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Processo nº 381/94
2ª Secção
Relator: Cons. Guilherme da Fonseca
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. Os expropriados A., B., C., D. e E. e mulher F., todos
com os sinais identificadores dos autos e invocando serem 'herdeiros de G.',
vieram reclamar neste Tribunal Constitucional 'da decisão de fls. 213 que
indeferiu o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional', aduzindo os fundamentos que, por maior comodidade, se
transcrevem:
'1. Por douto acórdão proferido no Tribunal da Relação do Porto foi considerado
que o nº 2 do artigo 3º do Código das Expropriações aprovado pelo DL 845/76 de
11/12 era Constitucional;
2. Interposto recurso para o Tribunal Constitucional considerou este alto
Tribunal, na esteira da jurisprudência firmada, que tal normativo era
inconstitucional e...
3. Por isso revogou o referido douto acórdão;
4. A questão controvertida resume-se ao seguinte - os peritos do Tribunal e do
expropriado avaliaram o terreno expropriado à razão de 1 000$00/m2 por ter
vocação urbana, capacidade construtiva;
5. E, as parcelas sobrantes foram avaliadas ao mesmo preço já que optaram por
uma potencialidade construtiva média;
6. E, constataram que por força das servidões que derivaram directamente da lei
(as servidões non aedificandi) as áreas por elas abrangidas definitivamente
passam a valer menos;
7. Passavam a valer apenas como terreno agrícola, apenas e só;
8. E, sendo assim, constataram que essa desvalorização era devida em termos de
justiça material;
9. Porém, a sentença da 1ª instância e o 1º douto acórdão, fazendo apelo à lei
(artigo 3º nº 2 do Código referido) não atribuíram esta indemnização;
10. Revogado o acórdão impunha-se, no nosso modesto modo de ver, que fosse
considerada a desvalorização arbitrada pelos peritos;
11. Até porque a indemnização foi fixada com base no relatório destes peritos,
tendo sido aceites o seu raciocínio e a sua avaliação (a nosso ver modesta);
12. Não obstante, no novo acórdão que deveria ter julgado de acordo como
julgamento de constitucionalidade, manteve-se a decisão, com o fundamento de
que não havia desvalorização pela servidão;
13. Salvo o devido respeito que é o maior, o novo acórdão não respeitou a
decisão do Tribunal Constitucional e voltou a fazer incorrecta aplicação da lei
constitucional;
14. Não faz sentido que não se atribua a indemnização pela desvalorização da
parcela sobrante inicialmente por força da aplicação de um normativo que se
veio a constatar ser inconstitucional;
15. E, depois da declaração de inconstitucionalidade, julga-se que não há
desvalorização, porque não existe, manifestando-se no douto acórdão que não se
concorda com a decisão do Tribunal Constitucional;
16. A nosso ver, e sempre ressalvado o devido respeito, o douto acórdão agora
posto em crise não acata a decisão de julgamento de constitucionalidade;
17. E por isso impõe-se a sua apreciação por este Tribunal.
Termos em que se conclui pelo provimento da presente reclamação e
consequentemente apreciação da aplicação de norma inconstitucional no referido
acórdão (o nº 2 do artigo 3º do Código referido)'.
2. Completada a instrução do processo com elementos
pedidos ao Tribunal da Relação do Porto, emitiu o Ministério Público o seu
parecer no sentido de ser 'manifesta a improcedência da presente reclamação',
pois 'nenhuma censura pode merecer o despacho reclamado, ao rejeitar
liminarmente o recurso de constitucionalidade que se pretendeu interpor'.
Diz o parecer:
'O requerimento de interposição do recurso, de fls. 27, não obedece ao
preceituado no artigo 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional, pelo que se não
entende qual o tipo de recurso de constitucionalidade que o ora reclamante
pretendeu realmente interpor. De tal peça processual parece, aliás, resultar
que o ora reclamante está convencido que o recurso de fiscalização concreta é
o meio idóneo para este Tribunal Constitucional sindicar o modo como os
tribunais da ordem judicial cumpriram (ou não cumpriram) o por ele decidido...
Tal não é, porém, exacto, sendo ponto assente que o Tribunal Constitucional não
tem competência para controlar o modo como posteriormente os restantes
tribunais executam as suas decisões (cf. 'O Tribunal Constitucional e os
outros tribunais', António Rocha Marques, in Estudos sobre a Jurisprudência do
T.C., pág. 463 e seguintes).
Acresce que, no caso dos autos, a Relação do Porto acatou inteiramente o juízo
de inconstitucionalidade normativa formulado pelo Acórdão nº 800/93, já que a
não atribuição da indemnização pretendida pelo ora reclamante se funda em
concretas e específicas razões de facto que nada têm a ver com a vigência da
norma declarada inconstitucional neste processo'.
3. Vistos os autos, cumpre decidir.
É a seguinte a sequência processual que interessa
sintetizadamente registar:
3.1. Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 3 de
Novembro de 1992, e em recurso de apelação interposto pelos reclamantes, foi
esse recurso julgado improcedente e confirmada a 'sentença apelada', do
Tribunal Judicial da comarca de -----------, que fixou 'a indemnização global (a
pagar pela Junta Autónoma de Estradas) em Esc 7 424 330$00, correspondendo esse
montante ao valor do terreno atribuído pela maioria dos peritos (7 000m2 x 1
000$00 = 7 000 000$00) mais o valor da benfeitorias também fixado por essa
maioria (424 330$00)'.
Na base do julgado, depois de circunscrito o objecto do
recurso unicamente 'à questão de saber se os Apelantes têm direito a serem
indemnizados pela oneração das partes sobrantes do seu prédio com a servidão
'non aedificandi'', está a consideração essencial de 'não estar ferida de
inconstitucionalidade a norma do nº 2 do artº. 3º do Cód. das Expropriações'
('As servidões 'non aedificandi', tenham ou não tido a motivá-las um acto de
expropriação, resultam directamente da lei e integram-se no previsão do nº 2 do
artº 30º do Cód. das Expropriações. Não dão, por isso, direito à indemnização'
- é a conclusão do aresto).
3.2. Tal acórdão foi revogado, em sede de recurso de
constitucionalidade, pelo acórdão nº 800/93 (1ª Secção), de 30 de Novembro de
1993, deste Tribunal Constitucional, para 'ser reformado de harmonia com o
julgamento em matéria de constitucionalidade'.
Isto porque, por adesão aos fundamentos do acórdão nº
262/93, do mesmo Tribunal, se decidiu 'julgar inconstitucional a norma do nº 2
do art. 3º do Código das Expropriações de 1976 (Decreto-Lei nº 845/76, de 11 de
Dezembro), por violação do disposto nos arts. 13º e 62º, nº 2, da Constituição'.
3.3. Na sequência de tal decisão de
inconstitucionalidade, o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 5 de
Abril de 1994, decidiu 'julgar improcedente o recurso, confirmando-se uma vez
mais, ainda que por outras razões, a sentença apelada'.
Reconhecendo-se nesse acórdão que 'a decisão proferida
tem força vinculativa neste processo, obrigando-nos a proceder em conformidade
com o ali decidido' ('Mas, não obriga esse douto acórdão a que se tenha,
necessariamente, de atribuir uma indemnização ao expropriado em virtude de sobre
a parte sobrante do seu prédio impender uma servidão 'non aedificandi'. É
condição 'sine qua non' da atribuição de uma indemnização a ocorrência de um
prejuízo. E esse prejuízo terá de ser não apenas eventual mas concreto ou pelo
menos previsível' - acrescenta-se ainda), entendeu-se, porém, que 'quer a
parcela expropriada quer o prédio do qual a mesma foi desanexada eram terrenos
com vocação agrícola'.
E, funda-se o acórdão nestas considerações finais:
'Mas, não está aqui em causa a indemnização a atribuir à parcela expropriada. O
que a esse respeito foi decidido não foi objecto de recurso e não pode ser, por
isso, objecto duma reapreciação por parte deste Tribunal - artº 684º, nº 4, do
Cód. Proc. Civ. O que aqui, verdadeiramente, tem de se apreciar é saber se a
constituição da servidão 'non aedificandi' sobre as partes sobrantes da 'Quinta
--------', dum e doutro lado da via pública a construir, justifica a atribuição
de uma indemnização aos Expropriados.
Se a parcela expropriada dista cerca de 100 metros da estrada nacional nº
----- (----------), então as zonas da Quinta ----------- oneradas com a
servidão 'non aedidicandi' distam da mesma estrada mais de 80 metros. Ora, se
um terreno não deve ser qualificado como apto para a construção só porque
margina com uma estrada nacional muito menos o deve ser quando se situa a cerca
de 80 metros da estrada. De qualquer forma, a circunstância de não haver no
local rede de saneamento e de abastecimento de água e luz - se houvesse os
senhores peritos não deixariam de a ela referir - faz presumir que os
proprietários da Quinta --------------- não tinham qualquer propósito de dotar
essa quinta, e muito menos as zonas dela agora oneradas com servidão 'non
aedificandi', de quaisquer construções. Tanto assim que a confinância do
prédio com a E.N. nº ----- já ocorre, como é notório, há dezenas de anos e a
quinta em causa parece não ter tido outra função senão a de servir para
exploração agrícola. Acresce que essa quinta se situa, 'francamente fora do
aglomerado urbano' (fls. 100, verso); 'a sua distância à cidade de
------------- é da ordem dos 2,500Km' (fls.113). Era assim, de todo improvável
que a urbanização da cidade se estendesse, a curto ou médio prazo, à dita Quinta
-----------.
Tudo isto para dizer que pelo facto da constituição da servidão de não
construir em zonas dessa quinta que marginam a auto-estrada a que se destinou a
parcela expropriada, não resultou para os proprietários da quinta qualquer
prejuízo efectivo, actual ou sequer previsível para um futuro próximo. A quinta
continua a servir a função que sempre parece ter tido: de exploração agrícola.
Por conseguinte, se da constituição dessa servidão prejuízo efectivo não
resultou para os proprietários da Quinta ----------, não têm estes o direito de
reclamar qualquer indemnização'.
3.4. Deste acórdão vieram os reclamantes interpor recurso
para este Tribunal Constitucional, considerando que ele 'não cumpriu o douto
acórdão do Tribunal Constitucional e que fez a aplicação da norma nº 2 do artigo
nº 3 do Código das Expropriações aprovado pelo DL 845/76 de 1/12, que é
inconstitucional', o qual não foi admitido por despacho do Relator, de 3 de
Maio de 1994, 'atento o disposto nos artºs 76º, nº 2 e 70º, nº 1, al. b), da Lei
nº 28/82, de 15 de Novembro' ('Considerando que, ao contrário do que se afirma
no requerimento de fls. 211, o acórdão de fls. 205 a 208º expressamente acata a
decisão do Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade da norma do nº 2 do
artº 3º do Cód. das Expropriações, não pode ser ele objecto de novo recurso para
o Tribunal Constitucional com o fundamento em ter sido desobedecida a decisão
deste Tribunal' - é o que consta do despacho).
3.5. Tal despacho foi confirmado por acórdão do mesmo
Tribunal da Relação do Porto, de 7 de Junho de 1994, decidindo-se 'manter o
indeferimento do recurso interposto pelos Expropriados'.
'O acórdão revogado pelo Tribunal Constitucional fundamentara a não atribuição
da referida indemnização na norma do citado nº 2 do artº. 3º do Dec. Lei nº
845/76. Declarada, neste processo a inconstitucionalidade desse preceito legal,
esta Relação, reapreciando a questão de fundo, concluiu pela inexistência dos
pressupostos fácticos, que, em concreto, justificassem o direito dos
expropriados àquela indemnização.
Não houve, assim, qualquer violação do comando do referido acórdão do Tribunal
Constitucional até porque, o acórdão de que se pretende recorrer expressamente
diz aceitar a declarada inconstitucionalidade da norma do nº 2, do artº 3º, do
Dec. Lei nº 845/76.
Nos termos do nº 2, do artº 76 da lei nº 28/82 o requerimento de recurso deve
ser indeferido, além do mais, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e
e), do nº 1, do artº 70º, quando forem manifestamente infundados.
Ora, imputando os recorrentes, no requerimento de recurso, ao acórdão desta
Relação, ter aplicado norma cuja inconstitucionalidade foi nestes autos
suscitada - artº 70º, nº 1, al. b) - e sendo tal imputação, pelo que se disse,
manifestamente infundada, não havia senão que se indeferir o requerimento do
recurso'.
4. É patente que o recurso de constitucionalidade ora
interposto pelos reclamantes, não obstante faltar da parte destes e indicação da
norma legal pertinente ao seu fundamento, só pode apoiar-se na alínea b), do nº
1, do artigo 70º, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, reproduzindo a alínea b),
do nº 1, do artigo 278º, da Constituição - a aplicação de 'norma cuja
inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo' (é o que resulta
da afirmação dos reclamantes no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade de que se fez ' a aplicação da norma nº 2 do artigo nº 3 do
Código das Expropriações aprovado pelo DL 845/76 de 1/12, que é
inconstitucional').
Mister é, pois, que se revele uma decisão jurisdicional
que tenha feito uma aplicação de norma jurídica arguida de inconstitucionalidade
- e aqui uma inconstitucionalidade já declarada pelo Tribunal Constitucional - e
nessa aplicação se tenha fundado o julgado.
Ora, é essa revelação que in casu se não alcança.
Com efeito, o acórdão recorrido, contrariamente ao
primeiro acórdão de 3 de Novembro de 1992, não assentou a decisão negatória do
direito do expropriado a uma indemnização pela servidão non aedificandi (artigo
3º, nº 2, do Decreto-lei nº 845/76 de 11 de Dezembro, que então aprovou o Código
das Expropriações) no juízo de constitucionalidade dessa norma - ela, sim,
negando tal direito -, mas antes na consideração de que, havendo esse direito,
por desaparecer o obstáculo legal à atribuição ao expropriado de indemnização
pelo prejuízo causado por virtude da limitação do seu direito de construir, não
resultou, todavia, prejuízo efectivo para os expropriados da dita servidão
('qualquer prejuízo efectivo, actual ou sequer previsível para um futuro
próximo' - é o que diz o aresto).
Vê-se, assim, que o acórdão recorrido, reconhecendo a
obrigação de acatar o decidido neste Tribunal Constitucional, conquanto
manifestando discordância, aceitou o juízo de inconstitucionalidade do citado
artigo 3º, nº 2, do Código das Expropriações, então aplicável, e, por isso,
desaplicou até essa norma, proibitiva do direito indemnizatório em causa. É
certo que chegou ao julgamento desfavorável aos reclamantes, mas porque, e no
essencial, considerou os dados fornecidos pelos peritos insuficientes 'para que
se possa, apenas com base neles, qualificar um terreno expropriado como dotado
de capacidades construtivas'.
Na prática, as duas decisões do Tribunal da Relação do
Porto atingem o mesmo resultado, mas partem de pressupostos distintos: a
primeira assentou pura e simplesmente num juízo de constitucionalidade da norma
do artigo 3º, nº 2, e bastante para arredar o direito à indemnização; a segunda
acatou o juízo de inconstitucionalidade deste Tribunal Constitucional e
assentou na consideração fáctica de que não resultou da constituição da servidão
prejuízo efectivo para os expropriados ('É condição 'sine qua non' da
atribuição de uma indemnização a ocorrência de um prejuízo' - é o eixo da
argumentação do acórdão recorrido; cfr. o acórdão deste Tribunal Constitucional
nº 324/94, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Agosto de 1994).
Tanto basta para concluir que, faltando a tal aplicação de
norma arguida de inconstitucionalidade - e também não se pode falar de aplicação
de 'norma já anteriormente julgada inconstitucional ou ilegal pelo próprio
Tribunal Constitucional' (alínea f) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 e nº
5 do artigo 280º da Constituição) -, ao contrário do que afirmam os reclamantes,
não pode censurar-se a decisão reclamada. Pelo que tem a mesma que ser
confirmada, pelos fundamentos que dela constam.
5. Termos em que, DECIDINDO, indefere-se a reclamação,
condenando-se os reclamantes nas custas, com a taxa de justiça fixada em cinco
unidades de conta.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 1995
Guilherme da Fonseca
Messias Bento
José Sousa e Brito
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
Luís Nunes Almeida
José Manuel Cardoso da Costa