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Proc. nº 319/92
1ª Secção Rel. Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O A., médico, residente na Rua
------------------------, em --------------, Guimarães, foi julgado conjuntamente com outro médico, B., pelo tribunal colectivo de Guimarães com intervenção do júri, ao abrigo do Código de Processo Penal de 1929, pela prática de um crime de abandono previsto e punido pelo art. 138º, nº 1, alínea b), e nºs
2 e 3 do Código Penal, em concurso aparente com um crime de recusa de facultativo, previsto e punido pelo art. 276º, nº 1, do mesmo Código.
Por acórdão do Tribunal colectivo de Guimarães de 13 de Julho de 1990, foi julgada improcedente e não provada a acusação deduzida contra o segundo arguido B., e parcialmente provada e procedente a acusação quanto ao arguido A., vindo este a ser condenado como autor material de um crime de abandono, previsto e punido pelo art. 138º, nº 1, alínea b), do Código Penal, na pena de seis meses de prisão substituída por multa à taxa diária de dois mil escudos, perfazendo a quantia de trezentos e sessenta mil escudos e na alternativa de cento e vinte dias de prisão.
Desta decisão interpuseram recursos para o Supremo Tribunal de Justiça o arguido A. e o Procurador da República no Círculo Judicial de Guimarães.
No requerimento de fls. 553 dos autos, o arguido A. declarou não se conformar com a decisão sobre as questões prévias suscitadas por si na contestação (invocação de que não tinha ainda a qualidade de médico, por ser licenciado em medicina a frequentar o internato geral; arguição da inabilidade de 3 testemunhas), com a decisão do júri sobre a matéria de facto e com a decisão constante do acórdão condenatório, indicando que interpunha recurso, 'nos termos dos arts. 490º e seguintes, 518º, 519º, 520º, 523º, e 525º do Código de Processo Penal de 1929, da matéria de facto e da matéria de direito para o Supremo Tribunal de Justiça'.
2. Estes recursos foram admitidos, tendo sido apresentadas alegações por ambos os recorrentes e contra-alegações de resposta. Nas alegações do arguido A. foram formuladas conclusões respeitantes ao julgamento da matéria de facto e da matéria de direito, tendo sido de novo questionada a inabilidade para depor de três testemunhas, funcionários do Hospital C., e pedida a anulação das respostas aos quesitos e, consequentemente, a anulação do acórdão do colectivo objecto de recurso e ainda a alteração das respostas aos quesitos 4º e 23º, isto no que toca à matéria de facto. Pediu, por isso, o referido arguido a sua absolvição do crime por que fora condenado, em virtude de não ter podido cometê-lo por não ter a qualidade de médico
(frequentava o internato geral, sendo um mero estagiário em período de aperfeiçoamento) ou, quando assim se não entendesse, fossem declaradas nulas todas as respostas dadas aos quesitos e, ainda, fosse declarado nulo o julgamento por ter sido omitida a formalidade essencial de ser concedida à acusação e à defesa a palavra para alegações sobre a medida da pena e por se ter cometido a nulidade de não se exarar em acta o cumprimento do estatuído pelo art. 505º do Código de Processo Penal de 1929. O Ministério Público, nas suas contra-alegações, sustentou que o recurso do arguido não merecia provimento, tanto no que toca ao julgamento de facto, como ao julgamento de direito, preconizando no seu recurso a elevação da pena aplicada e a não concessão da suspensão da sua execução.
Os autos subiram ao Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Representante do Ministério Público neste Tribunal sustentado, no seu visto, que ambos os recursos deviam ser rejeitados, confirmando-se a decisão da primeira instância.
Por acórdão de fls. 615 a 617, proferido em 6 de Março de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça julgou ambos os recursos improcedentes.
Notificado deste acórdão, veio o recorrente A. requerer a aclaração quanto a certos passos do mesmo tidos por obscuros. O Procurador-Geral Adjunto, na sua resposta, sustentou que fosse parcialmente deferido o pedido de aclaração. Por acórdão de fls. 630 e 631, proferido em 23 de Maio de 1991, o Supremo Tribunal de Justiça julgou parcialmente procedente o pedido de aclaração. Nesse acórdão afirmou-se o seguinte:
'É manifesto que o recorrente apenas discute matéria de facto - a não ser quando diz não ser médico - e pede a sua absolvição por não poder ter cometido o crime
(não era médico) e pede a alteração das respostas aos quesitos 4º e 23º ou a nulidade do julgamento.
Ora, este Supremo Tribunal só conhece de matéria de direito - art. 666º do Código de Processo Penal de 1929. Mas, por outro lado, as respostas aos quesitos não são obscuras, deficientes ou contraditórias.
Na verdade, a alegação de fls. 569 e segs. é um repositório de matéria de facto.
Se não fora aquela parte «de não ser médico» a alegação merecia ser rejeitada, portanto.
Tal pedido de aclaração nesta parte é mais uma crítica ao acórdão por não ter rejeitado o recurso, pois, como foi julgado o recurso improcedente, tanto valia para o recorrente se fosse rejeitado.
Mas, se tivesse sido rejeitado o recurso, viria certamente pedir a aclaração do acórdão proferido no sentido de se dizer se a alegação de não ser médico era matéria de facto.
O documento junto com as alegações não foi aceite por não ter sido apresentado na 1ª instância, frustrando-se um grau de jurisdição'.
Notificado deste acórdão, veio o recorrente A. arguir nulidades do acórdão do Supremo, chamando a atenção para o teor do art. 525º do Código de Processo Penal de 1929, em conjugação com o art. 518º do mesmo diploma, considerando que o Tribunal não atentara nesses artigos que lhe conferiam competência para conhecer do recurso sobre matéria de facto, relativamente às respostas do júri aos quesitos. Assim, teria violado, por omissão de pronúncia, o comando desse art. 518º. Arguiu ainda outras nulidades quanto ao recurso sobre matéria de direito.
Sobre esta reclamação, recaiu o acórdão de fls. 641, proferido em 31 de Outubro de 1991, onde pode ler-se o seguinte:
'1. O recorrente A. reedita em parte as aclarações já pedidas e decididas.
2. Mas não há aclaração de acórdão aclaratório.
De qualquer modo, não tem razão alguma.
Com efeito, o artigo 666º do Código de Processo Penal não excepciona os julgamentos feitos pelo júri, até porque igualmente intervém o tribunal colectivo. Depois, o artigo 712º do Código de Processo Civil não tem aplicação neste caso.
Finalmente, o recorrente foi punido pelo artigo 138º nº 1 al. b) do Código Penal que o puniu por negligência nas suas funções de médico (cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Português, anotado, 5ª edição, 1990, pág. 349-nº 2). Se tivesse actuado com dolo e não só com negligência, teria de ser punido por homicídio.
Nestes termos, indefere-se o pedido [...]'.
Notificado deste acórdão, veio o recorrente A., através do requerimento de fls. 645 a 647, arguir a inconstitucionalidade do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929, chamando a atenção para o teor do art. 518º do mesmo diploma e afirmando que, 'se não houvesse recurso para o STJ sobre a decisão do júri, como esse recurso é per saltum - recorre-se directamente da decisão do júri para o STJ sem passar pela Relação - chegar-se-ia à solução de não haver recurso da decisão do júri em matéria de facto, o que violaria o princípio, com assento constitucional, do «duplo grau de jurisdição», ou seja, a garantia de que as decisões de primeira instância serão fiscalizadas por um tribunal de segunda instância, no caso o STJ'. Invocou os arts. 16º, 18º e 8º da Constituição e fez referência ao art. 14º, nº 5, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em vigor no direito interno português, e que consagra a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria penal. Arguiu ainda uma nulidade deste mesmo acórdão de fls. 641.
Através do acórdão de fls. 650 , proferido em 19 de Março de 1992, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu este requerimento.
Neste acórdão ponderou-se que, embora o arguido tivesse dito que recorria para o Supremo Tribunal de Justiça da matéria de facto, não teria, porém, nas conclusões de alegações dito nada sobre tal matéria, o mesmo sucedendo no pedido de aclaração. Ter-se-ia lembrado de o fazer apenas no requerimento apresentado em 13 de Novembro de 1991 quanto a um acórdão proferido em 6 de Março anterior, pelo que tal suscitação teria sido extemporânea. E acrescentou-se de seguida:
'De qualquer modo o artigo 558º [trata-se de lapso; a referência é ao art. 518º] deste último diploma [o Código de Processo Penal de 1929] diz que cabe recurso da matéria de facto para o S.T.J. apenas com base em qualquer dos fundamentos a que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações.
Ora, este artigo 712º não é aplicável. E expressa-se melhor o artigo 410º nº 2 als. a), b) e c) do Código de Proc. Penal vigente. Mas também não é nenhum dos casos aplicável neste processo.'
Através do requerimento de fls. 654, o recorrente A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional dos acórdãos de 6 de Março de
1991, de 31 de Outubro do mesmo ano e de 19 de Março de 1992, todos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, invocando a alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Afirmou que nesses acórdãos foi aplicada a norma do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929 'cuja inconstitucionalidade é manifesta, foi suscitada no processo (e já foi declarada com força obrigatória geral no caso paralelo do art. 665º desse Código [...] - cfr. Ac. nº 401/91 publicado no Diário da República de 8/1/92)'.
Este recurso foi admitido por despacho de fls. 655.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apresentaram alegações recorrente e recorrido.
O recorrente pediu que fossem julgados inconstitucionais os arts. 666º e 518º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhes foi dada pelos acórdãos recorridos, 'com a consequência de, verificada essa inconstitucionalidade, o processo baixar ao Tribunal recorrido para este apreciar, sem limitações e em plena jurisdição, o recurso para aí interposto pelo recorrente da matéria de facto tal como esta foi fixada pelo Tribunal de Júri, em primeira instância'. Formulou as seguintes conclusões:
'1ª Através de requerimento oportunamente apresentado, o recorrente interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça recurso de facto e de direito, a que se seguiram as respectivas alegações, da decisão condenatória do Tribunal de júri em primeira instância.
2ª O recurso - per saltum - fundou-se, quanto à matéria de facto no disposto no artigo 518º do Código de Processo Penal de 1929, mas não foi apreciado pelo S.T.J. por Acórdão de 06/03/1991, aclarado por Acórdão de 23/05/1991 por ser
«manifesto que o recorrente apenas discute matéria de facto» e «este Supremo Tribunal só conhece de matéria de direito» - artigo 666º do Código de Processo Penal de 1929».
3ª Arguida a nulidade desse Acórdão, o S.T.J. em novo Acórdão, agora de
31/10/1991, repetiu que «o artigo 666º do Código de Processo Penal de 1929 não excepciona os julgamentos feitos pelo júri», acrescentando que «o artigo 712º do Código de Processo Civil não tem aplicação neste caso».
4ª Arguida pelo recorrente a inconstitucionalidade dessas normas, nessa interpretação, veio o S.T.J. a produzir novo Acórdão, em 19/03/1992, dizendo que o artigo 558º do Código de Processo Penal de 1929 admite recurso da matéria de facto para o S.T.J. «apenas com base em qualquer dos fundamentos a que se referem os nºs 1 e 2 do artigo 712º do Código de processo Civil», acrescentando que «este artigo 712º não é aplicável».
5ª Ora, na interpretação que os Acórdãos referidos lhes dão, o artigo 666º do Código de Processo Penal de 1929 e o artigo 518º do mesmo diploma devem ser julgados inconstitucionais por, quanto ao primeiro, tal interpretação vedar de todo um segundo grau de jurisdição, e, quanto ao segundo, admitir um mitigado segundo grau de jurisdição, em termos tão limitados que equivalem a não o consentir, em qualquer caso violando flagrantemente os artigos 8º, 16º, 18º, 32º nº 1 e 2 da Constituição e o artigo 14º nº 5 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos'. (a fls. 666 e vº)
Por seu turno, o recorrido Ministério Público, através da alegação subscrita pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, preconiza que seja dado provimento ao recurso, apresentando as seguintes conclusões:
'1º É admissivel o presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, apesar de o recorrente só ter suscitado a questão de constitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade de um dos acórdãos recorridos pois há que reconhecer que foi surpreendido com uma interpretação normativa insólita e imprevisível, afrontadora de lei expressa e ao arrepio da jurisprudência do próprio Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que da decisão do júri sobre matéria de facto cabe recurso para aquele Supremo Tribunal, embora apenas com base em qualquer dos fundamentos a que se referem os nºs 1º e 2º do artigo 712º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações;
2º A norma da parte final do artigo 666º do Código de Processo Penal de 1929, que estabelece a regra de que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, apenas conhece de matéria de direito, interpretada - como foi nas decisões recorridas - no sentido de que não excepciona os recursos da decisão do júri sobre matéria de facto, é inconstitucional, por violar o direito ao recurso das decisões finais em processo penal, que se deve considerar integrante das garantias de defesa consagradas no artigo 32º, nº 1, da Constituição'. (a fls.
708-709 dos autos)
4. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar o objecto do recurso.
II
5. - Começar-se-á por precisar qual a norma ou quais as normas que constituem objecto do mesmo recurso. Em seguida, terá de se apurar se se verificam os pressupostos de recorribilidade no caso sub judicio, isto é, se a questão de constitucionalidade foi suscitada durante o processo.
No requerimento de fls. 654 - através do qual, o recorrente interpôs o presente recurso - indica-se que a norma aplicada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdãos de 6 de Março de 1991, de 31 de Outubro do mesmo ano e de 19 de Março de 1992 (em rigor, a aplicação da norma ocorreu no primeiro acórdão, visto que os acórdãos subsequentes se limitaram a explicitar a razão de não conhecimento das conclusões referentes à matéria de facto constante das respostas dos quesitos pelo júri), cuja inconstitucionalidade foi suscitada pelo recorrente foi a do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929.
Apesar de o recorrente, nas alegações posteriormente apresentadas, sustentar que devem ser julgadas inconstitucionais as normas dos arts. 666º e 518º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhes foi dada pelos acórdãos recorridos, parece manifesto que só a primeira daquelas normas constitui objecto do processo. De facto, o art. 518º do Código de Processo Penal não foi pura e simplesmente aplicado, porque o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que o regime do art. 666º desse diploma havia de prevalecer sobre aquele e ser, por isso, objecto de aplicação. Por outro lado, no requerimento de interposição do recurso, o objecto foi delimitado pelo recorrente apenas quanto ao art. 666º. Em rigor e como nota o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, só a parte final do art. 666º, na interpretação que lhe foi dada pelo Supremo Tribunal de Justiça, constitui objecto do processo. Com efeito, dispõe esse preceito:
'O Supremo Tribunal de Justiça conhecerá da matéria de facto e de direito, nas causas que julgue em única instância e ainda no caso do § 3º do artigo 663º. Em todos os outros casos, conhecerá apenas da matéria de direito'.
6. - A entidade recorrida formulou nas suas alegações a dúvida sobre se o presente recurso de constitucionalidade será admissível, atendendo ao momento em que foi suscitada a questão de constitucionalidade pelo recorrente. Pode ler-se nessa peça:
'... o presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei nº 28/82.
Ora, constitui jurisprudência pacífica deste Tribunal Constitucional a de que o requisito próprio dessa espécie de recurso, consistente em a questão de inconstitucionalidade dever ter sido suscitada
«durante o processo», deve ser entendido não num sentido puramente formal - tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância - mas num sentido funcional, tal que essa invocação deverá ser feita em momento em que o Tribunal a quo ainda possa conhecer da questão.
Este entendimento decorre do facto de se estar perante um recurso para o Tribunal Constitucional, o que pressupõe, obviamente, uma anterior decisão do tribunal recorrido que é objecto do recurso, e, uma vez que o poder jurisdicional se esgota, em princípio, com a prolação da sentença e dado que a eventual aplicação de norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial nem a torna obscura ou ambígua, há-de, ainda, entender-se que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a reclamação da sua nulidade não são já, em princípio, meios idóneos e atempados para suscitar a questão da constitucionalidade.
Só não será aplicável esta doutrina quando o poder jurisdicional, em virtude de norma especial, não se haja esgotado na sentença ou em hipóteses excepcionais e certamente anómalas em que o interessado não haja disposto de oportunidade processual para levantar a questão de inconstitucionalidade antes de proferida a decisão.
A estas situações devem ainda [ser] equiparadas aquelas em que o recorrente foi confrontado, na decisão, com a utilização de uma norma de todo em todo insólita e impensável, sobre a qual seria certamente desrazoável exigir-se-lhe um juízo de prognose relativo à sua aplicação, ao menos com o sentido e alcance acolhido na decisão recorrida' (a fls. 694-695)
Face a esta orientação jurisprudencial uniforme, interroga-se o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto sobre se ainda teria sido suscitada durante o processo a questão da inconstitucionalidade do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929, uma vez que o recorrente só colocou tal questão de inconstitucionalidade no requerimento de arguição de nulidade (de fls. 645-647) do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Outubro de 1991
(de fls. 641). A uma primeira análise, teria de concluir-se que a questão de inconstitucionalidade não fora suscitada durante o processo, mas extemporaneamente, em tramitação subsequente à decisão final do tribunal recorrido. Só que, após uma análise mais atenta, a esta dúvida responde o recorrido do seguinte modo:
'Porém, afigura-se-nos que, no caso, é aplicável a última ressalva assinalada, pois o recorrente foi surpreendido com a utilização, pelo Supremo Tribunal de Justiça, de modo insólito e imprevisível, de uma interpretação normativa, não só ao arrepio da sua própria jurisprudência, como até em flagrante violação da lei expressa (...)'. (a fls. 696)
Entende-se, de facto, que a questão de constitucionalidade foi suscitada atempadamente pelo recorrente, porquanto ele foi confrontado com uma interpretação normativa do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929, com a qual não podia razoavelmente contar.
Na verdade, o recorrente contava, no recurso do acórdão do tribunal colectivo de primeira instância, com o disposto no primeiro inciso do art. 518º do mesmo diploma, o qual estabelece, de forma clara, que da
'decisão do júri sobre matéria de facto cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas com base em qualquer dos fundamentos a que se referem os nºs 1º e 2º do artigo 712º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações'
(redacção do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro). Tendo interposto recurso da matéria de facto, por não se conformar com a decisão do júri sobre a mesma (requerimento de fls. 553), não lhe era exigível que antecipadamente prognosticasse que o Supremo Tribunal de Justiça poderia entender que não tinha o poder de apreciar a decisão do júri sobre matéria de facto, por tal lhe estar vedado por força do art. 666º do Código de 1929 e, em função de tal prognóstico, que suscitasse ex ante a questão de constitucionalidade.
Como se afirma nas alegações da entidade recorrida, não se conhece jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que entenda que está vedado a este órgão conhecer dos recursos interpostos da deliberação do júri em matéria de facto, pelo que uma interpretação do art. 666º que conduzisse a tal solução sempre haveria de reputar-se de insólita e imprevisível. Por isso, tem de entender-se que não impendia sobre o recorrente o ónus de suscitar nas suas alegações, antes de proferida a decisão do recurso pelo Supremo Tribunal de Justiça, a questão da inconstitucionalidade de uma tal interpretação do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929, face ao teor do art. 518º do mesmo diploma (sobre esta matéria, vejam-se, por todos, os Acórdãos nºs. 90/85,
391/89, 61/92 e 188/93, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 5º, págs. 663 e segs., os dois subsequentes no Diário da República, II Série, nºs 212, de 14 de Setembro de 1989 e nº 189, de 18 de Agosto de 1992, respectivamente, e o último ainda inédito).
Pode, assim, passar-se ao conhecimento do objecto do recurso.
III
7. - A instituição do júri de julgamento tem origens remotas, sendo conhecida na França medieval e tendo sido introduzida em Inglaterra pelos Normandos, muito embora a tradição saxónica conhecesse a intervenção de leigos na justiça. Na história constitucional inglesa, a utilização do júri na fase de acusação (grand jury) e na fase de julgamento criminal (petty ou trial jury) constituiu desde tempos remotos uma importante garantia dos direitos do acusado. O artigo III da Constituição norte-americana e os quinto e sexto Aditamentos à mesma Constituição aprovados em 1791 consagraram a existência de júris de acusação e de julgamento como garantia dos cidadãos
(cfr. Paul D. Carringtom, voc. Trial By Jury, in L. Levy, K. Karst e D. Madroney, Encyclopedia of the American Constitution, vol. 4º, Now York e Londres
1986, págs 1913-1920). Em 1791, a França instituiu igualmente os júris de acusação e de julgamento (Lei de 16-21 de Setembro de 1791), tendo o Código de Instrução Criminal de Napoleão suprimido o primeiro daqueles júris.
Entre nós e após a revolução de 1820, o júri de julgamento veio a ser previsto na Constituição de 1822 (arts. 177º e 178º) e nas constituições subsequentes, e consagrado como garantia individual nas leis de processo criminal, tendo começado a ser objecto de restrições à sua competência no final do século XIX, nomeadamente através da instituição do processo correccional (cfr. Marnoco e Sousa, Direito Político-Poderes do Estado, Coimbra,
1910, págs 778-781; José António Barreiros, Processo Penal, Coimbra, 1981, pág.
258). O júri para ratificação da pronúncia foi estabelecido pela Novíssima Reforma Judiciária (1841), mas em breve caiu em desuso.
A Constituição de 1911 estabeleceu no seu art. 58º a manutenção da instituição do júri, estabelecendo o artigo subsequente que a intervenção deste seria 'facultativa às partes em matéria civil e comercial, e obrigatória em matéria criminal quando ao crime caiba pena mais grave do que a prisão correccional e quando os delitos forem de origem ou de carácter político.' (sobre a história destes preceitos na Constituinte, veja-se Marnoco e Sousa, Constituição Política da República Portuguesa - Comentário, Coimbra,
1913, págs. 580-581).
8. No quadro da Constituição de 1911, ainda em vigor nessa parte, o Código de Processo Penal de 1929 consagrou o júri de julgamento para certo tipo de crimes, apesar de a instituição do júri ter sido abolida em
1927 pela Ditadura Militar. Nos termos do art. 39º desse diploma, os jurados decidiam definitivamente, em matéria de facto, 'nos crimes políticos não sujeitos a tribunais especiais e nos demais casos previstos ne lei'. Luis Osório explicava que o advérbio 'definitivamente' devia ser entendido cum grano salis,
'pois que não só o juiz podia dar o júri por iníquo, art. 514º, mas a Relação podia conhecer de facto e de direito no segundo julgamento'. (Comentário ao Código de Processo Penal Português, 1º vol., Coimbra, 1932, pág. 400). A regra geral constante do art. 525º do diploma era a de que da sentença condenatória ou absolutória cabia apenas recurso restrito à matéria de direito para a Relação e desta para o Supremo, visto que, salvo contadas excepções, a decisão do júri sobre matéria de facto era irrevogável e, além disso, não admitia recurso algum
(art. 518º). A solução de não admitir recurso da decisão do júri sobre matéria de facto entroncava na tradição do processo penal do período liberal (art. 296º,
§ 2º, da Reforma Judiciária de 1837 e art. 1162º, § 2º, da Novíssima Reforma Judiciária). Segundo Luís Osório, esta solução de irrevogabilidade e de irrecorribilidade das decisões do júri sobre a matéria de facto seria inerente à própria instituição do júri (Comentário, cit., 1º vol., pág. 454). Prevendo-se recurso para a Relação das sentenças proferidas pelos tribunais criminais com intervenção do júri no julgamento da matéria de facto, compreendia-se plenamente o teor do art. 666º deste Código, preceito que estabelecia, na sua parte final, que o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhecia de matéria de direito, como tribunal de revista.
O Decreto com força de lei nº 20.147, de 1 de Agosto de 1931, alterou a redacção do art. 665º do Código de 1929, admitindo um controlo limitado da matéria de facto quanto às decisões finais dos tribunais colectivos e às proferidas em processos com intervenção do júri, pelos tribunais da Relação, 'baseando-se para isso (...) nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos'. Luís Osório criticava a alteração de 1931, no que toca aos julgamentos com intervenção de júri ou de tribunal colectivo, afirmando que, se não havia confiança nos tribunais colectivos, deveriam os mesmos ser modificados ou suspensos e que, se se quisesse manter o recurso sobre matéria de facto, deveriam escrever-se os depoimentos e deveria acabar-se com a oralidade ou, pelo menos, exigir-se a reprodução oral da prova no segundo julgamento (Comentário, 6º vol., Coimbra,
1934, pág. 375).
A instituição do júri veio a cair em completo desuso a partir da entrada em vigor do Estatuto Judiciário de 1944.
9. Após a Revolução de 1974, o Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro, restabeleceu o júri para o julgamento dos crimes mais graves, considerando que tal medida se inseria na exigência de dignificação do processo penal em todas as suas fases consagrada no Programa das Forças Armadas, sendo um
'postulado da ordem democrática instaurada pelo Movimento das Forças Armadas'. O art. 518º do Código de Processo Penal, na redacção dada por aquele diploma, estabeleceu que 'da decisão do júri sobre matéria de facto cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas com base em qualquer dos fundamentos a que se referem os nºs. 1º e 2º do artigo 712º do Código de Processo Civil, com as necessárias adaptações' (1º inciso). Passou, pois, a prever-se um recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça sobre a decisão da matéria de facto, ao mesmo tempo que o art. 525º, na sua nova redacção, admitiu um outro recurso, restrito à matéria de direito, do acórdão do tribunal colectivo condenatório ou absolutório, também a interpor para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo este recurso interposto, processado e julgado conjuntamente com o recurso interposto nos termos do art. 518º. O art. 666º manteve em 1975 a redacção originária. O art. 520º, por seu turno, estabelecia que o tribunal colectivo proferiria acórdão de harmonia com a decisão do júri e a lei aplicável, 'sendo a pena fixada pelo júri, que, para o efeito, deverá reunir'. O júri deixou, porém, de fixar a pena a partir da entrada em vigor da primeira Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (art. 53º, nº 2, da Lei nº 82/77, de 6 Dezembro).
A Constituição de 1976 consagrou no art. 216º a existência do júri, 'composto pelos juízes do tribunal colectivo e por jurados', estabelecendo, no seu nº 2, que intervinha 'no julgamento dos crimes graves', funcionando 'quando a acusação ou a defesa o requeiram.' (A intervenção de jurados em processo penal obteve consagração constitucional em Espanha - art.
125º da Constituição de 1978, - muito embora exista grande resistência à sua consagração na legislação ordinária).
10. Como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, na vigência da redacção dos arts 518º e 525º do Código de Processo Penal de 1929 introduzida pelo Decreto-Lei nº 605/75, considerou-se derrogado o art. 666º do mesmo diploma 'na parte em que estabelecia a regra de que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de recurso, apenas conhecia de matéria de direito, e que, por outro lado, nunca esta derrogação foi questionada pela jurisprudência daquele Tribunal, que apenas divergiu quanto a saber se, para se conhecer da matéria de facto, era, ou não, necessário ter sido interposto especificamente recurso da deliberação do júri' (a fls. 702). Nota o mesmo Magistrado que, no caso concreto, não se coloca esta última questão, visto que 'pelo requerimento de fls. 533 foi especificamente interposto recurso da decisão do júri sobre a matéria de facto, e nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 569 a 585), formulam-se específicas conclusões sobre a matéria de facto (conclusões 1ª a 4ª, a fls. 582 e 583), contrariamente ao que se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Março de 1992'
(ibidem).
Importa, por isso, ver se o art. 666º, parte final do Código de Processo Penal de 1929, com a interpretação acolhida nos acórdãos sub judicio e enquanto aplicado ao recurso da matéria de facto julgada pelo júri, padece de inconstitucionalidade, por violação do art. 32º, nº 1, da Constituição. Na verdade, a interpretação dada ao art. 666º do indicado diploma nos acórdãos em apreciação leva a que exista uma só instância quanto à matéria de facto.
Recorda-se que não entra no objecto de processo a norma do art. 518º, primeiro inciso, do mesmo diploma, visto tal norma não ter sido aplicada pelo acórdão de fls. 615 a 617 vº, como atrás se viu. Nessa medida, não poderão ser apreciados os argumentos do recorrente que se referem à eventual inconstitucionalidade de tal norma.
14. O recorrente sustenta que a doutrina acolhida no Acórdão nº 401/91 do Tribunal Constitucional, - através do qual foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do art. 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934 - se há-de aplicar no caso sub judicio à interpretação do art. 666º acolhida pelo tribunal recorrido.
Entende-se que assiste razão ao recorrente.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem reconhecido de forma uniforme que o direito fundamental de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, previsto no nº 1 do art. 20º da Constituição, abrange a garantia do duplo grau de jurisdição quanto às decisões penais condenatórias e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais. Como se escreveu no acórdão nº 31/87, 'a salvaguarda desse direito de defesa [do arguido] impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória, como se determina, aliás, de forma expressa no nº 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho:
«Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei»; como imporá, também, que a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Mas já não impõe que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz' (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9º, págs. 467 e 468; veja-se ainda o acórdão nº
178/88, onde se referem outras decisões anteriores do mesmo Tribunal em tal matéria, in Acórdãos, vol. 12º, págs 569 e seguintes).
Mais recentemente, o Tribunal Constitucional fixou o entendimento de que a garantia do duplo grau de jurisdição abrange não só a decisão penal sobre a matéria de direito, como ainda a decisão penal sobre a matéria de facto (acórdãos nºs 219/89, 340/90 e 401/91, in Diário da República, II Série, nº 148, de 30 de Junho de 1989, nº 65, de 19 de Março de 1991, e I Série, nº 6, de 8 de Janeiro de 1992). Pode ler-se neste último acórdão, que compendia a jurisprudência do Tribunal Constitucional na matéria e estabelece o
âmbito do próprio recurso em matéria de facto:
'Pelo que, como pertinentemente sublinha o Acórdão nº 219/89, «no plano garantístico, e no rigor dos princípios, tão importante é reconhecer-se ao arguido o direito de recorrer da solução que tenha sido encontrada para a questão de facto como da solução que haja sido dada à questão de direito». Assim sendo, forçoso é concluir que, num sistema complexo como o que consta do Código de Processo Penal de 1929, em que a prova produzida perante o tribunal colectivo não é reduzida a escrito (por força do artigo 466º) e em que as respostas aos quesitos não são fundamentadas (em virtude do disposto no artigo 469º), então o artigo 665º, entendido com o alcance do assento em causa [assento do S.T.J. de
29 de Junho de 1934], ou seja, o de que as relações só podem «alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1ª instância em face dos elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos», não representa uma garantia suficiente para o arguido e consequentemente viola o disposto no nº 1 do artigo
32º da Constituição.
A que acresce que, tal como sublinhava o Acórdão nº
219/89 (argumento, aliás, também retomado pelo Acórdão nº 340/90), «só excepcionalmente e em casos contados constarão dos processos elementos susceptíveis de levar as relações a alterar a decisão do colectivo, e, por outro lado, a faculdade de anulação dessa decisão, com base em vícios dos quesitos ou das respostas - ao abrigo do nº 2 do artigo 712º do Código de Processo Civil - em bem pouco alargará, no domínio fáctico, o poder cognitivo das Relações».
Por último, é de esclarecer que, tal como foi afirmado no Acórdão nº 340/90, o que fica dito não poderá ser entendido como significando que outra solução que não seja a repetição de prova em audiência pública perante as relações está em conflito com a Constituição. É que, entre o sistema em questão, que, na prática, e na grande maioria das situações, reduz a zero os poderes das relações nos recursos penais em matéria de facto, e o que ordenasse a repetição da prova em audiência pública perante o tribunal de recurso, outros há certamente - não competindo a este Tribunal indicá-los - que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional».
Considera-se que a doutrina transcrita se aplica nos seus precisos termos ao recurso em matéria de facto interposto das deliberações do júri.
Não se ignora que a tradição inglesa, acolhida pelos Estados Unidos da América e, mais tarde, pela França, apontava para a
'soberania' do júri, em matéria de facto, isto é, para a insusceptibilidade de recurso das suas deliberações. Todavia, mesmo nos Estados Unidos da América, tal soberania tendencial do júri só foi constitucionalmente consagrada em matéria cível (confrontem-se os sexto e sétimo Aditamentos, ambos de 1791), aí se estabelecendo que os factos fixados pelo júri não serão reexaminados por qualquer outro tribunal senão de harmonia com as regras da common law. Na verdade, sendo o recurso da sentença condenatória uma 'peça dominante do quadro dialéctico em que se desenvolve o processo penal', por ser ela que 'permite ao arguido superar a antítese entre o interesse público à condenação e o seu próprio interesse de defesa e obter a reforma de sentença injusta, de sentença inquinada de vício substancial ou de erro de julgamento' (formulações do Acórdão nº 8/87, in Acórdãos cit, vol. 9º, págs 235-236), não há razões que militem no sentido de o recurso em matéria de facto só ser admissível das decisões do tribunal colectivo e não já das do júri. Acresce a isto que o legislador de 1975 procurou afastar as críticas que normalmente se fazem à instituição do júri, impondo a composição, 'tal como sucede em França, por juízes togados e jurados populares' (do preâmbulo do Decreto-Lei nº 605/75, de 3 de Novembro) e consagrando expressamente no art. 518º do Código, na redacção então introduzida, o direito de recurso em matéria de facto, ao lado do recurso em matéria de direito (art. 525º - sobre esta dicotomia, veja-se o acórdão nº 44/91 deste Tribunal, in Diário da República, II Série, nº 146, de 28 de Junho de 1991).
15. Assim sendo, há-de concluir-se que o art. 666º do Código de Processo Penal, interpretado tal como o foi pelo acórdão recorrido, isto é, como não excluindo de restrição da parte final do preceito as deliberações sobre matéria de facto tomadas pelo júri e objecto de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, é inconstitucional, por violação do art. 32º, nº
1, da Lei Fundamental.
IV
16. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional conceder provimento ao recurso, julgando inconstitucional a norma da parte final do art. 666º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação acolhida pela decisão recorrida no sentido de que a mesma veda o recurso sobre matéria de facto interposto do julgamento do júri para o Supremo Tribunal de Justiça, e, consequentemente, determina a reforma da mesma decisão em conformidade com o julgamento sobre matéria de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida (com a declaração de que não fica prejudicada a posição assumida quanto ao artº 665º do Cód. Proc. Penal de 1929)
José Manuel Cardoso da Costa
(sem prejuízo da posição que assumi a respeito do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, pois que, na hipótese sub judice, o que está em causa è uma norma que excluiria, pura e simplesmente, toda e qualquer possibilidade de recurso das deliberações do júri em matéria de facto)