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Processo n.º 770/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 7 de Julho de 2011.
2. Pela Decisão Sumária n.º 626/2011, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objecto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«Cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (artigos 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição e 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC), “identificando-se assim, o conceito de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais podem constituir objecto de tal recurso” (Acórdão n.º 361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Nos presentes autos não é requerida a apreciação da conformidade constitucional de uma qualquer norma, sendo pedida, isso sim, a apreciação da constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, o que obsta ao conhecimento do objecto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
1. Com efeito, o recorrente não requer a apreciação de uma qualquer norma por referência aos artigos 71.º e 45.º do Código Penal, o que é particularmente evidente uma vez que convoca enquanto princípio constitucional violado o que se extrai do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, nos termos do qual “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista lei”. Ou seja, o recorrente requer a apreciação da decisão judicial por entender que está fundamentada de forma insuficiente no que toca à imposição da pena de prisão por dias livres, violando assim o disposto no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, bem como os artigos 97.º, n.º 5, 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e, indirectamente, o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal (todos eles relativos à fundamentação das decisões).
2. Por outro lado, o recorrente não requer a apreciação de uma qualquer norma reportada aos artigos 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 693.º-B e 524.º do Código de Processo Civil. O que o recorrente pretende é a apreciação do acórdão recorrido, na parte em que se entende que não tem lugar a aplicação do disposto naqueles artigos 693.º-B e 524.º, por não haver, no caso, qualquer lacuna a colmatar de harmonia com o disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal. Assim se compreendendo que conclua que “a decisão violou o artigo 4.º do Código de Processo Penal, bem como, os artigos 693º B e 524º do Código de Processo Civil”. Em suma, contrariamente ao decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, o recorrente entende que estes artigos do Código de Processo Civil são aplicáveis ao caso, por força da regra de integração de lacunas constante do artigo 4.º do Código de Processo Penal, não sendo aplicável o artigo 165.º, n.º 1, deste Código, por o mesmo não incidir sobre a junção de documentos em fase de recurso.
“Ora, ao Tribunal Constitucional não compete formular um juízo sobre a boa ou má determinação do direito aplicável pelo tribunal recorrido, pois o recurso de constitucionalidade não é um recurso de revista”. Quando o recorrente questiona a constitucionalidade de uma norma jurídica, “por ter sido aplicada pelo tribunal a quo em vez das normas jurídicas que, na sua opinião, deviam ser aplicadas, o que ele faz, no fundo, é imputar a inconstitucionalidade à própria decisão judicial” (Acórdão n.º 18/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).»
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, invocando os seguintes argumentos:
«6. Vejamos se os argumentos defendidos na decisão sumária de que ora se reclama correspondem aos dois fundamentos pelos quais o Recorrente interpôs recurso para apreciação da constitucionalidade de normas aplicadas pelo Tribunal da Relação de Guimarães e pelo Tribunal de Primeira Instância.
7. Na verdade, o Recorrente aquando da Interposição do recurso para o Tribunal Constitucional pretendeu ver apreciada a aplicação inconstitucional dos artigos 71º e 45º do Código Penal, e, bem assim, a aplicação desconforme à Constituição dos artigos 165º n.º 1, 4º do Código de Processo Penal e 693-B e 524º do Código de Processo Civil.
8. Debrucemo-nos então sobre a requerida apreciação da aplicação inconstitucional dos artigos 71º e 45º do CPP.
9. De facto, quer o Tribunal da Primeira Instância quer o Tribunal da Relação de Guimarães (este último na medida em que remeteu para a decisão daquele) procederam a aplicação das normas citadas.
10. Constitui objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, a apreciação de normas jurídicas que violem preceitos ou princípios constitucionais.
11. O Recorrente já em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães referiu ser a aplicação dos artigos 71º e 45º do Código Penal inconstitucional, desde logo por manifesta violação do princípio legal e constitucional da fundamentação das decisões.
12. De modo que, o entendimento segundo o qual a aplicação daqueles artigos é inconstitucional, apelando para o efeito ao princípio da obrigatoriedade de fundamentação das decisões, respeita o objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
13. O recorrente quando levantou o problema da inconstitucionalidade daquelas normas jurídicas não pretendia a sindicância da decisão judicial em si própria, mas antes ver apreciada a sua inconstitucionalidade por violação manifesta do princípio, constitucional do dever de fundamentação.
14. De facto, analisando o requerimento de interposição do recurso, verifica-se que o recorrente nos artigos 3º e 4º do articulado alegou o seguinte, citamos: «3. O Arguido pretende ver apreciada a aplicação inconstitucional dos artigos 71º e 45º do Código Penal. 4. Porquanto, quer o Tribunal de Primeira Instância quer o Tribunal da Relação procederam a aplicação das normas acima mencionadas violando o princípio legal e constitucional de fundamentação das decisões”.
15. Ou seja, mais uma vez o reiteramos, o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal da Relação de Guimarães procederam à aplicação dos artigos 71º e 45º do Código Penal violando a garantia legal do recorrente (e diremos de qualquer cidadão) de ver a respectiva aplicação devidamente fundamentada.
(…)
19. Por tudo isto, não pode o Recorrente conformar-se e concordar com o argumento patente na decisão sumária de acordo com o qual, o que o Recorrente pretende é ver sindicada não uma norma mas a decisão judicial em si mesma.
(…).
22. Isto posto, passemos a analisar a suscitada verificação da inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 165º n.º1, 4º do Código de Processo Penal, 693ºB e 524º do Código de Processo Civil por parte do Tribunal da Relação de Guimarães.
23. Esta desconformidade constitucional foi alegada tendo em consideração a recusa naquele Tribunal da admissão da junção de documentos comprovativos do débil estado de saúde do Recorrente.
24. Na verdade, o Tribunal da Relação de Guimarães procedeu à aplicação do artigo 165º n.º 1, do CPP, coarctando as garantias de defesa do recorrente e violando assim directamente o n.º 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
25. Não podemos ignorar que a junção dos documentos em causa constitui um mecanismo (ou, dito de outro modo, uma garantia) de defesa de Recorrente.
26. Pelo que, a não admissão dos documentos juntos aos autos, por aplicação do artigo 165º n.º 1 do CPP constitui interpretação normativa ofensiva do quadro Constitucional em vigor.
27. Não se diga que o Recorrente quando levantou esta questão o que pretendia era a apreciação do acórdão recorrido em si próprio, na parte em que se entende que não tem lugar a aplicação do disposto nos artigos 693º-B e 524º do Código de Processo Civil.
28. Porquanto o que está em causa é a aplicação e interpretação normativa do artigo 165º n.º 1 do CPP em violação das garantias de defesa do Recorrente.
29. Norma que foi efectivamente aplicada pelo Tribunal da Relação de Guimarães como fundamento normativo da decisão de não admissão da junção dos documentos que foi requerida pelo Recorrente.
30. Questionando-se também nessa medida, a conformidade constitucional da interpretação dos artigos 4º do CPP e 693ºB e 524º do Código de Processo Civil.
31. *Mi mais, efectivamente a aplicação e interpretação normativa dada pelo Tribunal da Relação de Guimarães ao artigo 165º nº 1 do CPP, desconsidera em absoluto o direito do Recorrente à protecção da saúde, sua defesa e promoção.
32. Ora, o Recorrente demonstrou perante aquele Tribunal que após a audiência de discussão e julgamento passou a padecer de obstrução das veias carótidas que lhe impedem a oxigenação do cérebro.
33. De modo que, além da aplicação e interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Guimarães não ser conforme ao princípio constitucional segundo o qual, o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, também é ofensiva do direito constitucional consagrado à protecção da saúde e sua promoção e defesa.
34. Deveria e conforme já exposto no articulado do requerimento de interposição de recurso, aquele Tribunal ter interpretado a norma do artigo 165º n.º 1 do CCP nos seguintes termos: “Nos termos do artº 165, n.º 1 do CPP os documentos tem de ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, até ao encerramento da audiência. Porém, visto que no Código de Processo Penal inexiste norma que regule a apresentação de documentos em fase de recurso, e atento o disposto no artigo 4º do código de Processo Penal (nos casos omissos, quando as disposições deste código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal), deve apelar-se às normas do código de Processo Civil que regulam a matéria da apresentação dos documentos, concretamente ao artigo 693º B, que determina que as partes podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 524º. Visto que os documentos juntos pelo Recorrente são de conhecimento posterior à audiência de discussão e julgamento, a junção requerida é tempestiva e deve ser admitida. Não se entendendo assim, ficaria em causa o princípio da defesa do recorrente consagrado no nº. 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.”
35. E, acrescentamos, se não se entendesse assim, ficaria ainda em causa o princípio da defesa, promoção e protecção da saúde do Recorrente, consagrado no artigo 64º da Constituição da República Portuguesa.
36. Em suma, em ambos os casos, o Recorrente invocou de forma expressa e em cada momento as normas que a decisão não acatou do ponto de vista constitucional».
4. O Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
«1.º
Pela douta Decisão Sumária n.º 626/2011, não se conheceu do objecto do recurso, em relação às duas questões suscitadas pelo recorrente.
2.º
Quanto à invocada inconstitucionalidade que residiria na falta de fundamentação da decisão de primeira instância, o Acórdão da Relação de Guimarães – ora recorrido – entendeu que se impunha essa fundamentação.
3.º
Analisada a sentença proferida em 1.ª instância, entendeu que ela se encontrava devidamente fundamentada.
4.º
Se concretamente essa fundamentação é, para o recorrente, insuficiente, tal é uma questão desprovida de qualquer conteúdo normativo, não enunciando aquele, qualquer questão dessa natureza.
5.º
Quanto à segunda questão, o que o recorrente questiona é a não aplicação em processo penal do regime constante dos artigos 693.º-B e 524.º do Código de Processo Civil.
6.º
Ora, a Relação entendeu que as regras de processo civil só são aplicáveis caso se verifique uma lacuna, o que não era o caso, uma vez que a matéria era regulada, de forma completa, no artigo 165.º, n.º 1, do CPP.
7.º
Não podendo o Tribunal Constitucional sindicar a forma como os preceitos de direito ordinário foram interpretados e aplicados, a questão da inconstitucionalidade teria de radicar, exclusivamente, numa determinada interpretação da norma efectivamente aplicada: o artigo 165.º, n.º 1, do CPP.
8.º
Como se vê pelo requerimento de interposição do recurso para este Tribunal Constitucional e como resulta do que atrás dissemos (artigo 5.º), não foi dessa forma que a questão foi colocada.
9.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
A decisão sumária conclui pelo não conhecimento do objecto do recurso, por não ter sido requerida a apreciação da inconstitucionalidade de uma qualquer norma, mas sim da própria decisão recorrida, o que extravasa o âmbito do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
1. Para contrariar tal fundamentação – e no que diz respeito aos artigos 71.º e 45.º do Código Penal – o reclamante sustenta que «não pretendia a sindicância da decisão judicial em si própria, mas antes ver apreciada a sua inconstitucionalidade por violação manifesta do princípio constitucional do dever de fundamentação», reiterando que o tribunal recorrido procedeu «à aplicação dos artigos 71.º e 45.º do Código Penal violando a garantia legal do recorrente (e diremos de qualquer cidadão) de ver a respectiva aplicação devidamente fundamentada».
Esta argumentação só confirma o decidido. Quando a aplicação de uma norma é fundamentada de forma insuficiente tal é revelador do modo como a decisão judicial procede a essa mesma aplicação, mas não do conteúdo da norma aplicada. Sem prejuízo de poder estar em causa a aplicação de preceitos relativos à fundamentação das decisões, os quais são sindicáveis, esses sim, à luz do preceituado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição. De resto, o reclamante considerou sempre que foram violadas as disposições legais em matéria de fundamentação das decisões (artigos 97.º, n.º 5, 374.º, n.º 2, 375.º, n.º 1, e, indirectamente, o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal).
2. No que se refere aos artigos 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e 693.º-B e 524.º do Código de Processo Civil, a argumentação do reclamante continua a ser significativa de que critica a escolha do direito aplicável ao caso: o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, em vez dos artigos 693.º-B e 524.º do Código de Processo Civil, por recurso à analogia (cf. ponto 34. da reclamação). Ou seja, é significativa de que imputa a inconstitucionalidade à própria decisão judicial.
Em face de tudo o que ficou dito, não se vislumbram razões para inverter o juízo firmado na decisão sumária reclamada, que assim deve ser confirmada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 19 de Dezembro de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.