187.º, 2204.° 2205.º, interpretadas no sentido de: 'Mas licitando-se em mais de uma verba seria também negar o direito de licitação se o licitante não pudesse, em primeiro lugar, escolher de entre as verbas em que licitou, aquela que há de compor o seu quinhão, não se verificando abuso do direito, ainda que, mercê desse exercício venha a escolher um bem indivisível, objeto de licitação, cuja metade do valor seja inferior ao numerário que tem de repor de tornas, ou, ainda que, mercê dessa mesma escolha o valor do bem seja superior, e em muito, ao valor do ativo da herança do de cujos.'.
2) Entendeu-se na decisão ora reclamada que não foi impugnado, do ponto de vista da sua constitucionalidade, um critério normativo de índole generalizante, sendo a interpretação indicada incidível do concreto litigio decidido pelo acórdão recorrido, concluindo-se ser insuscetível de fornecer um critério de decisão aplicável a outros casos.
3) Salvo o devido respeito, que é muito, não se pode considerar que se está perante um juízo subsuntivo atinente às particularidades de um caso concreto
4) Na verdade, o que o que se sindicou foram regras abstratas e genéricas e de caráter substantivo que têm como escopo corrigir o excesso de licitações e estabelecer o equilíbrio de quinhões.
5) As leis têm-se como gerais e abstratas, se atentarmos na regra contida no disposto no n.º 2 do disposto no art.º 1377.° do CPC, ela própria diz-nos que:
'Se algum interessado tiver licitado em mais verbas do que as necessárias para preencher a sua quota, a qualquer dos notificados é permitido requerer que as verbas em excesso ou algumas lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, até ao limite do seu quinhão.'
6) É a própria norma que dita como regra que o licitante em mais de uma verba das necessárias para preencher o seu quinhão permite aos demais interessados requerer que as verbas em excesso lhe sejam adjudicadas pelo valor resultante da licitação, regra cuja interpretação acolhida no douto acórdão recorrido se veio de sindicar e não a concreta decisão.
7) Se atentarmos na segunda regra contida no n.º 3 do art.º 1377.° do CPC, a mesma dispõe que: 'O licitante pode escolher, de entre as verbas em que licitou, as necessárias para preencher a sua quota, e será notificado para exercer esse direito, nos termos aplicáveis do n.º 2 do artigo anterior'
8) Também nesta norma é imposto limites ao direito de escolha do licitante, fixados no n.º 2 do art.º 1376.° do CPC mandando este último preceito aplicar os princípios estabelecidos na lei civil que dispõe sobre o regime da redução das liberalidades por inoficiosidade estatuído no art.º 2174.° do Cód. Civil, equiparando a figura de herdeiro legitimário à do interessado credor de tornas. Preceitos que são expressão dos princípios da igualdade, proporcionalidade e equilíbrio que devem presidir na partilha e do princípio da proibição da ofensa da legítima, e cuja interpretação acolhida no douto acórdão em crise se têm por violados.
9) A terceira regra contida no n.º 4 do art.º 1377.° do CPC, diz-nos que: 'Sendo o requerimento feito por mais de um interessado e não havendo acordo entre eles sobre a adjudicação, decide o juiz, por forma a conseguir o maior equilíbrio dos lotes, podendo mandar proceder a sorteio ou autorizar a adjudicação em comum na proporção que indicar.”
10) De igual modo, esta terceira regra tem por escopo estabelecer o justo equilíbrio de quinhões com os limites imposto no art.° 1376.°/2 do CPC, face ao disposto no art. 1377.°/3 do CPC, condicionando o licitante ao regime do disposto no art.º 2174.° do CC, impedindo-o de escolher um bem indivisível, objeto de licitação, cuja metade do valor seja inferior ao numerário que tem de repor em tornas.
11) Alcança-se, face ao conteúdo das normas supra citadas que o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade interposto pela Recorrente não incide sobre a decisão recorrida em si mesma, e sim sobre a interpretação normativa que foi feita das indicadas normas, já que, o processo de composição de quinhões se funda na necessidade de primária justiça de corrigir a licitação, de acautelar os interesses dos menos abonados, em que só é admitido a escolha por parte do licitante que não se traduza num desapossamento forçoso, sendo as próprias normas supra indicadas que regulam e regem esse processo de composição de quinhões impondo critérios que se referem expressamente a 'licitação excessiva', pluralidade de verbas ou mais de uma verba, conclusão que resulta da gramática dos preceitos 'mais verbas', 'as verbas em excesso, 'as verbas em que licitou', (Cfr. art.º1373.º do CPC), 'bens indivisíveis', 'Sendo os bens indivisíveis, se a importância da redução exceder metade do valor dos bens, estes pertencem integralmente ao herdeiro legitimário (...)' (Cfr. art.º 1373.º do CPC e art.º 2174.º do CC).
12) Na verdade as particularidades apontadas como tratando-se de dados do concreto caso, mais não representam do que as particularidades que são próprias e especificas da lei que regula o regime de licitações em inventário e o processo de composição dos quinhões hereditários, com o caráter generalizante e abstrato que lhe é próprio, pelo que aplicável a outros casos.
13) A interpretação das normas em questão no sentido acolhido no douto acórdão recorrido por desconforme com os princípios que lhe são imanentes e que têm consagração constitucional só pode ser tida como inconstitucional.
Face ao exposto, resulta claro que o que está aqui em questão não é a decisão judicial em si mesma considerada e uma operação subsuntiva das particularidades do caso concreto, mas sim a dimensão interpretativa extraída das normas jurídicas invocadas e que o STJ aplicou ao caso concreto, em desconformidade patente com o vertido na Lei Fundamental, o que admite - e impõe - controlo normativo da constitucionalidade por parte desse Tribunal Constitucional .
Termos em que, e nos melhores de Direito, deve a presente reclamação para a Conferência ser julgada procedente e, consequentemente, tomar o Tribunal Constitucional conhecimento do recurso apresentado pela Recorrente, tudo com as devidas consequências legais. (…).»
3. A recorrida não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada decidiu não conhecer do objeto do recurso com fundamento na falta de normatividade da questão objeto do recurso.
Na presente reclamação, a reclamante nada invoca que permita infirmar esta conclusão, limitando-se a apontar as “interpretações” que, em seu entender, devem ser retiradas dos vários preceitos legais em causa (cfr. pontos 5) a 10) da reclamação).
Ora, cabia à recorrente, ora reclamante, enunciar minimamente a interpretação normativa extraída desse conjunto vasto de preceitos legais, efetivamente aplicada pela decisão recorrida e cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada.
Pelas razões que constam da decisão sumária reclamada, a reclamante não logrou suscitar e enunciar uma tal interpretação normativa. O que faz, recolhendo e retratando as particularidades casuísticas da situação em concreto (ainda que apresentando-as formalmente em veste de dimensão normativa), é apontar o critério que o tribunal recorrido deveria ter seguido para evitar “negar o direito à licitação”. E a melhor confirmação de que esse critério hipoteticamente enunciado (veja-se a forma condicional do verbo utilizado) não se distancia dos contornos privativos do caso da reclamante é a rejeição, constante desse critério, da verificação de um “abuso do direito”, juízo que, como se sabe, só é possível formular em face das circunstâncias concretas de um determinado caso.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 12 de junho de 2012.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.