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Processo n.º 870/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC):
«1. Por acórdão de 25 de Outubro de 2011, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a decisão de não pronúncia dos arguidos, ora recorridos, negando provimento a recurso do assistente, ora recorrente. Este interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), mediante requerimento do seguinte teor:
“(…)
Ao abrigo do disposto no art.º 75.º-A/2 LTC indica terem sido violadas na decisão recorrida a norma de direito, equiparado a direito fundamental, do art.º 208.º CRP, pela interpretação judicial, levada ao acórdão, no acordo com a decisão de 1ª Instância, e que condicionou o juízo de insuficiência de indícios, aceitando que um advogado, ex militar da GNR, por factos estritamente ligados ao patrocínio de um oficial superior da corporação (redacção de um requerimento a rejeitar o instrutor de um inquérito disciplinar), pode estar sujeito ao regulamento de disciplina castrense, segundo o art.º 1.º/1 e 4.º da Lei n.º 145/99, 01/09, inconstitucionais, por conseguinte, na amplificação proposta para o seu âmbito e alcance (que o recorrente defende ter de ser limitado, precisamente, pela norma constitucional acima citada).
Esta questão foi expressamente posta à consideração do Tribunal da Relação de Lisboa, na minuta do recurso, e consta do ponto XXVII.”
2. O recurso foi admitido, mas não pode prosseguir porque o acórdão recorrido não adoptou, como integrante da sua ratio decidendi, a interpretação normativa arguida de inconstitucional. Efectivamente, o que se disse no acórdão recorrido, por concordância com o despacho do juiz de instrução, foi o seguinte:
“(…)
Como bem se decidiu no despacho recorrido:
(…) os Arguidos A. e B., independentemente da interpretação acertada ou errónea que fizeram das normas jurídicas que regem a actuação de um militar, em situação de reforma, e simultaneamente advogado, no exercício de tal actividade dentro do âmbito das instituições militares, agiram na prossecução do que entenderam ser os seus deveres de oficio.
Com efeito, estabelecia o artigo 64º do Estatuto da Guarda Nacional Republicana, aprovado pelo Decreto/Lei nº 265/93, de 31/07, vigente na data dos factos, que reserva é a situação para que transita do activo o militar dos quadros da Guarda, verificadas que sejam as condições estabelecidas no artigo 77.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 167.º e 168.º, mantendo-se, no entanto, disponível para o serviço.
Por seu turno, o artigo 65º do mesmo diploma estabelecia que reforma é a situação para que transita do activo o militar dos quadros da Guarda ou da reserva que tenha sido abrangido pelo disposto no artigo.
O militar dos quadros da Guarda na reforma não pode exercer funções no âmbito das missões da Guarda nem militares, salvo nas circunstâncias excepcionais previstas neste Estatuto. (nº 2, do mesmo artigo).
Assim, nem o militar na reforma, nem na reserva perdem os direitos e deveres inerentes a tal situação, excepto no que expressamente se encontra previsto.
Por seu turno, o Regulamento Disciplinar da Guarda Nacional Republicana, aprovado pela Lei nº 145/99, de 1/09, estabelece, no seu nº 1, o âmbito de aplicação do presente Regulamento afirmando que o mesmo se aplica aos oficiais, sargentos e praças, em qualquer situação estatutária, dos quadros da Guarda Nacional Republicana, adiante designada simplificadamente por Guarda, ainda que se encontrem em exercício de funções noutros serviços e organismos.
No n.º4 desse mesmo diploma, define-se que constitui uma infracção disciplinar o facto, ainda que meramente culposo, praticado pelo militar da Guarda, com violação dos deveres gerais ou especiais previstos no presente Regulamento, bem como nos demais diplomas que lhe sejam aplicáveis.
Salvo disposição legal em contrário, a falta disciplinar, considerada em função de determinado resultado, tanto pode consistir na acção adequada a produzi-lo como na omissão do dever de evitá-lo. Especifica o referido regulamento, ainda, que o militar da Guarda deve ter sempre presente que, como agente de força de segurança e como autoridade e órgão de polícia criminal, fiscal e aduaneira, é um soldado da lei, devendo adoptar, em todas as circunstâncias, irrepreensível comportamento cívico, actuando deforma íntegra e profissionalmente competente, por forma a suscitar a confiança e o respeito da população e a contribuir para o prestígio da Guarda e das instituições democráticas.
Cumprindo ao militar a observância dos seguintes deveres de obediência, lealdade, (..) correcção, aprumo, etc
Constituem ainda deveres dos militares da Guarda os que constam quer das leis orgânica e estatutária por que os mesmos e a instituição se regem quer da demais legislação em vigor.
O Regulamento define ainda o dever de correcção, numa cláusula aberta e exemplificativa no seu elenco, que estatui que o referido dever consiste na boa convivencialidade, trato e respeito entre os militares da instituição, independentemente da sua graduação, e com o público em geral, tendo sempre presente que as relações a manter se devem pautar por regras de cortesia, justiça e integridade.
Por ter entendido que o modo como se encontrava articulado o requerimento dirigido aos autos de incidente de suspeição, integrava a violação do dever de correcção e outros, foi feita uma participação pelo Arguido A. ao Comandante Geral B., ora arguido, que determinou a instauração de um processo disciplinar.
Por fim, o Arguido C. proferiu despacho de arquivamento nos autos, tendo entendido que a matéria a apreciar resultou do patrocínio forense e nessa medida não é susceptível de ser apreciada do ponto de vista da disciplina militar, mas sim no âmbito do exercício da advocacia, razão pela qual determinou a sua participação à Ordem dos Advogados.
Ora, nenhum destes factos integra os elementos objectivos e subjectivos do crime, porquanto não basta uma violação de norma jurídica ou uma desacertada análise do seu âmbito de aplicação para que o funcionário cometa o crime de abuso de poder.
O preenchimento de tal ilícito só se verifica quando o funcionário desvia o fim da função que lhe está atribuída, para fim diverso daquele a que se destina, com intuito de obter benefício ilegítimo, o que manifestamente não resulta dos autos ter acontecido.
Em suma, tendo em mente o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com um raciocínio lógico, conclui-se que os factos revelados na instrução não apontam para uma probabilidade sustentada de condenação, sendo tal possibilidade muitíssimo menor do que a da absolvição.
Pelo que, não merece censura o despacho recorrido, não se verifica a violação dos invocados art.ºs 382.º do CP, 208.º da CRP e 1.º/1 e 4.º da Lei 145/99 de 01/09, improcedendo, pois, o recurso.”
Como se vê, o tribunal a quo não considerou que um ex-militar da GNR na situação de reforma, agindo na qualidade de advogado em patrocínio de outro militar da mesma Corporação, está sujeito ao regulamento de disciplina militar e pode ser sujeito a procedimento disciplinar, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º e do artigo 4.º da Lei n.º 154/99, de 1 de Setembro. O que entendeu foi que não havia indícios suficientes de crime de abuso de poder, independentemente da interpretação, certa ou errada, que inicialmente os arguidos tenham feito de tal regime disciplinar, porquanto não basta uma violação de norma jurídica ou uma desacertada análise do seu âmbito de aplicação para que o funcionário cometa o referido crime.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar o recorrente nas custas, com 8 (oito) UCs de taxa de justiça.»
2. O recorrente reclama desta decisão nos termos seguintes:
“1. Interpôs recurso da decisão do Mmo. JIC que não pronunciou vários oficiais da cadeia de Comando da GNR, por prática de crime de abuso de poder que se manifestou na instauração de um processo disciplinar castrense, contra o recorrente, advogado, mas ex militar da corporação, e que patrocinava, então, um oficial superior da Guarda.
2. O Tribunal da Relação confirmou.
3. No recurso de constitucionalidade, o recorrente delimitou o campo genérico da impugnação à circunstância de o despacho de não pronúncia confirmado se dever ao suposto de caber o procedimento disciplinar castrense contra o advogado, naquelas circunstâncias, modelo aceite e que diminuiu o nível das exigências subjectivas dos indícios de cometimento do crime.
4 O Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator não confirmou o despacho de recebimento, louvando-se no seguinte: «o tribunal a quo não considerou que um ex militar da GNR na situação de reforma, agindo na qualidade de advogado, em patrocínio de outro militar da mesma corporação, está sujeito ao Regulamento de Disciplina Militar e pode ser sujeito a procedimento disciplinar...; o que entendeu foi que não havia indícios suficientes do crime de abuso de poder, independentemente da interpretação certa ou errada que inicialmente os arguidos tenham feito de tal regime disciplinar».
5. Acrescentou: «não basta uma violação de nome jurídica ou uma desacertada análise do seu âmbito de aplicação para que o funcionário cometa o referido crime».
6. Mas o que o acórdão recorrido refere é, de invés, que esta circunstância anotada ao Excelentíssimo Senhor Conselheiro Relator ocorre, in casu. porque, justamente, é possível ou seria possível o procedimento disciplinar, não obstante o militar licenciado ser advogado e estar sob patrocínio forense, perante a hierarquia da GNR.
7. Diz o acórdão recorrido, que nestas circunstâncias habilitantes, não foram recolhidos depois indícios da actuação dolosa isto e. de a cadeia de comando da GNR ter querido atingir o ex militar, para elidir o patrocínio em que estava investido.
8. Ora, a questão de constitucionalidade que o recorrente quer ver apreciada diz respeito, precisamente, ao suposto inaugural do acórdão do Tribunal da Relação.
9. Na verdade, uma coisa é procurar na prova recolhida no inquérito os indícios daquele dolo, muito outra, é problematizar o dolo logo na actuação contra lei expressa, neste caso, no contrário da lei constitucional das imunidades dos advogados.
10. É que nesta segunda versão, o dolo flui da assunção da ilegalidade constitucional como legalidade formal, porque a injúria, ou, se quisermos, o prejuízo de outrem, é, desde logo, o dos direitos do advogado, enquanto tal e não a ofensa da posição de ex militar, radicada no advogado ofendido.
11. Assim, há na verdade uma aplicação do direito adversa à Constituição, porque, o momento aplicativo da lei não reside só no resultado, mas este tem condição na espiral hermenêutica que o aplicador vai seguindo, sucessivamente, dos factos para as normas e das normas para os factos, em planos de aproximação ao caso.
12. Aqui, o acórdão recorrido manifesta muito claramente que partiu de um enquadramento normativo inconstitucional; seria, em primeira linha, possível o procedimento disciplinar, não obstante tratar-se de «disciplinar» um advogado.
13. Entrou em crise normativa constitucional o art.º 208.º CRP, mas o Excelentíssimo Relator diz que não, favorecendo, porventura, uma visão de hegemonia militar e da hierarquia das fileiras e fora delas, contra até a defesa jurídica como direito «sacrossanto» (mesmo exercida, neste caso, por ex militar, em beneficio do «camarada de armas»).
3. O Ministério Público responde no sentido da improcedência da reclamação, pelo seguinte:
“1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 3/2012, não se tomou conhecimento do objecto do recurso porque o acórdão recorrido não adoptara, como integrante do seu ratio decidendi, a interpretação normativa arguida de inconstitucionalidade.
2º
Efectivamente, tal como de uma forma absolutamente clara e evidente se demonstrara na Decisão Sumária, sobre a interpretação que os arguidos teriam feito e que o recorrente colocou à apreciação deste Tribunal, diz-se no acórdão recorrido - concordando-se e transcrevendo-se a decisão de 1.ª instância -, o seguinte:
“(…) independentemente da interpretação acertada ou errónea que fizeram das normas jurídicas que regem a actuação de um militar, em -situação de reforma e simultaneamente advogado, no exercício de tal actividade dentro do âmbito das instituições militares, agiram na presunção do que entenderam ser os seus deveres de ofício”.
3º
Ou seja, a interpretação questionada pelo recorrente não tem qualquer relevância no acórdão da Relação, que, apreciando o mérito do recurso, lhe negou provimento, confirmando a decisão de não pronúncia pelo crime de abuso de poder.
4º
De salientar ainda que o entendimento sobre a irrelevância da interpretação em causa, é insindicável por este Tribunal Constitucional, não tendo, pois, razão o recorrente, quando, pelo que afirma na reclamação, parece sugerir o contrário”.
3. A reclamação é manifestamente improcedente.
A razão determinante da não pronúncia dos arguidos é a inexistência do elemento subjetivo do crime de abuso de poder, na vertente ou modalidade de intenção específica. Isso já resulta da parte do acórdão que a “decisão sumária” transcreve. Mas pode ainda reproduzir-se a seguinte passagem do acórdão, que o reclamante não pode ignorar e não deixa dúvidas:
«(…)
O Assistente imputa ao Arguido o crime de Abuso de poder p. e p. pelo art.º 382.º do Código Penal.
Preenche o crime de abuso de poder, nos termos do art.º 382.º do Código Penal:
“O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de muita, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
“I
No crime de abuso de poder, que constitui um crime de função e, por isso, um crime próprio, o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede; o crime é integrado, no primeiro limite do perímetro da tipicidade, pelo mau uso ou uso desviante de poderes funcionais, por excesso de poderes legais ou por desrespeito de formalidades essenciais.
II – Mas o mau uso dos poderes não resulta de erro ou de mau conhecimento dos deveres da função, tem antes de ser determinado por uma intenção específica que, enquanto fim ou motivo, faz parte do próprio tipo legal. Esta intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona ou dele se autonomiza.
III – A intenção específica é um elemento subjectivo que não pertence ao dolo do tipo, enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, e que se não refere a elementos do tipo objectivo, quebrando a correspondência ou congruência entre o tipo objectivo e subjectivo.
IV – Doutrinalmente chamados crimes de intenção ou de resultado cortado, esta espécie de crimes supõe, para além do dolo de tipo, a intenção de produção de um resultado que não faz parte do tipo legal (cf Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, tomo I, págs. 329-33)
V – O crime de abuso de poder constitui um dos exemplos desta categoria dogmática. A violação pelo funcionário dos deveres inerentes às funções em que está investido (tenha aqui o significado que tiver) constitui o campo de delimitação da tipicidade. A estrutura do crime no primeiro momento de configuração da acção típica fica integrada pela actuação contrária aos deveres da função. Mas, para além do tipo objectivo, exige-se uma intenção especifica, uma intenção que é tipicamente requerida, e que tem por objecto uma factualidade que ainda não pertence ao dolo e já não pertence ao tipo objectivo – a intenção de obter beneficio ilegítimo ou de causar prejuízo a outra pessoa.
VI – A relação entre o agente, o resultado e a identificação de benefícios próprios, ou a consideração intersubjectiva sobre os antecedentes e a natureza das relações entre o agente e um terceiro, constituem índices pelos quais se poderá apreender a manifestação da atitude interna. (...)“Processo 07P4279 de 23-01-2008 Relator Henriques Gaspar STJ.
Sufragando tal douta posição vejamos o caso em apreço.
Resultaram indiciados os seguintes factos.
A) Por procuração forense datada de 21 de Junho de 2007, D. constituiu como seu procurador o Assistente, (doc. de fls. 33).
B) No âmbito de um processo disciplinar em que era arguido D., o Assistente deduziu um incidente de suspeição do instrutor E., no âmbito do qual apresentou um requerimento, em 19 de Novembro de 2007. (doc. de fls.34 a 36, e de fls. 115 a 118).
C) O documento referido em B) deu azo a que fosse instaurado procedimento disciplinar contra o Assistente, identificado como Cabo …., na situação de reforma, com vista ao apuramento de eventual responsabilidade disciplinar face à factualidade descrita na participação datada de 18 de Dezembro de 2007, participação essa subscrita por A.. (Cfr. fls 102.)
D) O procedimento disciplinar veio a ser arquivado, por se ter entendido que os factos imputados ao arguido, no âmbito do processo disciplinar que lhe foi instaurado foram praticados enquanto advogado e no exercício do patrocínio forense (docs. de fls. 114 a 119,).
E) No âmbito desse mesmo processo disciplinar foi deduzida acusação contra o Assistente em 31 de Março de 2008. (doc. de fls. 185).
F) No âmbito dos autos nº 1449/08, 2º Unidade Orgânica que correu termos no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, foi julgado improcedente o Procedimento de Suspensão de Eficácia do Procedimento Disciplinar instaurado por F., no qual para além do mais se requeria a condenação dos Requeridos a absterem-se de instaurar, promover ou conduzir de qualquer forma processos disciplinares contra o Requerente, (doc. de fls. 213 a 221).
O Assistente defende que a hierarquia da GNR procedeu à abertura do citado processo disciplinar contra ele, porque o Comando não aceitou que o senhor Coronel D., seu representado, apresentasse como seu defensor um ex cabo da GNR., numa atitude discriminatória por um motivo mais do que conhecido desde o início: ser advogado e estar a agir como advogado.
Quanto à insuficiência de inquérito o Assistente deveria ter lançado mão da reclamação hierárquica.
No que concerne à instrução.
Defende o Assistente que os Arguidos sabiam desde o início que ele, embora ex cabo da GNR na reforma, tinha a qualidade de Advogado e era nessa qualidade que intervinha no processo disciplinar n.º A29/24/IG/1157. Não colhendo a justificação do Arguido A. (Major General) de que, num primeiro momento, o Assistente atenta a qualidade de militar estava vinculado aos deveres de isenção e correcção previstos na Lei 145/99, de 01/99 e num segundo momento que se entendeu que estava a agir na qualidade de Advogado e que deveria ser comunicada a situação à Ordem dos Advogados.
Entende o Assistente que o facto de os Arguidos considerarem que ele estava adstrito à disciplina militar da sua patente de cabo que lhe impunha obrigações que não poderiam ser-lhe exigíveis como Advogado, pela sua autonomia constitucional na defesa do seu constituinte, não lhe retira a intenção dolosa com que agiram ao promoverem um processo disciplinar que só a Ordem dos Advogados poderia promover.
Ora, a intenção, tem de resultar de factos que não se comprovam em si próprios, mas de ilações, retiradas face ao facto e às circunstâncias concretas do seu cometimento – cfr., a este respeito, M. Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, Vol. I, Lisboa/S. Paulo, Ed. Verbo, 1992, págs. 297 e 298.
“Dado que o dolo pertence à vida interior de cada um e é, portanto, insusceptível de directa apreensão, só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns, de que o mesmo se possa concluir, pode, de facto, comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou da regra geral da experiência” Ac. RP de 23/02/1983, BMJ 324, 620:
Tais presunções (judiciais) são meios de prova que assentam no raciocínio do julgador, inspirando-se nas máximas da experiência, nos juízos correntes de probabilidade, nos princípios da lógica ou nos próprios dados da intuição humana e inscrevendo-se na regra da livre convicção tal como é proposta pelo art.º 127.º, do Código Penal.
E, no caso, analisando os factos, segundo as regras de experiência comum, não resulta que os Arguidos agiram intencionalmente bem sabendo que tal conduta lhes não era permitida. Não se pode ignorar a importância da disciplina militar sobretudo para militares com a patente dos Arguidos. Não agiram bem e percebe-se a posição do Assistente que muito compreensivelmente se sentiu descriminado quando deveria ter sido altamente valorizado por ter conseguido, seguramente com grande e louvável esforço, adquirir uma formação altamente conceituada como Advogado, porém daí não resulta terem agido com dolo.
(…).»
Deste modo, ainda que o acórdão tivesse admitido o entendimento que o recorrente quer ver apreciado – e não admitiu –, nunca o recurso seria admissível face à natureza instrumental da fiscalização concreta de constitucionalidade.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente em custas, com 20 UCs de taxa de justiça
Lisboa, 22 de fevereiro de 2012.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.