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Proc. nº 600/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., casado, pastor, residente no lugar de
-------------, freguesia -----------, concelho de Bragança, foi sancionado com a coima de 25.000$00, por decisão de 13 de Maio de 1992 da Câmara Municipal de Bragança, por ter cometido em 19 de Janeiro de 1992 uma contra-ordenação prevista no art. 11º, § único, da Postura Municipal de Bragança sobre Apascentação e Divagação de Animais, permitindo que o seu rebanho de gado lanígero pernoitasse num barracão situado no interior daquela povoação de
--------------.
Notificado desta decisão administrativa, veio o autor da contra-ordenação interpor dela recurso, mediante impugnação judicial, para o Tribunal Judicial de Bragança, considerando que a norma sancionatória que fundamentava a decisão administrativa se afigurava inadequada 'a letra e ao espírito da Constituição da República Portuguesa, sendo por isso inconstitucional', por violação dos arts. 13º, 2º, 9º, 47º, nº 1, 58º, nº 3, b),
62º, nº 1, 81º, als. a), b), c), e d), e 96º da Lei Fundamental.
O recurso veio a ser julgado parcialmente procedente por despacho do Sr. Juiz do Tribunal Judicial de Bragança, proferido em 6 de Julho de 1992, vindo a ser reduzida a coima para 5.000$00. Relativamente à questão de inconstitucionalidade suscitada, veio a mesma a ser julgada improcedente nos seguintes termos:
'Nenhuma inconstitucionalidade existe.
O art. 13º da C.R.P. consagra o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei.
A postura dá o mesmo tratamento a todos os cidadãos naquelas circunstâncias.
A haver discriminação seria dos animais já que há um tratamento diferente para os animais de gado lanígero e caprino relativamente a todos os outros animais.
Mas, talvez por deficiência nossa, não vemos que algum preceito constitucional trate da discriminação dos animais.
Igualmente não viola o art. 2º da C.R.P. já que se respeita o Estado de Direito Democrático, tendo a postura sido aprovada pelo órgão com competência para tal, cuja legitimidade emana da sua eleição por escrutínio universal, directo e secreto.
O art. 9º al d) define uma das tarefas fundamentais do Estado, que é a de promover o bem estar e qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses.
Não se alega nem se demonstra em que é que a postura contradiz o preceito ou as directivas do Estado no sentido da tal promoção do bem estar.
O art. 47º nº 1 da C.R.P. consagra o princípio da liberdade de escolha de profissão.
A Postura não proíbe ninguém de escolher a profissão de pastor.
Mas, escolhida, terá de se sujeitar às regras estabelecidas, como acontece em todas as profissões.
Acresce que o interesse colectivo, que tem de sobrelevar aos interesses individuais, impõe que se ditem regras de higiene pública, que estão subjacentes à Postura.
O que acaba de se dizer vale relativamente ao art. 58º nº 1 e 3 al. b) da C.R.P.. Todos podem escolher a profissão de pastor, não estando limitados em função do sexo ou de outras condições.
A postura também não põe em causa a propriedade quer do rebanho quer do estábulo. Respeita integralmente essa propriedade. O que não permite é que este seja utilizado por aquele em determinadas condições, e tendo em vista o interesse público que ao Estado compete salvaguardar. Conforma-se, pois, com o art. 62º da C.R.P..
O artº 81º é uma norma dirigida ao próprio Estado, programática, que este há-de pôr em execução.
E igualmente se conforma com o art. 96º da C.R.P. já que nenhum dos objectivos aí definidos esta posto em causa.
A postura também não viola o conteúdo dos arts. 1305º, 1306º e
1308º do C. Civil' (fls. 26 - 27 dos autos)
2. Inconformado com este despacho, dele interpôs o sancionado recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70º, nº 1, alínea b), da Lei deste Tribunal.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 30.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, nele tendo apresentado alegações o recorrente e o Ministério Público.
O recorrente formulou as seguintes conclusões:
'A) O parágrafo único do art. 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais do Município de Bragança, que fundamenta a aplicação da coima pela autoridade administrativa e o despacho que decidiu o recurso de impugnação judicial, que manteve a aplicação da mesma, é inconstitucional por violador do princípio de igualdade consagrado no art. 13º da C.R.P.;
B) A mesma norma não se conforma ainda (ao restringir o exercício de direitos e ao coarctar os objectivos aí consagrados) com os arts. 2º, 9º d), 47º nº 1, 58º nº 3 b), 81º a), b), c) e d) e 96º da Constituição;
C) São ainda violados, por inexistência de regulamentação da referida Postura Municipal, os princípios gerais de Direito da Segurança e Estabilidade jurídicas, bem como as justas expectativas dos titulares de relações jurídicas validamente constituídas, por impossibilidade prática e efectiva de adaptação, com certeza e segurança, à nova realidade pretendida pela norma;
D) Sendo o parágrafo único do art. 11º da já referida Postura Municipal inconstitucional, carece o mesmo de validade - art. 3º nº 3 da CRP, que se repercute no despacho-decisão sub judice.
E) Deve ser concedido provimento ao presente recurso, determinando-se a reformulação da decisão recorrida em conformidade com a decisão que se veio a proferir no presente recurso'. (a fls. 35º vº - 36).
O Representante do Ministério Público sustentou a plena conformidade constitucional da norma impugnada, considerando que a mesma não violava nem o princípio da igualdade, nem qualquer outro preceito ou princípio constitucional, não sendo arbitrária ou desrazoável a concreta proibição nele estabelecida.
4. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar o presente recurso.
II
5. Dispõe o art. 11º da Postura Municipal sobre Apascentação e Divagação de Animais, aprovada em reunião da Câmara Municipal de Bragança em 11 de Abril de 1989 e na sessão da Assembleia Municipal de 2 de Novembro de 1989 e publicada por Edital de 17 de Janeiro de 1990:
'Na cidade de Bragança, é proibido o estacionamento de gado ovino, caprino, bovino, cavalar, muar, asinino e suíno, fora do lugar destinado ao campo da feira ou dos locais ou parques de estacionamento a eles destinados, salvo para carga e descarga, sob pena de coima de 500$00 a 2.500$00.
§ único - É expressamente proibida a estabulação ou pernoita de gado lanígero ou caprino, dentro das povoações, sob pena de ser aplicada ao transgressor a coima de 5.000$00 a 25.000$00'.
6. Antes de se apreciar a questão suscitada de inconstitucionalidade, importa decidir se esta postura municipal em que se integra a norma impugnada (§ único do art. 11º) é conforme à Constituição, encarada no conjunto das normas que a integram, isto é, enquanto acto normativo de natureza regulamentar. Está-se, efectivamente, perante um conjunto de regra gerais e abstractas, dimanado de um órgão administrativo, no desempenho da função administrativa, para se utilizar a noção de regulamento perfilhada por Afonso Rodrigues Queiró.
Ora, o nº 7 do art. 115º da Constituição dispõe que os 'regulamentos devem indicar expressamente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão'.
Gomes Canotilho fala no princípio da precedência da lei ou da primariedade da lei, consagrado na norma acabada de transcrever, referindo, a este propósito o escopo desse número do art. 115º:
'(1) a precedência da lei relativamente a toda a actividade regulamentar; (2) dever de citação da lei habilitante por parte de todos os regulamentos. Esta disciplina é, em princípio (...), extensiva a todas as espécies de regulamentos, incluindo os chamados regulamentos independentes (cfr. art. 115º/6 e 7), isto é, aqueles cuja lei se limita a definir a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão' (Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, 1991, pág. 924).
Este princípio obteve, assim, consagração no nº 7 do art. 115º da Lei Fundamental, norma introduzida pela primeira revisão constitucional (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª ed., 2º volume, Coimbra, 1985, págs. 65-67), parecendo achar-se proibidos regulamentos autónomos na nossa ordem jurídica (sobre este ponto, aliás controvertido, vejam-se Afonso Rodrigues Queiró, Teoria dos Regulamentos, in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXVII, 1981, págs.
14 e segs.; Sérvulo Correia, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 198 e segs.; J. Coutinho de Abreu, Sobre os Regulamentos Administrativos, Coimbra, 1987, págs. 74 e segs.).
A assembleia municipal tem competência para elaborar posturas e regulamentos, de harmonia com a legislação respeitante à organização, atribuições e competências das autarquias locais (art. 39º, nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 100/84, de 29 de Março, Lei das Autarquias Locais, na redacção dada pela Lei nº 18/91, de 12 de Junho; vejam-se ainda, quanto ao aspecto objectivo, as atribuições das autarquias locais constantes do art. 2º, nº 1, alíneas b), d) e i) da mesma Lei das Autarquias Locais).
Simplesmente, do regulamento em apreciação, na sua publicação oficial, não consta qualquer indicação da norma ou normas que definem a competência subjectiva e objectiva para a sua emissão. Há-de, assim, considerar-se que todo o regulamento - e não só o seu art. 11º, disposição aplicada pela decisão recorrida - viola o nº 7 do art. 115º da Constituição e tem de considerar-se, por isso, inconstitucional.
Como se escreveu no Acórdão nº 76/88 deste Tribunal, a propósito de um regulamento independente emanado de uma câmara municipal:
'Para a perfeita compreensão do sentido e alcance do preceito [o nº 7 do art.
115º da Constituição], indispensável é estabelecer-se o confronto do nº 7 com o nº 6 do artigo 115º.
De facto, enquanto o nº 6 do artigo 115º da CRP estipula que «os regulamentos do Governo revestem a forma de decreto regulamentar quando tal seja determinado pela lei que regulamentam, bem como no caso de regulamentos independentes», limitando, por conseguinte e de modo expresso, a determinação dele constante aos regulamentos do Executivo, já o nº 7 do mesmo artigo se refere a regulamentos tout court, sujeitando, assim, todo e qualquer regulamento, independentemente da consideração do órgão ou da autoridade donde tiveram emanado, à imposição de tipo alternativo nele prevista.
É pois, claro, face a este simples cotejo normativo, que abrangidos pela regra bidireccional do nº 7 do artigo 115º da CRP estão todos os regulamentos, nomeadamente os [...] dos órgãos próprios das autarquias locais (artigo 242º da CRP). Todos estes regulamentos, de um ou de outro modo, estão umbilicalmente ligados a uma lei, à lei que necessariamente precede cada um deles, e que, por força do disposto no nº 7 do artigo 115º da CRP, tem de ser obrigatoriamente citada no próprio regulamento'. (in Diário da República, I Série, nº 93, de 21 de Abril de 1988; no mesmo sentido, vejam-se ainda os acórdãos nºs 63/88 e
307/88, o primeiro publicado na II Série do mesmo Diário, nº 108, de 10 de maio de 1988 e o segundo na I Série, nº 18, de 21 de Janeiro de 1989).
Tem, assim, de concluir-se pela ilegitimidade constitucional do presente regulamento, em virtude de um vício de ordem formal, a não citação expressa e, portanto, a não individualização do seu fundamento legal, no caso a ausência da indicação das normas que conferiam competência subjectiva e objectiva à identificada assembleia municipal para o editar. Ainda que se pudessem identificar, com elevado grau de probabilidade, as normas da Lei das Autarquias Locais que habilitaram o órgão autárquico a aprovar este regulamento, a verdade é que a inconstitucionalidade formal se mantém, 'pois a função da exigência de identificação expressa consiste, não apenas em disciplinar o uso do poder regulamentar (obrigando o Governo e a Administração a controlarem, em cada caso, a habilitação legal de cada regulamento), mas também em garantir a segurança e a transparência jurídicas, sobretudo relevantes à luz da principologia do Estado de direito democrático (...)' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 2º vol., pág. 67). Em hipótese semelhante, veja-se a solução idêntica perfilhada no Acórdão nº 160/93 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II Série, nº 84, de 10 de Abril de 1983).
7. Alcançado este juízo sobre a inconstitucionalidade formal da norma aplicada pelo acórdão recorrido, torna-se despiciendo prosseguir na análise do objecto do recurso, no que toca às invocadas inconstitucionalidades.
A idêntico juízo chegaram os Acórdãos nºs 196/94,
197/94 e 198/94, tirados pela 2ª Secção deste Tribunal, e ainda inéditos.
III
8. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, revogando-se em consequência o despacho recorrido.
Lisboa, 22 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa