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Processo n.º 659/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido B., foi interposto recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, de despacho proferido pela Secção Única do Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, em 16 de maio de 2011 (fls. 90 e 90-verso), que julgou improcedente arguição de nulidade de sentença, proferida pelo mesmo Tribunal, em 23 de março de 2011 (fls. 77 a 78-verso), que concedeu provimento a pedido, formulado pelo recorrido (fls. 36 a 38), de impugnação de decisão administrativa de concessão de apoio judiciário ao recorrente (fls. 30 e 30-verso).
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1ª - Por sentença proferida pelo Tribunal Judicial de São Pedro do Sul, no âmbito do Recurso de Impugnação do apoio judiciário do Recorrente A., processo nº. 288/06.3TBSPS-B, foi concedido provimento ao recurso e por conseguinte, foi julgado improcedente o pedido formulado pelo Recorrente para a concessão do benefício do apoio judiciário.
2ª - O Recorrente A. uma vez notificado de tal sentença, veio aos autos 288/06.3TBSPS-B, expor que não foi notificado da apresentação de uma impugnação por parte do Recorrido B. quanto à decisão de concessão de apoio judiciário ao Recorrente; não foi também notificado da decisão da segurança social a manter a concessão de proteção jurídica; não foi notificado para se pronunciar sobre a impugnação de tal decisão; só com a notificação da sentença a julgar improcedente o pedido para a concessão do benefício do apoio judiciário, é que o ora Recorrente tomou conhecimento de que foi apresentada impugnação à decisão de apoio judiciário pelo Recorrido B., embora continue a desconhecer o seu conteúdo, bem como a data da sua apresentação nos serviços da segurança social.
3ª - Acrescentou ainda o Recorrente A. no requerimento supra referido que com esta situação foi-lhe negado o direito constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, nos termos do art. 20° nº. 1, 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa e art. 10º Declaração Universal dos Direitos do Homem; não foi assegurada a igualdade das partes nos termos do art. 3° -A do Código de Processo Civil e 13º da Constituição da República Portuguesa e não foi garantido o direito ao contraditório que se encontra plasmado no art. 3° do Código de Processo Civil, o que gera a nulidade da sentença.
4ª - Por último invocou o Recorrente no seu requerimento a inconstitucionalidade do art. 28° nº. 4 da Lei nº. 34/2004, de 29 de julho, atualizada pela Lei nº. 47/2007, de 28 de agosto (Lei do Apoio Judiciário) interpretado no sentido em que o juiz pode decidir concedendo provimento, nos casos em que a impugnação é apresentada nos termos do nº. 5 do art. 26° pela parte contrária e sem que ao beneficiário do apoio judiciário seja dado conhecimento sequer da impugnação e sem que lhe seja dada a possibilidade de exercer o contraditório, pois viola entre outros, o art. 20° nº. 1, 2 e 4 da CRP, art. 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 3°-A do Código de Processo Civil, art. 13º da Constituição da República Portuguesa e art. 3° do Código de Processo Civil.
5ª - No seguimento do requerimento do Recorrente A. foi proferido despacho pelo Tribunal com a referência 638240, o qual considerou não assistir razão ao Recorrente, julgou improcedente a arguição e condenou o Recorrente nas custas do incidente.
6ª - Segundo o teor dos artigos 26° nº. 5 e art. 28° nº. 4 da Lei nº. 34/2004, de 29 de julho, atualizada pela Lei nº. 47/2007, de 28 de agosto (Lei do Apoio Judiciário), é possível à parte contrária impugnar uma decisão de concessão de apoio judiciário, ser proferida uma decisão pela Segurança Social a manter ou revogar a concessão de apoio, serem obtidos elementos de prova e ser proferida sentença pelo Tribunal sem que o destinatário da decisão, isto é, o beneficiário do apoio judiciário tome disso conhecimento o que viola princípios estruturantes como o princípio constitucional de acesso ao direito e aos tribunais, princípio da igualdade das partes (enquanto o impugnante B. teve direito a conhecer os atos que foram sendo praticados no âmbito do recurso de impugnação e teve direito de alegar e requerer o que entendeu por bem, a Recorrente não teve tal direito, logo as partes não se situam numa posição de plena igualdade) e o princípio do direito ao contraditório (dado que não só foi omitido o conhecimento ao Recorrente de que tinha sido impugnada a decisão que lhe concedeu o apoio judiciário, como lhe foi coartado o direito à audição antes de ser proferida a sentença e o direito de resposta, isto é, conhecer todos os atos praticados e a possibilidade de tomar posição sobre eles).
7ª - Em suma, é a nosso ver, inconstitucional o art. 28° nº. 4 da Lei nº. 34/2004, de 29 de julho, atualizada pela Lei nº. 47/2007, de 28 de agosto quando interpretado no sentido em que o juiz pode decidir concedendo provimento, nos casos em que a impugnação do apoio judiciário é apresentada nos termos do nº. 5 do art. 26° pela parte contrária e sem que ao beneficiário do apoio judiciário seja dado conhecimento sequer da impugnação e sem que lhe seja dada a possibilidade de exercer o contraditório, pois viola os artigos 20° nº. 1, 2 e 4 da CRP, art. 10° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 3°-A do Código de Processo Civil, art.13° da Constituição da República Portuguesa e art. 3° do Código de Processo Civil.» (fls. 106 a 108).
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos juntar contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A norma cuja fiscalização de constitucionalidade se requer resulta de interpretação normativa extraída do seguinte preceito da Lei do Apoio Judiciário (originariamente aprovada pela Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, de acordo com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto):
“Artigo 28º
Tribunal competente
(…)
4 – Recebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso disso, e imediatamente conclusa ao juiz que, por meio de despacho concisamente fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade ou manifesta inviabilidade.
(…)”
O recorrente fixou o objeto do presente recurso na interpretação de tal preceito legal em termos tais que o “juiz p[udesse] decidir concedendo provimento, nos casos em que a impugnação do apoio judiciário é apresentada nos termos do nº. 5 do art. 26° pela parte contrária e sem que ao beneficiário do apoio judiciário seja dado conhecimento sequer da impugnação e sem que lhe seja dada a possibilidade de exercer o contraditório”.
Esta mesma questão de constitucionalidade foi, recentemente, objeto de Acórdão por parte da 2.ª Secção deste Tribunal. Trata-se do Acórdão n.º 658/2011, de 22 de dezembro de 2011, no qual se disse o seguinte:
“(…)
Ora, a impugnação judicial de ato administrativo, como processo jurisdicional que é, deve obedecer às regras do processo equitativo imposto pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
Entre elas encontra-se indiscutivelmente a regra do contraditório, entendida como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento da lide, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, poderem influir na decisão do processo.
Mediante este princípio, num processo jurisdicional, previamente à prolação da decisão, deve ser conferida às partes a possibilidade de apresentar ao tribunal as razões que sustentam a sua posição, de modo a que os seus interesses não possam vir a ser preteridos sem a sua audição.
Daí que, tendo sido impugnada perante um tribunal a decisão administrativa que concedeu apoio judiciário a uma parte processual, pela contraparte nesse processo, antes que o tribunal decida sobre o mérito da impugnação, o beneficiário da proteção jurídica deve ser ouvido sobre as razões expostas na impugnação, sob pena de violação do referido princípio do contraditório.
O facto do requerente do apoio judiciário já ter exposto, perante a entidade administrativa que decidiu conceder-lhe a proteção jurídica, as razões que justificavam a sua concessão, não dispensa a sua audição no tribunal perante o qual foi impugnada essa decisão. Uma coisa é o requerente do apoio judiciário ter apresentado perante a entidade administrativa as razões que, no seu entender, justificavam a concessão da proteção jurídica e outra é ter a possibilidade de contraditar as razões que posteriormente o impugnante da decisão que lhe concedeu esse apoio apresentou para que tal decisão fosse revogada. Não só a decisão sobre a impugnação é tomada por um órgão diferente daquele a quem o requerente apresentou inicialmente as suas razões, como essa audição destina-se a permitir que o mesmo seja ouvido sobre os fundamentos da impugnação, os quais necessariamente colocam questões sobre as quais o requerente nunca teve oportunidade de se pronunciar.
E o facto da entidade administrativa que concedeu o apoio judiciário ter de se pronunciar sobre o mérito da impugnação deduzida, dado que o artigo 27.º, n.º 3, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, determina que aquela, após o recebimento da impugnação, deve revogar ou manter a decisão impugnada, também não é suficiente para se poder dispensar a audição do requerente sobre o conteúdo da impugnação, uma vez que a atuação da entidade administrativa se pauta por critérios objetivos, não representando os interesses e as posições do requerente.
Por outro lado, a circunstância da lei não facultar ao impugnante a possibilidade de intervir no procedimento administrativo que conduziu à concessão do apoio judiciário também não justifica a solução consistente em interditar a participação do requerente no processo jurisdicional de impugnação, com fundamento numa falsa ideia de assegurar um tratamento igualitário das partes.
Apesar do processo de impugnação judicial se destinar a efetuar um controlo sobre a decisão administrativa, estamos perante procedimentos distintos e de diferente natureza, sendo um de cariz jurisdicional e outro administrativo, pelo que não faz qualquer sentido procurar igualar as intervenções duma parte no primeiro desses procedimentos com as intervenções de uma outra parte no segundo.
(…)
Por estas razões se conclui que a interpretação normativa sob fiscalização viola o princípio do contraditório incluído no direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, pelo que deve ser julgado procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida de acordo com este juízo de inconstitucionalidade.”
Esta fundamentação é perfeitamente transponível para os presentes autos.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) julgar inconstitucional a norma constante do n.º 4 do artigo 28.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, na interpretação de que o juiz pode conceder provimento à impugnação apresentada pela parte contrária, nos termos do n.º 5, do artigo 26.º, do mesmo diploma, sem que ao beneficiário do apoio judiciário seja dado conhecimento da impugnação e sem que lhe seja dada a possibilidade de a contraditar;
E, em consequência,
b) julgar procedente o recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade acima proferido.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 6 de março de 2012. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.