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Procº nº 458/91.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. Em processo de querela pendente pela comarca de Cascais e em que é réu A., o representante do Ministério Público exarou, em 8 de Maio de 1981, a seguinte promoção:
'Resulta dos autos que o R. se encontra actualmente no Centro Penitenciário de Badajoz, estando, por tal razão, impossibilitado de comparecer à audiência de julgamento.
Pelo exposto, p. se designe nova data para esta, mais promovendo se dispense o R. de comparecer pessoalmente, nos termos do art 566 do C.P.P. 29.
A ser deferida tal promoção, deverá o R. ser notificado desse despacho, solicitando-se, para o efeito, os bons ofícios do Consulado de Portugal de Badajoz.
.......................................'
2. Conclusos os autos ao Juiz do Círculo Judicial de Cascais, veio o mesmo a proferir neles, em 29 dos mesmos mês e ano, despacho do teor seguinte:
' Para julgamento designo o dia 10.10.91 às 16H00.
*
Não se declara dispensado o R de comparecer a julgamento nos termos do art 566 do CPP (corpo do artigo) por não podermos dispor do direito deste a defender-se.
Este normativo visa, no fundamental, realizar o direito punitivo do Estado, pouco lhe importando assegurar ao R. garantias de defesa.
O art 418 do CPP, para que remete e cuja aplicação pressuporia, foi declarado inconstitucional (Res. nº 62/78 de 19.4 in DR de 10.5.78)
Entendemos que a promovida dispensa e consequente realização do julgamento sem a presença do R violaria as disposições constitucionais do art
32, nºs. 1 e 5 da Constituição.
Razão porque a não declaramos.
........................................'
3. Deste despacho recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, dizendo no respectivo requerimento interpositor que nesse despacho foi recusada a aplicação da norma constante do corpo do artº 566º do Código de Processo Penal.
4. O Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto aqui em funções, nas alegações que produziu, concluiu no sentido de dever ser julgada inconstitucional, por violação do direito de defesa e do princípio do contraditório, consagrados nos números 1 e 5 do artigo 32º da Lei Fundamental, o corpo do artº 566º do Código de Processo Penal de 1929, 'na parte em que permite a dispensa de comparência em julgamento de réu preso no estrangeiro, sendo o mesmo julgado como se estivesse presente', consequentemente devendo, na parte impugnada, ser confirmada a decisão recorrida.
II
1. A norma questionada reza assim:
'Artigo 566º.
Se o réu estiver praticamente impossibilitado de comparecer na audiência de julgamento por idade, moléstia ou por outra causa justificativa, como a de residir em lugar afastado do território português continental, insular ou ultramarino, poderá ser interrogado no domicílio ou dispensado de comparecer em julgamento, procedendo-se a este, como se es- tivesse presente, nos termos do
§ 1º do artigo 418º, sem prejuízo, porém, de ulterior determinação sobre a sua comparência, se o tribunal a reputar necessária ao esclarecimento da verdade.
........................................'
2. No despacho sob recurso, como se viu, foi entendido que a transcrita norma tinha por preocupação assegurar o «poder punitivo do Estado», desligando-se (ou 'pouco' se 'importando', na fraseologia empregue nesse despacho) da pretensão de assegurar as garantias de defesa do réu.
Será que, efectivamente, perante a norma questionada, não ficam totalmente asseguradas as garantias de defesa do arguido que a Constituição consagra?
É o que se irá ver.
3. Em primeira linha, há que ponderar que a estatuição constante do corpo do artº 566º do C.P.P de 1929 não visa um verdadeiro caso de julgamento à revelia do arguido, entendido este como consagrando a realização da audiência de discussão e julgamento, ou de alguma das suas sessões, sem a presença do réu, por desconhecimento do seu paradeiro, quer tenha ele tido conhecimento do despacho de pronúncia ou equivalente (cfr. artigos 563º e 565º do mesmo Código), quer não tenha tido tal conhecimento (cfr. artigos 569º e
570º, ainda do mesmo diploma).
Trata-se, antes, da comummente designada «revelia imprópria», que não impõe o processamento dos autos segundo determinadas regras
(cfr. artigos 564º, 568º, 569º, 570º, 571º e segs.), realizando-se a audiência de forma idêntica àquela que seria a seguida se o réu a ela comparecesse.
4. O problema que se coloca reside, pois, em saber se, dado o modo como a audiência se realiza, são diminuídos o direito de defesa do arguido e o assegurar do contraditório e do apuramento da verdade material, vectores pelos quais se há-de reger o processo criminal.
A norma em causa permite que, independentemente de haver uma causa justificativa de não comparência do réu a julgamento, este se realize sem a sua presença, procedendo-se à audiência em moldes idênticos àqueles que são seguidos quando o réu se encontra presente.
4.1. Já em 1967 Eduardo Correia na Revista de Direito e Estudos Sociais (ano 14º) transmitia a ideia segundo a qual, ainda que o processo criminal fosse iluminado pela preocupação de assegurar o direito de punir do Estado, não devia ele 'menos procurar garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças'.
Esta ideia tem ainda hoje pleno valor, podendo mesmo dizer-se que, no seio de um Estado de direito como é o nosso, que se baseia, além do mais, 'no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais' (cfr. artigo 2º da Constituição), se bem que se imponha, de um lado, que o 'jus puniendi' do Estado seja realizado com vista a garantir a repressão das violações da legalidade e a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, o que consequencia a busca da verdade material, é por demais importante, por outro, que aquela realização se alcance com total respeito das garantias de defesa do arguido.
É que, sem este respeito, a aludida busca da verdade material tornar-se-ia sobrevalorada e bem poderia conduzir à postergação daqueloutro valor sobre o qual repousa o Estado de direito, precisamente o de se deverem plenamente efectivar a garantias e liberdades fundamentais.
Diz-se, a este propósito, no Acórdão nº 394/89 (Diário da República, 2ª Série, de 14 de Setembro de 1989):-
'O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realizar o seu 'ius puniendi' e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo, designadamente contra a possibilidade de uma sentença injusta.
O Estado está, naturalmente, interessado em punir os culpados de factos criminosos, pois estão em causa violações de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário. Mas tem interesse em punir apenas os verdadeiros culpados'.
4.2. Ora, sendo estes os objectivos perante os quais, além do mais, se deve balizar o processo criminal, segue-se que se impõe analisar se a não presença do arguido à audiência constitui uma circunstância que pode influir na diminuição das suas garantias de defesa, garantias que a Constituição, no seu artigo 32º, nº 1, erege como direito fundamental.
Torna-se claro que a resposta a esta questão não pode deixar de ser afirmativa.
Na realidade, nos casos como o ora em apreço, em que a dispensa de comparência do arguido a julgamento (sendo que a sua presença é a regra - cfr. artº 418º, corpo, do C.P.P. de 1929 e, hoje, artº 325º, nº 1, do vigente Código de Processo Penal) se efectiva mesmo que ele tenha motivo justificado para não poder comparecer à audiência marcada - e ainda que não tenha sido auscultada a sua vontade para uma tal decisão - resulta que ao arguido não é dada oportunidade para, pessoalmente, expor as razões, para exercer o seu direito a ser ouvido, para, enfim, se postar numa realização de imediação perante o juiz, ao qual é exigido o conhecimento da sua personalidade, conhecimento esse que, sem a sua presença, é muito dificilmente atingível.
A nossa doutrina, aliás, tem colocado um acento tónico bem vivo no sentido de a presença do arguido na audiência de julgamento ser um verdadeiro direito que lhe cabe (cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1968, 168, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º vol., 1974,
431 e 432, e idem, 1º vol., 1981, 142 e Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, 1955, Vol. I, 146 e 417, e idem, 1981, 146).
Haverá, pois, que concluir que a dispensa da presença do réu na audiência, ao menos em casos como os ora em apreciação - ou seja, naqueles casos em que haja motivos que justifiquem que o arguido não possa comparecer a julgamento no dia designado para a sua realização e em que tão pouco foi tida em consideração a eventual vontade de que fosse possuído quanto à questão da sua comparência - fere o respectivos direitos de defesa e, logo, as garantias que sobre ele estão consagradas constitucionalmente,
E isto tanto mais quanto é certo que, por força do que se encontra consagrado nas regras de cooperação judiciária internacional em matéria penal constantes do Decreto-Lei nº 43/91, de 22 de Janeiro, entrado em vigor em 1 de Maio seguinte, se descortinam meios que podem assegurar a presença em audiência em território português, de réu que se encontre a cumprir pena em país estrangeiro.
E fere, igualmente, aqueloutros princípios do contraditório e da própria procura da verdade material que devem ser postulados pelo processo criminal num Estado de direito tal como o nosso.
Na verdade, pode ler-se, em vários passos, no estudo, que não foi possível completar, elaborado por Eduardo Correia e publicado em diversos números da Revista de Legislação e Jurisprudência sob o título «Breves Reflexões sobre a necessidade de reforma do Código de Processo Penal, relativamente aos réus presentes, ausentes e contumazes» (anos 110º, pags. 99 a
101, 131, 132, 162, 163, 178, 179, 195, 210 e 211, 114º, pags. 104, 105 e 364 a
367, e 115º, pags. 293 a 295):
'Ninguém que substitua o arguido na sua defesa estará, como ele, em condições de fornecer certos elementos probatórios essenciais à descoberta da verdade: a presença do arguido é, nessa medida, uma fonte de prova e um meio de investigação da verdade material.
........................................'
'A presença física e constante do arguido na audiência de discussão e julgamento é exigência fundamental do processo criminal: ele constitui a necessária consequência do chamado princípio do contraditório. Esse princípio, encarado do ponto de vista do arguido, pretende, antes do mais, realizar o direito de defesa, actuando, pois, a essa luz, no interesse do réu.
........................................'
'A ausência do arguido na audiência de julgamento parece inconstitucional por envolver uma violação do direito à defesa, da garantia da obtenção da verdade material.
........................................'
(cfr. referidos anos 110º, 99, e 115º, 293).
Com idêntica postura, referia a Comissão Constitucional no Parecer nº 12/78 (Pareceres da Comissão Constitucional, 5º vol., 79 e segs.) que se não poderia considerar que a ausência do arguido na audiência de julgamento era algo equivalente a uma confissão, bem como se não poderia entender que isso significava a renúncia a um direito de defesa. E, quanto a este último ponto, 'pela simples razão de que se' tratava 'de um direito inerente à pessoa humana e, por isso, indisponível ou irrenunciável'.
Poder-se-á, pois, também para hipóteses como aquela que agora curamos, dizer, na esteira do raciocínio do citado Acórdão nº 394/89 que, tendo o processo penal de um Estado de direito 'de ser um processo leal', exigente da presença do arguido na audiência de discussão e julgamento, 'a fim de, aí, se poder fazer ouvir e defender', a efectivação de um julgamento, permitida pela norma em apreciação, sem a presença do réu, 'não será um 'fair trail'.
E isto é tanto mais verdadeiro quanto é certo que, pela norma 'sub specie', é facultado o julgamento sem a presença do arguido independentemente da auscultação da sua vontade e da ponderação de causas justificativas da não comparência, mesmo em hipóteses em que o crime que lhe é imputado revista acentuada gravidade ética e para o qual são cominadas penas de elevada severidade. Esta asserção é aqui formulada justamente pela ressalva que se extrai do aludido Acórdão 394/89 e que é dirigida a casos contados a que correspondam sanções leves ou de fraca ressonância ética, para além dos de existência de conveniência pessoal do arguido em não comparecer e daqueles em que a sua própria presença seja um factor de perturbação da audiência ou em que possa desencadear perigo de fuga ou de actos de violência (casos esses, todavia, que reclamam que a dispensa de comparência do réu seja rodeada de cautelas e cuidados de sorte a não limitarem, 'desnecessária ou desproporcionadamente, o direito-dever do arguido a ser ouvido e a assistir ao julgamento'). III
Perante o exposto, o Tribunal decide:
a) Julgar inconstitucional, por violação das garantias de defesa, do contraditório e da imediação da prova - esta constante no princípio do Estado de direito democrático - ínsitas nos artigos 32º, números 1 e 5, e 2º, da Lei Fundamental, a norma do corpo do artigo 566º do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que permite que o arguido seja dispensado de comparecer em audiência de discussão e julgamento e que esta se realize como se ele estivesse presente, apesar de haver justificação para não comparecer e de ele não ter manifestado conveniência pessoal na sua não comparência e;
b) consequentemente, nega provimento ao recurso.
Lisboa, 16 de Março de 1993
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa