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Processo n.º 50/10
2.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nestes autos, vindos do Tribunal de Trabalho do Porto, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, invocando, como fundamento, a recusa de aplicação, por parte do tribunal a quo, da norma contida no artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, “na parte em que exige o acordo da autoridade administrativa”, por inconstitucionalidade decorrente da violação do princípio da autonomia do Ministério Público e da igualdade.
2. A presente acção teve início como processo de contra-ordenação, que redundou em decisão condenatória, proferida pela Autoridade para as Condições do Trabalho.
Inconformada, a arguida impugnou judicialmente a decisão administrativa contra si proferida.
Os autos foram remetidos ao Ministério Público, que manifestou a sua intenção de retirar a acusação, fundamentando a sua posição nos seguintes moldes:
“Nos termos do art. 8° nº 1 do DL 433/82 de 27.10 só punível como contra-ordenação o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. E nos termos do n° 3° do mesmo art. 8° fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.
O dolo e a negligência são expressão da culpa e configuram o elemento subjectivo que integra todos os tipos de ilícitos (criminais ou contra-ordenacionais).
Assim, o ilícito é constituído pelos elementos objectivos (facto, nexo de causalidade, dano, ilicitude) e subjectivos (culpa: dolo / negligência).
Desta forma, para que um facto seja punível é necessário comprovar que o seu agente agiu com dolo ou com negligência.
Ora, na enumeração dos factos provados constantes da decisão ora em recurso não se vislumbram quaisquer factos susceptíveis de integrar o referido elemento subjectivo em qualquer das suas modalidades: dolo (directo, necessário ou eventual) e negligência (simples ou grosseira).
No elenco dos factos provados apenas constam factos que integram os elementos objectivos integradores de um ilícito legalmente previsto, mas nenhum facto ali está enumerado que permita integrar o elemento subjectivo e permita, assim, concluir pela culpa do agente.
Desta forma, entendemos que existe uma manifesta insuficiência na matéria factual dada como provada a qual não permite conclusões de culpabilidade uma vez que tal conclusão não tem fundamento em factos que a integrem.
Uma coisa é verificar um eventual ilícito em elementos objectivos: por exemplo, o não pagamento atempado do subsídio de Natal. Outra coisa é verificar a culpa de quem o praticou expressa em factos que integrem os elementos subjectivo e objectivo.
Nos factos provados, não consta se a arguida tinha consciência de que violava regras legais imperativas, se sabia e tinha consciência que a sua violação é punida por lei, nem se a mesma podendo e devendo praticar um determinado acto o não fez violando um dever legal que conhecia. Em suma: não consta qualquer facto que permita integrar os elementos subjectivos constitutivos da infracção.
Consequentemente, não é possível tecer conclusões que não assentam em factos enunciados e demonstrados como provados.
Na enumeração dos factos provados foi realçado o especial valor probatório do auto de notícia, invocando para tal juízo o art. 371º do Código Civil e 169° do Código de Processo Penal.
Salvo o devido respeito, o auto de notícia não possui o especial valor probatório que se lhe atribui já que o mesmo não corresponde à definição de documento autêntico ou autenticado a que se refere a norma do art. 371º do CC supra mencionada.
Caso contrário, lavrado um auto, não haveria necessidade de qualquer prova incriminadora, havendo apenas lugar a produção de prova da arguida a tentar demonstrar a sua não culpabilidade.
O mesmo se diga relativamente ao art. 169° do CPP.
Acresce, ainda, que o disposto no art. 14° nº 3 da Lei 107/2009 de 14.09 (regime processual das contra-ordenações laborais e da segurança social) apenas considera como provados (até serem fundadamente postas em causa a autenticidade do documento ou a veracidade dos factos), apenas considera como provados, dizia-se, os factos materiais constantes do auto de infracção, e como não poderia deixar de ser.
Em suma, não consta dos “Factos Provados” qualquer facto que integre a “culpa”, o elemento subjectivo constitutivo do ilícito em causa, designadamente integrador da negligência que é referida na decisão.
Dizemos, assim, que da decisão administrativa em causa não constam como provados factos concretos suficientes, dos quais se possa concluir pela existência de dolo ou negligência.
O dolo pressupõe a representação do resultado típico como consequência da conduta (algo que foi afastado pela decisão em causa na fundamentação e na apreciação da culpa), a intenção de o realizar ou, pelo menos, a conformação com a verificação desse resultado, e não a “consciência da conduta”.
Por seu turno, a negligência pressupõe que a arguida podia e devia agir de outra forma e, não obstante isso, prosseguiu com a conduta omissiva.
A arguida foi condenada com base na negligência.
Mas dos factos provados não decorre que a mesma sabia que da sua conduta resultava o preenchimento do tipo legal de contra-ordenação, nem que a mesma poderia ter actuado de outra forma.
Consequentemente, os factos, face à sua insuficiência quanto àqueles integradores do elemento típico subjectivo, são insusceptíveis de integrar todos os elementos típicos da infracção pela qual a arguida foi condenada, não estando assim constituída a infracção.
Afigura-se-nos, pelo exposto, que a procedência do recurso, em caso de o mesmo ser julgado, se revela certa e, também, justa.
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Pelas razões expostas, e porque em virtude das mesmas se nos afigura, e defenderíamos tal posição em julgamento se o mesmo se realizasse, que o recurso merece provimento e a arguida ser absolvida, decidimos nos termos do art. 65°-A n° 1 do Decreto Lei 433/82 de 27.10, e art. 41° da Lei 107/2009 de 14.09, retirar a acusação.
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Promovo se notifique a arguida para dar, ou não, o seu acordo à retirada da acusação.
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Não promovemos a notificação da autoridade administrativa, porquanto consideramos que a última parte do art. 41° da Lei 107/2009 de 14.09, ao fazer depender do acordo da autoridade administrativa a retirada da acusação, é inconstitucional por violação do princípio da autonomia do Ministério Público consagrada no art. 219° nº 2 da Constituição da República Portuguesa. Seria como fazer depender do acordo de uma autoridade policial participante de um crime, a decisão de arquivamento ou suspensão de um inquérito.
Na fase de impugnação judicial do regime deste tipo de contra-ordenações, as autoridades administrativas devem estar sujeitas às decisões das autoridades judiciárias (Juiz e Ministério Público) tal como sucede no processo penal, e não tornarem-se em entidades que tornam as decisões de uma dessas autoridades (o Ministério Público) refém do seu acordo.
Mais consideramos que a parte da norma em questão viola até o princípio da igualdade, consagrado no art. 13° da CRP, porquanto tal acordo não é exigível nos restantes casos de contra-ordenação como resulta do DL 433/82 de 27.10, o que coloca os arguidos das contra-ordenações laborais e da segurança social em situação de desigualdade, num sentido mais gravoso e injustificável, relativamente aos arguidos de outro tipo de contra-ordenações.
Assim, promove-se se recuse a aplicação do art. 41° da Lei 107/2009 de 14.09, na parte em que exige o acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação por parte do Ministério Público, por inconstitucionalidade da mesma.”
Notificada apenas a arguida, nos termos do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, veio a mesma manifestar o seu acordo à retirada da acusação.
Em 23 de Novembro de 2009, foi proferida a seguinte decisão:
«O Ministério Público veio retirar a acusação, nos termos e com os fundamentos de fls. 537 a 541, que aqui se dão por reproduzidos, invocando a inconstitucionalidade da última parte do artigo 41º da Lei 107/2009 de 14/9, na parte em que faz depender do acordo da autoridade administrativa a retirada da acusação.
Notificada a arguida de acordo com tal normativo, a mesma veio dar o seu acordo à retirada da acusação.
Nos termos daquele artigo 41°, a todo o tempo e até à decisão final, pode o Ministério Público, com o acordo do arguido e da autoridade administrativa, retirar a acusação.
Porém, prescreve o artigo 219°/1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal, gozando o mesmo da autonomia prevista na lei, caracterizada pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade, encontrando-se unicamente sujeito a directivas, ordens e instruções previstas no seu Estatuto (cfr. artigos 1º e 2° do respectivo Estatuto).
Consequentemente, em processo de contra-ordenação, compete ao Ministério Público deduzir a acusação, conforme dispõe o artigo 37° da mencionada Lei 107/2009, mediante a apresentação dos autos ao juiz, competindo-lhe ainda promover a prova dos factos relevantes para a decisão de harmonia com o artigo 47º do mesmo diploma legal.
Nestes termos, a autoridade administrativa que proferiu a decisão condenatória impugnada não é parte no processo de contra-ordenação.
Por outro lado, nos termos previstos no artigo 65°A do DL 433/82 de 27 de Outubro (regime geral das contra-ordenações), aqui aplicável subsidiariamente por força do artigo 60º daquela Lei 107/2009, a retirada da acusação pelo Ministério Público depende apenas do acordo do arguido, aí se prescrevendo que deverá ser ouvida a autoridade administrativa apenas quando tal seja indispensável a uma adequada decisão.
Deste modo, no regime geral das contra-ordenações verifica-se que o Ministério Público poderá retirar a acusação, sem ouvir a autoridade administrativa, nomeadamente quando considere estar em causa uma questão de direito e não uma questão técnica relacionada com a contra-ordenação imputada.
No caso das contra-ordenações laborais e de segurança social, a citada Lei 107/2009 veio introduzir como pressuposto da retirada da acusação o acordo da autoridade administrativa.
Contudo, como refere o Digno Magistrado do Ministério Público na sua douta promoção, a exigência em concreto do acordo da autoridade administrativa (e não sendo este dado), salvo o devido respeito por opinião contrária, reconduzir-se-ia a obrigar o Ministério Público a sustentar uma acusação que no seu próprio entender, se afigura infundada, a promover a prova de factos que no seu entender são insusceptíveis de integrar a prática de uma contra-ordenação, sujeitando-o pois a directivas a que legal e constitucionalmente não se encontra sujeito, constituindo assim violação da sua autonomia estatutária e constitucional.
Em conformidade, concluímos que aquele artigo 41°, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa à retirada da acusação, viola o princípio da autonomia do Ministério Público consagrado no citado artigo 219° da Constituição da República Portuguesa.
Acresce, por outro lado, que pelas razões acima referidas, tal norma cria uma situação de desigualdade entre os arguidos em processo de contra-ordenação laboral e de segurança social, e os arguidos em outros processos de contra-ordenação não especificados e sujeitos ao respectivo Regime Geral.
Pelo exposto, recusando-se a aplicação daquele artigo 41° da Lei 107/2009 de 14/9, na parte em que exige o acordo da autoridade administrativa, por inconstitucional, atenta a retirada da acusação pelo Ministério Público e o acordo da arguida, decide-se determinar o arquivamento dos autos».
3. É desta decisão que o Ministério Público interpõe o presente recurso, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC).
Nas alegações apresentadas, conclui o recorrente, nos termos seguintes:
“1º A norma constante do artigo 41º da Lei nº 107/2009, de 13/09, na parte em que impõe o acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público, em processo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima por contra-ordenação laboral, viola o princípio da autonomia do Ministério Público, consagrado no artigo 219º da Constituição da República Portuguesa.
2º Com efeito, reconhecendo a Lei nº 107/2009, de 14/09, a titularidade do Ministério Público, na fase de impugnação judicial, no exercício da acção contra-ordenacional, não pode esse reconhecimento desligar-se da autonomia que a Lei Fundamental reconhece a esta magistratura, cuja actuação, nesta matéria, se pauta pela sujeição apenas ao princípio da legalidade objectiva.
3º A vinculação a critérios de estrita objectividade implica que o Ministério Público formule o juízo concreto e casuístico acerca do exercício da acção contra-ordenacional, liberto de condicionalismos, muito embora, essa sua acção deva ser sindicável, como efectivamente acontece por via do controlo judicial, uma vez que os autos devem sempre ser presentes ao juiz (artigo 37º da Lei nº 107/2009).
4º Pelo que, deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado na decisão recorrida.”
A recorrida não apresentou alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentos
4. O presente recurso tem como objecto a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, na parte em que exige o prévio acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público.
O referido preceito apresenta a seguinte redacção:
“Artigo 41.º
Retirada da Acusação
A todo o tempo, e até à sentença em primeira instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 39.º, pode o Ministério Público, com o acordo do arguido e da autoridade administrativa, retirar a acusação.”
5. O Tribunal Constitucional já apreciou a mesma norma, no âmbito do Acórdão n.º 226/2011 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt), cuja fundamentação seguiremos de perto.
Colocava-se, no referido aresto – tal como no presente recurso – a questão da desconformidade constitucional da norma em análise, por violação dos princípios da autonomia do Ministério Público e da igualdade.
Relativamente a este último parâmetro constitucional, refere o Acórdão n.º 226/2011 que a especificação de um regime aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, que se afasta do regime geral previsto no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não determina, por si só, a violação do princípio da igualdade.
Reiteramos a argumentação que, a esse propósito, é aduzida:
“De acordo com jurisprudência assente do Tribunal, o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição, não proíbe em absoluto toda e qualquer diferenciação de tratamento, mas apenas as distinções materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Conforme assevera o Acórdão n.º 188/90 (Diário da República, 2ª série, de 12 de Setembro de 1990), «Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário» mas «não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa», concluindo:
O princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot).
O artigo 13.º da Constituição não impede, em suma, que, em matéria de ilícito contra-ordenacional, o legislador ordinário possa estabelecer regimes especiais destinados a regular aspectos específicos do interesse público, e muito menos visará impor igualdade nos aspectos organizatórios das pessoas colectivas públicas. O regime geral das contra-ordenações e coimas terá sido originariamente pensado para as pequenas infracções, facilmente investigáveis, com implicações sociais limitadas; sectores específicos da actividade económica, por exemplo, podem requerer uma adaptação do regime geral, tendo em atenção a especial relevância dos interesses em que se movem, como acontece no caso em presença.”
Nestes termos, conclui-se que a norma em apreciação não comporta violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
6. Quanto à alegada desconformidade da norma com o princípio da autonomia do Ministério Público, impõe-se uma análise mais detalhada.
Refere o n.º 2 do artigo 219.º da Lei Fundamental que o Ministério Público goza de estatuto próprio e de autonomia, nos termos da lei.
O conceito de autonomia abarca a exigência de auto-determinação, implicando, numa dimensão negativa, a exclusão da hetero-determinação, através da subordinação a outras entidades públicas e, fundamentalmente, a exclusão de qualquer dependência do poder político. (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 239).
Na sua dimensão positiva, a autonomia traduz-se na conformação da actuação do Ministério Público por princípios de legalidade e objectividade (artigo 2.º, n.º 2 do Estatuto do Ministério Público), necessários à configuração de uma intervenção processual imparcial, entendida esta imparcialidade na sua dúplice vertente de obrigatoriedade de ausência de interesse pessoal, no desfecho do processo, pelo magistrado interveniente, e de ausência de vinculação a uma determinada posição material pré-definida (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 209).
A autonomia do Ministério Público constitui, assim, um traço essencial na definição desta magistratura como um órgão de administração de justiça, vocacionado, no âmbito da sua actuação processual mais significativa, para a colaboração na descoberta da verdade e realização do direito (cfr. artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
A garantia constitucional da autonomia tem o seu campo de eleição no âmbito do processo penal.
Nesse sentido, refere o Acórdão n.º 516/93 deste Tribunal Constitucional (disponível no sítio já aludido):
“ (…) a garantia constitucional da autonomia encontra a sua real justificação na necessidade que há de o Ministério Público exercer, com distanciação em relação ao poder político, a sua função típica de defender a sociedade contra a violação de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário - a função, portanto, de 'exercer a acção penal'. Aí, com efeito, o Ministério Público tem que agir como verdadeiro órgão de justiça, e não como uma parte (entendida esta expressão no sentido de entidade empenhada no triunfo de uma acusação deduzida contra o arguido). Há-de, por isso, 'colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito', decidindo-se e orientando-se por 'critérios de estrita objectividade' (cf. o artigo 53º do Código de Processo Penal). À sua actuação há-de presidir sempre - no dizer de FIGUEIREDO DIAS - uma 'incondicional intenção de verdade e de justiça' (cf. Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, págs. 25 e 31.”
Porém, mesmo no âmbito do processo penal, não impera um monopólio da promoção do Ministério Público, no sentido excludente da participação de terceiros, nomeadamente particulares. Exemplos desta participação são, desde logo, os institutos da queixa e da acusação particular – pressupostos condicionantes da legitimidade do Ministério Público na prossecução da acção penal – e ainda o expresso reconhecimento constitucional da possibilidade de intervenção do ofendido no processo (artigo 32.º, n.º 7), bem como a inclusão da acção penal no âmbito da acção popular (artigo 52.º, n.º 3, alínea a)) (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 224).
A intervenção de entidades públicas, no processo penal, também não pode ser liminarmente afastada, quando “a posição da entidade pública quanto ao exercício da acção penal é decisivamente diferente da posição do Estado e lhe confere, perante o Ministério Público e as exigências próprias da respectiva intervenção, uma autonomia aproximada da de um simples particular” (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 225, 226).
As exigências do princípio da autonomia do Ministério Público impostas, no âmbito do processo penal, não são idênticas quando a sua actuação se centra no domínio contra-ordenacional.
Na verdade, a concretização prática da autonomia assume diferentes contornos, em função da específica área de intervenção em que as numerosas atribuições do Ministério Público se localizam.
Sintetizando a natureza e sentido da especificidade do direito sancionatório contra-ordenacional, refere o Acórdão n.º 226/2011 o seguinte:
“O direito das contra-ordenações constitui um ramo jurídico autónomo. O Decreto-Lei n.º 232/79 de 24 de Julho instituiu no nosso ordenamento jurídico o regime geral do ilícito de mera ordenação social, atendendo a que «tanto no plano da reflexão teórica como no da aplicação prática do direito se sente cada vez mais instante a necessidade de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal». E logo houve ensejo, no respectivo texto preambular, de se deixarem assinalados alguns traços essenciais caracterizadores da natureza própria do direito de mera ordenação social, especialmente no plano da sua relacionação com o direito criminal. A este respeito, escreveu-se: “hoje é pacífica a ideia de que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença de natureza. A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (Eduardo Correia, «Direito penal e direito de mera ordenação social», in Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1973, p. 268).
A Comissão Constitucional, no Parecer n.º 4/81 (Pareceres da Comissão Constitucional, 14.º vol., pp. 205 a 272) tratou longamente este tema, fazendo minuciosa referência às posições mais significativas da doutrina. E, na linha de orientação já traçada no preâmbulo do respectivo diploma a propósito da natureza do ilícito de mera ordenação social, a Comissão Constitucional ponderou o seguinte:
«para o legislador português — ao que parece único legislador europeu que seguiu até agora a solução germânica — o direito de mera ordenação é um aliud relativamente ao direito penal, um ramo diverso, um «ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal». Como se afirma em múltiplos passos do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, as infracções às leis vigentes nos domínios da economia, saúde, habitação, cultura e ambiente normalmente não atingirão relevo penal, antes configurando «uma forma autónoma de ilicitude que reclama um quadro próprio de reacções sancionatórias e um novo tipo de processo».
A própria Constituição reconhece a autonomia do ilícito de mera ordenação social, nos artigos 165.º d) e 227.º, q). De facto, na origem da criação dogmática da figura das contra-ordenações esteve, entre outras, a preocupação de “revestir o processamento destas infracções de especificidades que permitissem, sobretudo, a aplicação das sanções pelos agentes administrativos encarregados da fiscalização e controlo das respectivas actividades” (Jorge de Figueiredo Dias, “Para uma Dogmática…”, p. 47). Esta é, de facto, a nota distintiva entre os processos de contra-ordenação e os processos criminais, e que não deixará, a final, de ter implicações no que toca ao papel do Ministério Público.
Nesse sentido, no Acórdão n.º 158/92 (in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 21.º vol., p. 713), o Tribunal Constitucional aceitou serem diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgânicos, a que se submete a legislação penal e a que se reporta às contra-ordenações, pelo que não violava a Constituição o regime que atribui competência às autoridades administrativas para o processamento do processo contra-ordenacional e aplicação de coimas. O Tribunal considerou ainda que estava garantido, com efectividade e permanência, o direito de impugnação judicial das decisões sancionatórias daquelas autoridades – não atentando tal competência com o princípio da reserva de função jurisdicional dos tribunais.”
Encontrando-se o processamento das contra-ordenações e a aplicação das coimas e sanções acessórias confiadas às autoridades administrativas, numa primeira fase, está garantido o acesso do arguido a uma segunda fase, de impugnação judicial, desde logo por imposição constitucional.
No âmbito da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, recebida a impugnação judicial, a autoridade administrativa competente envia os autos ao Ministério Público (artigo 36.º).
O Ministério Público torna sempre presentes os autos ao juiz, com indicação dos respectivos elementos de prova, valendo este acto como acusação (artigo 37.º).
Porém, até à prolação da sentença em primeira instância ou até ser proferido o despacho previsto no n.º 2 do artigo 39.º – no caso de o juiz não considerar necessária a audiência de julgamento e o arguido e o Ministério Público não deduzirem oposição – pode o Ministério Público, com o acordo do arguido e da autoridade administrativa, retirar a acusação (artigo 41.º).
É esta exigência de acordo, por parte da autoridade administrativa, que constitui o cerne da discussão no âmbito do presente recurso.
Enquanto que, no regime geral, o exercício da faculdade de retirar a acusação é apenas precedido, quanto à autoridade administrativa, da audição respectiva, que poderá mesmo ser dispensada (artigo 65.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82 de 27 de Outubro), no âmbito das contra-ordenações laborais e de Segurança Social, a lei condiciona tal exercício ao prévio acordo da autoridade administrativa.
Tal circunstância, porém, não atenta contra o princípio da autonomia do Ministério Público.
Na verdade, como se salienta no Acórdão n.º 226/2011, “ao exigir-se o acordo da autoridade administrativa para a retirada dessa acusação, releva-se, ao fim e ao cabo, o interesse público especialmente confiado à tutela da autoridade administrativa, na fase judicial. Com efeito, a Constituição não colocou, no processo de contra-ordenação, a defesa do interesse público na exclusiva tutela do Ministério Público. O legislador não está, por isso, impedido de destacar um determinado interesse público e de incluir a sua protecção na competência de uma entidade pública distinta, à qual passa depois a exigir um especial dever de colaboração com o Ministério Público, na fase judicial de defesa desse interesse.”
No fundo, a solução escolhida – que se situa no âmbito de liberdade de conformação legislativa constitucionalmente permitida – apenas tem como consequência que, na ausência de acordo da autoridade administrativa – na parte que aqui cumpre analisar – os autos prosseguirão para apreciação judicial, não representando tal falta de acordo qualquer condicionamento ulterior da posição que o Ministério Público decida assumir, substancialmente, sempre que chamado a pronunciar-se ou a intervir, mantendo-se intocada a sua autonomia, traduzida desde logo na possibilidade de defender posição discordante da assumida pela decisão administrativa condenatória, nomeadamente a absolvição do arguido, em observância de critérios de legalidade e estrita objectividade, de acordo com a livre leitura que o magistrado assuma relativamente aos factos em discussão ou ao respectivo enquadramento jurídico.
Nestes termos, conclui-se que a norma em análise não viola o princípio da autonomia do Ministério Público.
Na verdade, por um lado, importa considerar que é no âmbito do exercício da acção penal que a compreensão do referido princípio é mais exigente, sendo que tal exigência não é automaticamente transponível, em idêntico grau, para o âmbito do ilícito de mera ordenação social.
No domínio contra-ordenacional, não é constitucionalmente inadmissível que o legislador, atendendo à especificidade, ao carácter técnico ou à importância do sector, decida conferir às autoridades administrativas - a quem cometeu, em primeira linha, a função de defesa de determinados interesses públicos pressupostos nos tipos de ilícito de mera ordenação social – uma participação mais ampla, na fase de impugnação judicial das decisões administrativas sancionatórias.
Por outro lado, a exigência de acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação, neste contexto, apenas tem o efeito de determinar o prosseguimento dos autos para apreciação judicial, não condicionando, ulteriormente, a posição e a actividade processual que o Ministério Público venha a assumir, ao longo do processo.
7. Pelo exposto, considera-se não inconstitucional a norma do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, na parte em que exige o prévio acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público.
I – Decisão
Nestes termos, decide-se:
- julgar não inconstitucional a norma do artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, na parte em que exige o prévio acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público.
- e, em consequência, julgar procedente o presente recurso, e determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com este juízo de não inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011.- Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Rui Manuel Moura Ramos.