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Processo n.º 382/10
Plenário
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
(Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira)
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Ministério Público, notificado do acórdão n.º 285/2011 (1.ª Secção), proferido neste processo, no qual se não julgou inconstitucional a norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que manda aplicar aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, interpôs recurso para o Plenário do Tribunal ao abrigo do artigo 79.º-D da LTC (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro).
Para tanto, invoca a oposição com o decidido no acórdão n.º 164/2011 (3.ª Secção), que julgou ‘inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, a norma constante do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código’.
2. Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou a sua alegação, concluindo pela inconstitucionalidade da norma ‘por não acautelar o conteúdo essencial do direito ao desenvolvimento da personalidade, violando o direito, anteriormente existente, ao reconhecimento da (sua) paternidade’.
3. O interessado, A., também alegou, concluindo nos seguintes termos:
«…
A aplicação da lei nova lesa redondamente o princípio da certeza do direito e da segurança jurídica, ao aplicar-se a processos pendentes sobre o estado das pessoas, como é o da investigação oficiosa da paternidade que o presente recurso trata.
Viola ostensivamente o disposto nos artigos 2.º, 18.º, 2 e 3, 26.º, n.º 1 e 36.º, n.º 1 da CRP, revelando-se materialmente inconstitucional.
Devendo em consequência, declarar-se a inconstitucionalidade do art. 3.º da Lei n.º 14/2009, de 01 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código.
…».
4. Cumpre decidir em conformidade com a orientação que, após apreciação, se fixou em Plenário.
II. Fundamentação
5. O presente recurso para o Plenário, ao abrigo do disposto no artigo 79.º-D da LTC, é admissível porquanto se mostram verificados os pressupostos exigidos pelo referido preceito legal, dado que os acórdãos em causa decidiram em sentido oposto a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que mandava aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil.
Efetivamente, o acórdão recorrido – Acórdão n.º 285/2011 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) – chamado a pronunciar-se sobre a recusa de aplicação da norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, não julgou a referida norma inconstitucional; assim, tal acórdão decidiu em sentido divergente do Acórdão n.º 164/2011 (também disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que havia julgado essa mesma norma inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, que proíbe a rectroactividade de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
É este, portanto, o conflito jurisprudencial que se impõe dirimir.
6. A Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, procedeu à alteração dos artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil, introduzindo um novo regime de prazos aplicável às ações de investigação de maternidade e paternidade (cfr. artigo 1873.º do Código Civil, quanto a esta última) e, bem assim, à ação de impugnação de paternidade.
Esse novo regime legal de prazos é aplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, de acordo com o disposto no artigo 3.º desse diploma legal, cujo teor é o seguinte:
Artigo 3.º
Disposição Transitória
A presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
É esta disposição cuja conformidade constitucional se mostra colocada em crise.
7. Como resulta do Acórdão n.º 285/2011, ter-se-á que, no caso que lhe deu origem, se discutia a aplicação da nova redação, introduzida pela Lei n.º 14/2009, do artigo 1817.º do Código Civil a uma ação de investigação de paternidade que se encontrava pendente à data de entrada em vigor dessa lei. A decisão recorrida, subjacente àquele acórdão, considerou que o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 era inconstitucional na medida em que determinava a aplicação dos novos prazos previstos no artigo 1817.º do Código Civil a um processo pendente, processo este que havia iniciado posteriormente ao Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional, publicado em 08 de fevereiro de 2006 (Diário da República, I.ª Série-A, n.º 28), no qual se declarou a «… inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. …». Nessa decisão recorrida, invocou-se, como fundamento, a violação do princípio da confiança, previsto no artigo 2.º da Constituição, porquanto se tratava de norma retroativa e violadora das legítimas expectativas dos cidadãos, criadas face ao entendimento que passou a ser seguido pelos tribunais superiores de que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral emitida pelo citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 tinha implicado a supressão de todos os prazos das ações de investigação de maternidade e de paternidade.
Em pronúncia sobre tal caso e tendo em atenção a decisão recorrida, decidiu-se, no Acórdão n.º 285/2011, ora, recorrido, que a norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 não era inconstitucional na referida dimensão.
8. De igual forma, no caso que deu origem ao Acórdão n.º 164/2011 do Tribunal Constitucional, discutia-se a aplicação da nova redação dada pela Lei n.º 14/2009 ao artigo 1817.º do Código Civil a uma ação de investigação de paternidade que se encontrava pendente à data de entrada em vigor desta lei. Efetivamente, a decisão recorrida, subjacente à prolação do citado acórdão do Tribunal Constitucional, havia recusado a aplicação, por inconstitucionalidade material, do artigo 3.º da Lei nº 14/2009 de 1 de abril, “enquanto norma de direito transitório que manda aplicar, no que respeita ao prazo de propositura de uma ação de investigação de paternidade, retroactivamente, a redação introduzida por essa Lei no artigo 1817.º do Código Civil (aplicável por força do disposto no artigo 1873.º do CC) a uma ação que (como esta) foi proposta subsequentemente à publicação (em 08/02/2006) do Acórdão nº 23/2006 do Tribunal Constitucional, e que se encontrava pendente à data da entrada em vigor (em 02/04/2009) dessa Lei nº 14/2009”, tendo por fundamento a violação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, previsto no artigo 2º da CRP.
No mencionado Acórdão n.º 164/2011 julgou-se inconstitucional, por violação do n.º 3 do artigo 18.º da Constituição, a norma constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código.
9. O presente conflito jurisprudencial haverá de ser dirimido tendo em atenção, necessariamente, a fundamentação que foi vertida em ambos os arestos supracitados, desde logo, por neles se encontrarem vertidos os principais argumentos que justificam a opção por uma ou outra das decisões que em cada um deles veio a ser adotada, que, como já se deixou afirmado, se apresentam de sentido contrário, sendo que constituem as soluções de mérito possíveis.
No caso presente, entende-se que deve ser seguido o entendimento perfilhado pelo Tribunal e que se mostra plasmado no Acórdão n.º 164/2011, razão pela qual se seguirá, naturalmente, a jurisprudência nele vertida.
10. No mencionado Acórdão nº 164/2011, em justificação da decisão nele proferida, foi desenvolvida a seguinte argumentação:
(…)
6. Sucede, porém, e é este um dos pontos fundantes do juízo de inconstitucionalidade proferido pelo tribunal a quo, que em janeiro de 2006 decidiu o Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 23/2006, declarar com força obrigatória geral a inconstitucionalidade “da norma constante no nº 1 do artigo 1871.º do CC, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, nº 1, 36.º, nº 1, e 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa.”
Efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma norma é, como prescreve o nº 1 do artigo 282.º da CRP, a repristinação da norma ou das normas que aquela outra declarada inconstitucional entretanto tenha revogado.
Assim, e como ao instituir o prazo de dois anos para a interposição da ação de investigação da paternidade (contados a partir da maioridade ou emancipação do investigante), o legislador do Código, em 1966, revogara as normas constantes do Decreto nº 2 de 1910 (que estabelecia, em comparação com o modelo do Código, um regime “liberalizante”, que não cabe agora descrever, quanto ao tempo de exercício do poder de investigar), seria em princípio esse o Direito vigente sobre a questão, a aplicar pelos tribunais comuns após a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil.
No entanto, e perante dúvidas que se colocaram a esses mesmos tribunais quanto à própria conformidade desse Direito pretérito face à ordem constitucional vigente, estabeleceu-se orientação jurisprudencial no sentido de se não dar como repristinado o regime de 1910. Perante a inexistência de um prazo que fosse legalmente fixado de caducidade das ações de investigação da paternidade, entendeu-se igualmente (se bem que de forma não inteiramente unânime) que seria de aceitar o princípio da imprescritibilidade de tais ações, que assim se tornariam, portanto, cognoscíveis a qualquer tempo.
É a este entendimento jurisprudencial que vem pôr cobro a Lei nº 14/2009, de 1 de abril, ao estabelecer, na nova redação que confere ao nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, que as ações de investigação da paternidade só podem ser interpostas durante os dez anos subsequentes à maioridade ou emancipação do investigante.
7. Como já se sabe, não é a fixação legal deste novo prazo de caducidade [das ações de investigação da paternidade] que está em juízo no presente recurso. O que se pede que o Tribunal aprecie é outra questão, relativa à norma de direito transitório inscrita no artigo 3º da Lei de 2009, que manda aplicar o regime dela constante aos processos pendentes no momento da sua entrada em vigor.
Entende a decisão recorrida que tal norma lesa o princípio da proteção da confiança, decorrente do artigo 2º da CRP, por “projetar retroactivamente, nos processos pendentes à data da (…) entrada em vigor [da lei] (02/04/2009) as alterações (fixação) dos prazos de caducidade das ações de investigação da paternidade, quando essas ações tenham sido intentadas anteriormente à Lei nº 14/2009 e posteriormente à publicação do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006 (08/02/2006) e conduzam, em sede de aplicação do referido diploma, à constatação do esgotamento (no “passado”) desse prazo e à consequente inviabilização do prosseguimento dessas ações pendentes à data da entrada em vigor desse mesmo Diploma.” É que, acrescenta-se, tal projeção retroativa “frustra intoleravelmente a confiança depositada pelo proponente da ação – confiança precisamente o levou a propor essa ação – num entendimento perfeitamente consolidado e indiscutível, segundo o qual a propositura dessa ação não estaria sujeita a qualquer prazo.”
Vejamos, pois.
8. Em geral, tem o Tribunal entendido que as normas de direito ordinário que estabelecem prazos para a interposição de ações em tribunal não infringem qualquer norma ou princípio constitucional, na medida em que apenas revelam escolhas legítimas do legislador quanto aos vários modos pelos quais podem ser prosseguidos os diferentes valores constitucionais inscritos, em última análise, no artigo 20.º da CRP.
Foi o que sucedeu, por exemplo, no caso do Acórdão nº 247/2002, em que estava em juízo a norma do Código de Processo Penal que estabelecia, perentoriamente, o prazo de um ano [contado a partir do momento em que o detido ou preso fora libertado ou a partir do momento em que fora definitivamente decidido o processo penal respetivo] para a apresentação de pedidos de indemnização contra o Estado, por privação da liberdade ilegal ou injustificada. Entendeu o Tribunal que não era inconstitucional a norma em juízo, por se inscrever no âmbito da livre conformação do legislador ordinário quanto aos termos por que se deve ordenar o processo devido em Direito.
O mesmo sucedeu (ainda por exemplo) no caso do Acórdão nº310/2005, em que estava em juízo norma do Código de Processo Civil que impunha um prazo de cinco anos, contados desde o trânsito em julgado da decisão, para interposição de recurso de revisão. Também neste caso se emitiu juízo de não inconstitucionalidade, por se entender que a conformação legislativa de prazos [ aqui, para a interposição de recurso], não afetando por si mesma, e de forma negativa, qualquer posição jurídica subjetiva constitucionalmente tutelada, e sendo antes concretização do princípio de segurança que justifica a proteção constitucional do caso julgado, se inscrevia ainda na liberdade que o legislador detém para ordenar de forma côngrua o decurso de processos perante os tribunais.
Em matéria de fixação legal de prazos para a interposição de ações de investigação da paternidade tem sido porém diversa a posição do Tribunal.
Na verdade, desde o Acórdão nº 99/88 se diz que a subordinação da ação de investigação da paternidade a prazos de propositura apresenta contornos tais que nela não podem deixar de estar coenvolvidos vários outros princípios constitucionais, para além dos geralmente constantes do artigo 20.º da CRP ou da tutela da segurança jurídica. É o que decorre do seguinte passo da fundamentação, sempre recordado pela jurisprudência ulterior sobre o tema: “ Não se afigura questionável que, seja do direito à integridade pessoal, e em particular à integridade «moral» (artigo 25.º, nº 1), seja do direito à «identidade pessoal», pode e deve extrair-se um verdadeiro direito fundamental ao conhecimento e ao reconhecimento da paternidade. De facto, a «paternidade» representa uma «referência» essencial da pessoa (de cada pessoa), enquanto suporte extrínseco da sua mesma «individualidade» (quer ao nível biológico, e aí absolutamente infungível, quer ao nível social) e elemento ou condição determinante da própria capacidade de autoidentificação de cada um como «indivíduo» (da própria consciência que cada um tem de si); e, sendo assim, não se vê como possa deixar de pensar-se o direito a conhecer e a ver reconhecido o pai (…) como uma das dimensões dos direitos constitucionais referidos, em especial do direito à identidade pessoal, ou uma das faculdades que nele vai implicada.”
Assim, e por se entender que a circunstância de a lei prever um prazo de caducidade para a ação de investigação poderia ter, em si mesma, consequências negativas quanto ao exercício deste direito “de conhecer e pertencer ao pai cujo é” (Acórdão nº 99/88), toda a jurisprudência ulterior do tribunal que sobre o tema incidiu adotou uma estrutura argumentativa baseada no método da ponderação. Colocado, nomeadamente, perante a redação dada pelo legislador de 1966 ao nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, o Tribunal procedeu a juízos de ponderação: por um lado, pesaram-se os efeitos que os prazos de caducidade das ações de investigação da paternidade produziriam em posições jurídicas subjetivas, constitucionalmente tuteladas (como as decorrentes dos artigos 25º, 26.º e 36.º da CRP); por outro lado, pesaram-se as razões objetivas, nomeadamente as de segurança, que justificariam a previsão de tais prazos, bem como outros direitos (como, por exemplo, os da reserva de intimidade do pretenso pai), que também forneceriam justificações no mesmo sentido.
O resultado da ponderação nem sempre foi o mesmo. Com efeito – e como bem lembra a decisão recorrida – enquanto nos Acórdãos nºs 99/88 e 413/89, por exemplo, o Tribunal entendeu que havia razões justificativas da proprositura dos concretos prazos que aí estavam em juízo, já noutras decisões (v.g. 486/2004 e 11/2005) se decidiu que o prazo de dois anos [a contar da data de maioridade ou emancipação do investigante] se afigurava desproporcionadamente estreito, face aos “outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” que, na matéria, deveriam ser salvaguardados pelo legislador.
É, pois, neste contexto que veio a ser proferido o Acórdão nº 23/2006, atrás referido, em que o Tribunal decide declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, na medida em que previa, para a caducidade do direito a investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante.
A decisão fundou-se na violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, nº 1, 36.º, nº 1, e 18, nº 2, da Constituição.
9. Como já se sabe, não está em juízo, no presente caso, o específico prazo de dez anos [após a maioridade ou emancipação do investigante] que o legislador, através da nova redação dada pela Lei nº 14/2009, de 1 de abril, ao nº 1 do artigo 1817.º do Código Civil, veio perentoriamente instituir para a propositura de ações de investigação da maternidade – e, assim, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, também para as ações de investigação da paternidade –, em “resposta” à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral proferida pelo Tribunal no Acórdão nº 23/2006, quanto ao anterior prazo de dois anos.
Agora, a questão que se coloca é outra.
Posto que é objeto do recurso o disposto na norma transitória constante do artigo 3.º da lei de 2009 (que, recorde-se, manda aplicar o regime nela fixado aos processos pendentes no momento da sua entrada em vigor), cabe ao Tribunal decidir se é ou não constitucionalmente proibida a atribuição de efeitos retroativos ao novo regime, legalmente fixado, de caducidade das ações de investigação da paternidade.
10. A Constituição não impõe que o legislador ordinário fixe apenas para o futuro os efeitos das suas decisões. Situações há, aliás, em que a atribuição, por lei, da eficácia retroativa aos novos regimes que nela se prevejam corresponderá à melhor forma de prosseguir interesses públicos e de tutelar posições jurídicas subjetivas.
No entanto, e como bem se sabe, este princípio conhece limites. Um deles é o que decorre da ideia de Estado de direito, constante do artigo 2.º da CRP, e da proteção, aí ínsita, da legítima confiança que os cidadãos depositam na continuidade da ordem jurídica. Outro é o que decorre das proibições expressas, e pontuais, de retroatividade das leis, que a CRP não deixa de prever nos artigos 29.º, nº 1, 103.º, nº 3 e 18.º, nº 3.
É certo que um e outro (o limite, não escrito, decorrente da proteção da confiança, e o limite, escrito, decorrente da expressa proibição de retroatividade) se não relacionam entre si através de uma lógica de oposições. Se a CRP proibiu expressamente, em certas circunstâncias, a existência de leis retroativas, fê-lo porque considerou que, nelas, os valores de segurança inscritos no princípio do Estado de direito (e que induzem à proteção da confiança das pessoas quanto à razoável previsibilidade das mudanças operadas pelo legislador) devem sempre prevalecer sobre quaisquer outros direitos ou interesses que sejam constitucionalmente protegidos. Assim, perante uma proibição constitucional expressa da retroatividade das leis, torna-se inútil a averiguação do preenchimento do “teste” da proteção da confiança, teste esse que, para todos os efeitos, já foi efetuado e decidido pelo próprio legislador constituinte.
Independentemente da questão de saber como é que, em abstrato, se deve definir a restrição legislativa de direitos fundamentais, e como é que, em tese, se deve distinguir entre legislação restritiva e legislação (meramente) conformadora, certo é que, pelas razões atrás expostas, os prazos, legalmente fixados, da caducidade das ações de investigação da paternidade podem, em si mesmos, vir a afetar negativamente, e de forma intensa, posições jurídicas subjetivas constitucionalmente tuteladas.
A circunstância de a lei prever um certo prazo para a caducidade da ação de investigação pode ter como consequência a impossibilidade, para o investigante, de vir a constituir o vínculo de paternidade ao qual aspira. Assim sendo, não restam dúvidas que a fixação, em si mesma, desse prazo se traduzirá sempre em uma certa afetação negativa de posições jurídicas subjetivas que a CRP, em vários lugares (nomeadamente, nos artigos 26.º ou 36.º), protege.
Tal não significa que essa afetação negativa seja constitucionalmente censurável. Pode muito bem não o ser. Visto que cabe ao legislador encontrar soluções através das quais se harmonizem diferentes, e por vezes conflituantes, direitos e interesses constitucionalmente protegidos, cabe-lhe também decidir se, e em que circunstâncias, se justifica a diminuição do alcance ou da proteção de um desses direitos ou interesses, em ordem à promoção equilibrada ou proporcionada de aqueles outros que com os primeiros conflituem. São, por isso, coisas diferentes, a “simples” afetação negativa de direitos fundamentais e a afetação inconstitucional de direitos fundamentais.
No entanto, a afetação negativa de direitos, para se furtar à censura constitucional, tem que cumprir outros requisitos para além do da proporcionalidade. Nomeadamente, o que consta do nº 3 do artigo 18º, nos termos do qual as leis que afetem negativamente posições jurídicas subjetivas que tenham a natureza de direitos, liberdades e garantias não podem fazer retroagir, para o passado, os seus efeitos.
Ao dispor que a “presente lei se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor”, está o artigo 3º da Lei nº 14/2009 a determinar que o regime novo nela fixado quanto a prazos de caducidade de ações de investigação de paternidade valha também para eventos pretéritos.
Tanto basta para que se conclua pela sua inconstitucionalidade.
(…)
11. Efetivamente, tendo por base a argumentação desenvolvida em tal aresto e supracitada, a que se não vê necessidade de acrescentar qualquer novo argumento, haver-se-á de concluir pela resolução do conflito no sentido da não constitucionalidade da norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, e, consequentemente, pela procedência do recurso do acórdão recorrido.
De igual forma, haver-se-á de concluir pela improcedência do recurso inicial e que determinou a prolação do acórdão recorrido, mantendo-se a decisão recorrida que veio a ser proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra quanto ao juízo de constitucionalidade.
III – Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:
– Julgar inconstitucional a norma constante do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º nº 1, do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código;
– Conceder provimento ao recurso, revogando-se o acórdão recorrido, e, consequentemente, mantendo-se a decisão do Tribunal da Relação quanto ao juízo de inconstitucionalidade.
Lisboa, 17 de janeiro de 2012. – J. Cunha Barbosa – Vítor Gomes – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Catarina Sarmento e Castro (com declaração) – Carlos Pamplona de Oliveira – vencido conforme declaração em anexo. – Ana Maria Guerra Martins. Vencida, no essencial, pelas razões constantes da minha declaração de voto no acórdão n.º 164/2011, completado pela declaração em anexo a este processo do Exmo. Senhor Conselheiro Pamplona de Oliveira. – Carlos Fernandes Cadilha (vencido pelas razões constantes do acórdão n.º 285/11 e o voto de vencido aposto no acórdão n.º 164/11) – João Cura Mariano (vencido, conforme declaração de voto que junto) – Maria João Antunes (vencida pelas razões constantes da declaração do Senhor Conselheiro Pamplona de Oliveira, para a qual remeto). – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração anexa) – Rui Manuel Moura Ramos (exercendo o voto de qualidade).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei o presente acórdão por, no essencial, concordar com a fundamentação constante do acórdão n.º 164/2011 que lhe serviu de fundamento. A norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, ao mandar aplicar aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, a nova redacção do artigo 1817.º do CC – na parte em que, aplicando-se às acções de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da acção, contado da maioridade ou emancipação do investigante – afecta para o passado posições jurídicas que são direitos, liberdades e garantias, retroagindo os seus efeitos. Como se diz no acórdão fundamento, “ao dispor que «a presente lei se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor», está o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 a determinar que o regime novo nela fixado quanto a prazos de caducidade de acções de investigação da paternidade valha também para eventos pretéritos. Tanto basta para que se conclua pela sua inconstitucionalidade”.
De todo o modo, a meu ver, tal norma sempre seria inconstitucional por mandar aplicar aos processos pendentes o novo regime de prazos previsto na norma do artigo 1817.º do CC, que considero inconstitucional (e cujos fundamentos se encontram – por remissão - na declaração de voto junta ao acórdão n.º 401/2011). Neste aspecto particular, afasto-me do acórdão fundamento que considera que não está em juízo, no presente caso, o específico prazo de 10 anos que a nova redacção do artigo 1817.º, n.º 1, do CC, veio peremptoriamente instituir.
Muito embora este Tribunal tenha decidido, por maioria, não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do CC, na verdade, a norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, agora em apreciação, é uma outra norma, sobre a qual não recaíra, ainda, decisão deste Tribunal. Ora, entendo que as mesmas razões que me levam a considerar inconstitucional o disposto no artigo 1817.º, n.º 1, do CC, na redacção da Lei n.º 14/2009, sempre me levariam, por maioria de razão, a considerar inconstitucional uma norma que fixa, não já apenas para o futuro, mas também para o passado (ao aplicar-se a processos pendentes no momento da sua entrada em vigor), a aplicação da norma ínsita no 1817.º do CC que instituiu o prazo de 10 anos. Ao estabelecer que o prazo previsto no artigo 1817.º também se aplica aos processos pendentes, a norma do artigo 3.º impõe o mesmo regime a esses processos, violando, ela própria, e agora de forma ainda mais gravosa, os direitos fundamentais à identidade pessoal (artigo, 26.º, n.º 1, da CRP), a constituir família (artigo 36.º, n.º 1 da CRP) e ao desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, n.º 1 da CRP).
Catarina Sarmento e Castro
DECLARAÇÃO DE VOTO
1. Na qualidade de relator do acórdão recorrido – o Acórdão n.º 285/2011 (1ª Secção) – entendi que a norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, que manda aplicar aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, não enferma de inconstitucionalidade, pelas razões que então expus no aludido aresto.
Face ao recurso interposto pelo Ministério Público para o Plenário do Tribunal, com invocação de oposição com o decidido no Acórdão n.º 164/2011 (3ª Secção), que julgara “inconstitucional, por violação do nº 3 do artigo 18.º da Constituição, a norma constante do artigo 3º da Lei nº 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar, aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor o prazo previsto na nova redação do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código”, apresentei um projeto de acórdão no qual defendia a tese da não inconstitucionalidade da norma sufragado na fundamentação do acórdão recorrido, a que se me afigurou útil aditar algumas considerações especificamente dirigidas ao aresto que decidira de forma contrária, o aludido Acórdão n.º 164/2011 (3ª Secção).
São essas considerações que seguidamente transcrevo.
2. A Lei n.º 14/2009 criou um novo regime de prazos aplicável às ações de investigação da maternidade e paternidade, alterando os artigos 1817.º e 1842.º do Código Civil. Nos termos do artigo 3.º, esse novo regime legal de prazos aplica-se aos processos pendentes à data da entrada em vigor dessa lei:
Artigo 3.º
Disposição Transitória
A presente lei aplica-se aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor.
É esta a disposição cuja conformidade constitucional é contestada.
No caso que deu origem ao Acórdão n.º 285/2011 discutia-se a aplicação da nova redação dada por essa lei ao artigo 1817.º do Código Civil a um processo que se encontrava pendente à data da entrada em vigor dessa mesma lei. O tribunal recorrido considerou que o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 era inconstitucional enquanto determinava a aplicação dos novos prazos previstos no artigo 1817.º do Código Civil a um processo pendente, iniciado em data posterior ao Acórdão n.º 23/2006 do Tribunal Constitucional, publicado em 08 de fevereiro de 2006 (Diário da República, Iª Série-A, n.º 28). O fundamento invocado foi a violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático, previsto no artigo 2.º da Constituição, por se tratar de uma norma retroativa e violadora das legítimas expectativas dos cidadãos, criadas face ao entendimento que passou a ser seguido pelos tribunais superiores de que a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral emitida pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006 tinha implicado a supressão de todos os prazos das ações de investigação da maternidade e da paternidade.
Tal, porém, não foi o entendimento perfilhado pelo Tribunal no Acórdão n.º 285/2011, que considerou que a norma do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 não era inconstitucional na referida dimensão.
3. Decorre da ampla jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o princípio da segurança jurídica que, para que a proteção da confiança seja tutelada constitucionalmente, é necessário, em primeiro lugar, que o legislador tenha promovido comportamentos capazes de gerar nos cidadãos a expectativa de continuidade de um determinado modelo jurídico. Ora, como se teve oportunidade de analisar no Acórdão recorrido, não se pode considerar ter existido um comportamento legislativo idóneo a criar expectativas merecedoras de proteção.
Em causa estaria o entendimento de que as ações de investigação da paternidade (e da maternidade) teriam deixado, por força do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de estar sujeitas a qualquer prazo, tese que, para este efeito, corresponderia a uma expectativa juridicamente tutelada.
Mas tal não é certo. Conforme o Tribunal tem afirmado (Acórdão n.º 154/10),
«[...] sobre o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afetação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes (deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição).[...]»
O referido Acórdão n.º 23/2006 declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. No entanto, para além de estar então em causa unicamente o limite temporal de dois anos previsto pela anterior redação do artigo 1817.º do Código Civil para as ações de investigação da maternidade e paternidade, o certo é que a ratio decidendi do aresto se ancorou na circunstância de o dito prazo começar a correr a partir da verificação de um facto puramente objetivo, desligado de circunstâncias pessoais do interessado. A tese adotada no Acórdão n.º 23/2006 não se radicou, portanto, na ideia da desconformidade constitucional da previsão de um qualquer prazo de caducidade neste tipo de ações, sendo por isso irrazoável admitir que tivesse gerado uma expectativa séria quanto à inconstitucionalidade da existência de qualquer prazo. Aliás, o próprio Acórdão n.º 23/2006 sublinhou a possibilidade de o legislador criar novos prazos para a investigação da maternidade e paternidade, ao ponderar:
“são possíveis (…) alternativas, quer ligando o direito de investigar às reais e concretas possibilidades investigatórias do pretenso filho, sem total imprescritibilidade da ação (por exemplo, prevendo um dies a quo que não ignore o conhecimento ou a cognoscibilidade das circunstâncias que fundamentam a ação), quer para obstar a situações excecionais, em que, considerando o contexto social e relacional do investigante, a invocação de um vínculo exclusivamente biológico possa ser abusiva, não sendo de excluir, evidentemente, o tratamento destes casos-limite com um adequado “remédio” excecional”.
Esta jurisprudência liga-se ao entendimento do Tribunal de que o legislador não estava impedido de fixar prazos de caducidade no que toca às ações de investigação de paternidade/maternidade, conforme decorre, por exemplo dos Acórdãos n.º 451/89 (Diário da República, IIª Série, n.º 218) e n.º 446/2010 (disponível no site do Tribunal). A intervenção do legislador no sentido da introdução de novos prazos de caducidade das ações de investigação da filiação nunca poderia ser configurada como uma normação inesperada. A expectativa corresponde a uma esperança fundada em probabilidade séria; pelas razões expostas, não pode afirmar-se que a decisão e os fundamentos do Acórdão n.º 23/2006 fossem adequados a gerar a «expectativa» de que as ações de investigação da paternidade e maternidade deixariam, por imposição constitucional, de estar sujeitas a prazos de caducidade.
4. Alega o recorrente Ministério Público que “o que importará, para efeito de avaliar a consequência real da entrada em vigor da mesma lei, é a interpretação que, do referido acórdão 23/06 deste Tribunal Constitucional, foi feita pela jurisprudência dos tribunais superiores portugueses, a começar pelo Supremo Tribunal de Justiça. Ora, sem margem para quaisquer dúvidas, a jurisprudência dos referidos tribunais superiores inclinou-se, inequivocamente - bem ou mal - para a conclusão de que o Acórdão 23/06 tinha vindo permitir a legítima assunção de (já) não haver prazo de caducidade para a propositura de ações de investigação de paternidade ou maternidade. (…) Foi, assim, com estes dados, relativos à jurisprudência dos tribunais superiores, que o Autor da ação de investigação se viu confrontado, foi com base nesses dados que intentou a mesma ação, é, por isso, com base em tais legítimas expectativas, que a questão de constitucionalidade terá de ser, agora, dirimida”.
No entanto, mesmo perante uma jurisprudência – de resto, não consolidada – do Supremo Tribunal de Justiça no sentido de que as ações de investigação da paternidade não estariam sujeitas a qualquer prazo, não pode afirmar-se que tal jurisprudência houvesse criado um verdadeiro critério normativo, cuja existência estaria vedada pelo n.º 3 do artigo 10º do Código Civil. É certo que alguma doutrina admite que a jurisprudência assume o papel de fonte mediata de Direito, na medida em que seja capaz de influenciar as demais fontes imediatas de Direito (assim, Oliveira Ascensão, O Direito – Introdução e Teoria Geral, 1995, Coimbra, pp. 304 a 322; Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 2005, Coimbra, pp. 266 a 269). Porém, se é certo que o princípio do Estado de Direito implica a proteção da confiança relativamente a atos jurisdicionais, essa dimensão do princípio da proteção da confiança jurídica apenas tem sido entendida como dizendo respeito ao caso julgado, i.e., em relação à estabilidade definitiva das decisões judiciais. Ora, como refere J.J. Gomes Canotilho, “é diferente falar em segurança jurídica quando se trata de caso julgado e em segurança jurídica quando está em causa a uniformidade ou estabilidade da jurisprudência. Sob o ponto de vista do cidadão, não existe um direito à manutenção da jurisprudência dos tribunais”. De facto, acrescenta o autor, “é uma dimensão irredutível da função jurisdicional a obrigação de os juízes decidirem, nos termos da lei, segundo a sua convicção e responsabilidade” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 256 e ss.).
5. Cumprirá ainda ter presente que, de acordo com a jurisprudência do Tribunal, para que o princípio da segurança jurídica na vertente material da confiança seja tutelado, é ainda necessário que o comportamento inovatório não seja ditado pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes. Ora, o interesse prosseguido pelo legislador através da aplicação de lei nova a processos pendentes é uma opção que se enquadra na sua liberdade constitutiva e conformadora que visou evitar a fragmentação da ordem jurídica democrática de uma forma inadmissível. De facto, através do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, a ordem jurídica trata de igual forma todos os casos pendentes à data da entrada em vigor da lei, não privilegiando os interessados que tivessem proposto a ação no lapso de tempo compreendido entre o Acórdão n.º 23/2006 e essa entrada em vigor. A opção do legislador afigura-se assim idónea e justificada pela necessidade de dar tratamento igual a essas situações.
Em suma, o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 não viola o princípio da segurança jurídica, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático previsto no artigo 2.º da Constituição.
6. O juízo de inconstitucionalidade adotado no Acórdão n.º 164/2011 fundamentou-se na violação do número 3 do artigo 18.º da Constituição, que proíbe a retroatividade de leis restritivas de direitos, liberdades e garantias.
O Tribunal Constitucional tem entendido que os prazos de caducidade previstos para as ações relativas ao estabelecimento da filiação não consubstanciam uma restrição aos direitos fundamentais em causa, mas sim condicionamentos a esses direitos (assim, os Acórdãos n.ºs 413/89, publicado no DR, II Série, de 15 de setembro de 1989, n.º 451/89, publicado no DR II Série, de 21 de setembro, n.º 311/95, inédito, e, por último, n.º 506/99, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 44.º vol., pág. 763). Na esteira deste entendimento, afirmou o Acórdão n.º 23/2006:
“A linha central de fundamentação dessas decisões assenta na consideração de que as normas em questão – e em particular o n.º 1 do artigo 1817º, agora em causa – resultam de uma ponderação de vários direitos ou interesses contrapostos, a qual conduz, não propriamente a uma restrição, mas a um condicionamento aceitável do exercício do direito à identidade pessoal do investigante”.
Esse é também o entendimento que ressalta do recente Acórdão n.º 401/2011 do Tribunal Constitucional (disponível no site do Tribunal), no qual se decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante. Diz o aresto:
“É legítimo que o legislador estabeleça prazos para a propositura da respetiva ação de investigação da paternidade, de modo a que o interesse da segurança jurídica não possa ser posto em causa por uma atitude desinteressada do investigante, não sendo injustificado nem excessivo fazer recair sobre o titular do direito um ónus de diligência quanto à iniciativa processual para apuramento definitivo da filiação, não fazendo prolongar, através de um regime de imprescritibilidade, uma situação de incerteza indesejável.
Necessário é que esse prazo, pelas suas características, não impossibilite ou dificulte excessivamente o exercício maduro e ponderado do direito ao estabelecimento da paternidade biológica.
Por isso, o que incumbe ao Tribunal Constitucional verificar é se, na modelação desses prazos, o legislador ultrapassou a margem de conformação que lhe cabe.
Na verdade, sendo o tipo de instrumento limitativo utilizado o adequado à defesa dos valores conflituantes, resta sindicar se as características dos prazos de caducidade estipulados respeitam o princípio da proporcionalidade, mantendo-se a linha mais recente do Tribunal Constitucional”.
Na realidade, a previsão dos referidos prazos não interfere no conteúdo desta forma de manifestação do direito ao desenvolvimento da personalidade, operando apenas quanto ao limite temporal do seu exercício. Esse limite explica-se pela preservação de outros interesses relevantes, como sejam a segurança e certeza jurídicas quer para o investigado e sua família, quer para o comércio jurídico em geral, tal como foi referido pelo citado Acórdão n.º 401/2011.
7. Todavia, ainda que se entendesse que a proibição do n.º 3 do artigo 18.º vale em relação a uma normação que, não resultando embora de uma lei restritiva, afeta negativamente posições jurídicas subjetivas constitucionalmente tuteladas, ainda assim não poderia considerar-se que o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009 viola aquela norma constitucional. E assim é porque, para tal, seria necessário que a norma objeto do presente recurso pudesse qualificar-se como uma norma autenticamente retroativa.
Na realidade, é que recordar a jurisprudência do Tribunal quanto à distinção dos casos de retroatividade autêntica daqueles outros em que a norma apenas pretende vigorar para o futuro, mas que acaba por tocar em situações, direitos ou relações jurídicas desenvolvidos no passado, mas ainda existentes – caso em que se pode considerar a norma como meramente retrospetiva ou inautenticamente retroativa. De facto, a retrospetividade ou “retroatividade inautêntica” é uma situação que se verifica “quando a lei nova só reclama uma vigência ex nunc, ainda que com a virtualidade de afetar direitos que, embora constituídos no passado por força da lei anterior, prolongam os seus efeitos no presente” (Jorge Reis Novais, As Restrições aos Direitos Fundamentais não Expressamente Autorizadas pela Constituição, Coimbra Editora, 2003, p. 818). Estão nessa situação as normas que se aplicam a situações jurídicas pré-existentes mas ainda não findas – como acontece nas que são invocadas nos processos pendentes.
É esse o caso do artigo 3º da Lei n.º 14/2009, que não afeta nenhum direito constituído no passado.
Tratando-se de uma norma que não pode ser qualificada como autenticamente retroativa, ela não viola o n.º 3 do artigo 18.º, já que esta norma constitucional apenas proíbe as leis restritivas que produzam efeitos de “retroatividade autêntica”. Assim, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “a proibição incide sobre a chamada retroatividade autêntica, em que as leis restritivas de direitos afetam posições jusfundamentais já estabelecidas no passado ou, mesmo, já esgotadas” (CRP Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 394).
8. Afigura-se-me, em suma, que deveria ser mantida a decisão recorrida no sentido de não julgar inconstitucional o artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril.- Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei do julgamento de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 3.º, da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na medida em que manda aplicar aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, o prazo previsto na nova redação n.º 1, do artigo 1817º, do Código Civil, aplicável às ações de investigação de paternidade, por força do artigo 1873.º, do mesmo Código, pelas seguintes razões.
Este Acórdão entendeu que a consagração do referido prazo consistia numa afetação negativa do direito ao reconhecimento da paternidade, pelo que a sua aplicação retroativa infringia o disposto no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição.
Ora, conforme se lê no Acórdão n.º 401/2011, deste Tribunal, o prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação previsto no n.º 1, do artigo 1817.º, do Código Civil, não funciona como um prazo cego, cujo decurso determine inexoravelmente a perda do direito ao estabelecimento da paternidade, mas sim como um marco terminal de um período durante o qual não opera qualquer prazo de caducidade. Verdadeiramente e apesar da formulação do preceito onde está inserido ele não é um autêntico prazo de caducidade, demarcando antes um período de tempo onde não permite que operem os verdadeiros prazos de caducidade consagrados nos n.º 2 e 3, do mesmo artigo. Face ao melindre, à profundidade e às implicações que a decisão de instaurar a ação de investigação da paternidade reveste, entende-se que num período inicial após se atingir a maioridade ou a emancipação, em regra, não existe ainda um grau de maturidade, experiência de vida e autonomia que permita uma opção ponderada e suficientemente consolidada, pelo que nesse período não operam os verdadeiros prazos de caducidade previstos nos n.º 2 e 3, do mesmo artigo.
Não sendo, pois, o decurso do prazo de 10 anos após a emancipação e a maioridade, constante do n.º 1, do artigo 1817.º, do Código Civil, que determina a caducidade do direito ao reconhecimento judicial da paternidade, antes funcionando como a delimitação de um período temporal em que os verdadeiros prazos de caducidade constantes dos n.º 2 e 3, do mesmo artigo, não operam, a sua consagração não pode ser encarada como uma afetação negativa daquele direito, mas antes como uma norma flanqueadora dos efeitos restritivos resultantes do estabelecimento dos prazos de caducidade fixados nos n.º 2 e 3, do artigo 1817.º, do Código Civil, pelo que não se encontra sujeita à proibição contida no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição.
Mas, mesmo que se pudesse entender que a norma que estabelece o referido prazo pertence a um sistema integrado de prazos de caducidade que, no seu todo, afeta negativamente o direito ao reconhecimento judicial da paternidade, há que ter presente que o disposto no n.º 3, do artigo 18.º, da Constituição, apenas impede o efeito retroactivo das normas que venham a introduzir novas restrições, anteriormente não previstas, ou a proceder ao alargamento ou agravamento de restrições já consagradas por lei prévia.
Ora, para verificar esta condição de aplicação do referido parâmetro constitucional, há que ter presente a situação legislativa que a antecedeu e que provinha da redação inicial do Código Civil de 1966.
O prazo-regra para a propositura da ação de investigação de paternidade era de dois anos após o investigante ter atingido a maioridade ou a emancipação (artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil). Excecionalmente, transcorrido o referido prazo-regra, o Código Civil dava ainda a possibilidade ao filho: a) de reagir no prazo de um ano após a destruição do registo da paternidade até então tido por verdadeiro e que inibia qualquer investigação de paternidade (artigo 1817.º, n.º 2); b) de utilizar o escrito do progenitor reconhecendo a paternidade, sendo aqui o prazo de seis meses a contar do conhecimento desse escrito (artigo 1817.º, n.º 3); c) e, existindo posse de estado, de investigar a paternidade no prazo de um ano a contar da data em que cessou o tratamento (artigo 1817.º, n.º 4).
Contudo o Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 23/2006 declarou a «… inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil, aplicável por força do artigo 1873.º do mesmo Código, na medida em que prevê, para a caducidade do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 16.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. …».
Conforme resulta da leitura dos fundamentos deste aresto o julgamento de inconstitucionalidade não recaiu sobre a existência de um prazo de caducidade para a propositura da ação de investigação de paternidade, mas sim sobre a sua duração e, sobretudo, sobre as suas características, uma vez que começava a correr inexorável e ininterruptamente desde o nascimento do filho e se podia esgotar integralmente sem que o mesmo tivesse qualquer justificação para a instauração da ação de investigação de paternidade.
Esta declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, determinou a eliminação do universo jurídico, ab initio, daquela norma, nos termos do artigo 282.º, n.º 1, da Constituição.
E como a revogação da legislação anterior à aprovação da norma declarada inconstitucional, não foi por ela operada, tendo a norma revogatória inteira autonomia (o artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966), aquela eliminação não determinou a repristinação do disposto no artigo 37.º, do Decreto n.º 2, de 25 de dezembro de 1910, que admitia que a ação de investigação de filiação pudesse ser ainda intentada no ano seguinte à morte dos pretenso progenitor, mas sim uma lacuna legislativa que importava preencher, desde logo pelos tribunais, nos termos do artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil (vide, neste sentido, Remédio Marques, em “A ação declarativa à luz do Código revisto”, pág. 290, nota 1, ed. de 2007, da Coimbra Editora).
O facto do Supremo Tribunal de Justiça (vide os Acórdãos de 14-12-2006, 31-1-2007, 23-10-2007, 17-4-2008 e 3-7-2008), em resultado duma errada leitura do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, ter entendido que o juízo de inconstitucionalidade abrangia qualquer prazo de caducidade que se estabelecesse, pelo que as ações de investigação de paternidade, durante este período, foram consideradas imprescritíveis, não é suficiente para que se possa considerar que durante o período que antecedeu a aprovação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, vigorou um regime de absoluta imprescritibilidade do direito ao reconhecimento judicial da paternidade. Estamos apenas perante pronúncias jurisprudenciais, com efeitos limitados aos casos concretos onde foram proferidas, cujo sentido é irrelevante para a caracterização da intervenção do legislador em 1 de abril de 2009.
Quando foi aprovada a Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, existia uma lacuna legislativa quanto ao prazo-regra de caducidade das ações de investigação de paternidade, a qual era suscetível de ser preenchida através de integração, nos termos do artigo 10.º, n.º 3, do C. Civil.
O legislador com a aprovação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, supriu essa lacuna, alterando a redação do artigo 1817.º, do C. Civil, de modo a criar um novo sistema de prazos de caducidade.
Conforme se escreveu no Acórdão n.º 401/2011, deste Tribunal:
Esta reforma legislativa não se limitou a alongar a duração dos prazos de caducidade constantes daquele preceito, mas pôs fim ao funcionamento autónomo de um prazo de caducidade “cego” que corria inexorável e ininterruptamente, independentemente de poder existir qualquer justificação ou fundamento para o exercício do direito.
Na verdade, apesar do n.º 1, do artigo 1817.º, do Código Civil, aplicável às ações de investigação da paternidade, por remissão do artigo 1873.º, do mesmo Código, manter que esta ação só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos 10 anos (na nova redação) posteriores à sua maioridade ou emancipação, o n.º 2, do mesmo artigo, dispôs que se não fosse possível estabelecer a maternidade em consequência de constar do registo maternidade determinada, a ação já podia ser proposta nos três anos seguintes à retificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório; e no n.º 3 que a ação ainda podia ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante; b) quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no n.º 1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe; c) e em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação.
Como resulta do advérbio “ainda” introduzido no corpo deste número, é manifesto que os prazos de três anos referidos nos n.º 2 e 3 se contam para além do prazo fixado no n.º 1, do artigo 1817.º, não caducando o direito de proposição da ação antes de esgotados todos eles. Isto é, mesmo que já tenham decorrido dez anos a partir da maioridade ou emancipação, a ação é ainda exercitável dentro dos prazos previstos nos n.º 2 e 3; inversamente, a ultrapassagem destes prazos não obsta à instauração da ação, se ainda não tiver decorrido o prazo geral contado a partir da maioridade ou emancipação.
Do confronto do regime anterior com o atual, sobressai a inovadora previsão de um fundamento genérico de abertura de prazos específicos para a proposição da ação de investigação, não contando apenas, para esse efeito, o conhecimento do escrito onde seja declarada a maternidade/paternidade e a cessação do tratamento como filho. Onde anteriormente se previam, de forma fechada e taxativa, duas causas de concessão de prazos que, excecionalmente, poderiam legitimar o exercício da ação para lá dos dois anos posteriores à maioridade ou emancipação, passou a acolher-se, através de autênticas cláusulas gerais, como dies a quo, a data em que se verifique “ o conhecimento de…factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação”.
O acolhimento de genéricos prazos de caducidade subjetivos salvaguarda, sem lacunas, a efetiva possibilidade de o interessado recorrer a juízo para ver reconhecido o vínculo de filiação com o seu progenitor. E mais do que isso. Em face do teor das alíneas b) e c), do n.º 3, mesmo quando o investigante dispõe de elementos probatórios que lhe permitem sustentar, com viabilidade de sucesso, dentro do prazo fixado no n.º 1, a sua pretensão de reconhecimento como filho de determinada pessoa, relevam os factos ou circunstâncias que possam justificar que, só após o termo final de tal prazo, ele tome essa iniciativa.
Por conseguinte, a lei civil portuguesa não adotou a regra da “imprescritibilidade” do direito de investigação de paternidade e continuou a insistir na necessidade de existência de limites temporais ao exercício desse direito, tendo embora configurado esses limites com um novo figurino e duração.
Se este novo figurino não permite que possamos qualificar a Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, como uma lei interpretativa (vide, neste sentido, Batista Machado em “Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil”, pág. 288, da ed. de 1968, da Almedina), seguramente que ele não veio introduzir novas restrições, anteriormente não previstas, nem procedeu ao alargamento ou agravamento de restrições já consagradas por lei prévia ao direito ao reconhecimento judicial da paternidade, mas, pelo contrário, desagravou significativamente a severidade do sistema de prazos de caducidade que vigorava anteriormente à sua aprovação.
Daí que, mesmo não se isolando o prazo atualmente previsto no artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, do sistema de prazos de caducidade previstos nos demais números desse artigo, não é possível concluir que as alterações introduzidas pela Lei n.º 14/2009, de 1 de abril tenham vindo introduzir novas restrições, anteriormente não previstas, ou a proceder ao alargamento ou agravamento de restrições já consagradas por lei prévia ao direito ao reconhecimento judicial da paternidade, pelo que não estamos perante uma lei contendo normas restritivas de direitos fundamentais que se pudesse considerar abrangida pela proibição prevista no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição.
Por estas razões, encontrava-se na esfera de liberdade do legislador ordinário optar por um regime de aplicação da lei no tempo como aquele que foi criado no artigo 3.º, da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, uma vez que o mesmo não respeitava a normas que pudessem ser consideradas restritivas de direitos fundamentais.
Por isso me pronunciei pela não inconstitucionalidade da norma aqui fiscalizada.- João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO DE VOTO
A posição que defendi – a da não inconstitucionalidade da norma do 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril – parte do princípio de que o juízo sobre as normas transitórias formais, como é a norma questionada, é absolutamente autónomo do juízo que mereça o conteúdo e o alcance prescritivos da norma mandada aplicar. Tratando-se de normas sobre normas, sobre a vigência temporal de normas que substituem outras anteriormente em vigor, o que conta são apenas os parâmetros que regem a sucessão de leis no tempo e não os que controlam o modo de composição substancial dos interesses regulados pelo novo preceito. Só quando a aplicabilidade temporal do regime antigo ou do regime que lhe sucedeu é feita depender dos seus sentidos normativos, por força do disposto na própria norma transitória – assim acontece no âmbito do direito penal – é que temos que atender aos conteúdos reguladores.
Sufrago a tese do acórdão n.º 164/2011 de que a imposição de limites temporais para o exercício do direito de investigar a paternidade deve ser tratada como uma restrição ao direito fundamental à identidade pessoal, desencadeando, nessa medida a aplicação da regra do artigo 18.º, n.º 3, da CRP. Mas dele divirjo por considerar que esta norma não é violada, pois a aplicação do novo prazo de caducidade aos processos pendentes (o mesmo é dizer, a situações jurídicas ainda não definitivamente consolidadas) não configura um caso de retroactividade autêntica.
Esta posição obriga à valoração directa da norma em causa pelo princípio da protecção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito (artigo 2.º da CRP). Mas também entendo que tal princípio não resulta violado, pois não estão reunidos os pressupostos aplicativos da protecção da confiança.
Desde logo porque não é inteiramente seguro que o interesse em investigar a paternidade a todo o tempo tivesse passado a gozar de tutela jurídica pelo simples facto de ter perdido eficácia a norma que fixava o prazo de dois anos (n.º 1 do artigo 1817.º do Código Civil), por força da declaração de inconstitucionalidade, proclamada pelo acórdão n.º 23/2006. Não era de afastar a hipótese de o operador judiciário, perante um sistema de regras de determinação da filiação onde continuaram em vigor prazos de caducidade (inclusivamente no âmbito do mesmo artigo 1817.º, para as acções de investigação) considerasse que estávamos perante um transitório vácuo legislativo, a preencher dentro do “espírito do sistema”. Nessa medida, e no contexto muito particular desta concreta sucessão de leis no tempo, não será líquido que tenha havido uma mutação desfavorável da ordem jurídica, quando, pelo contrário, é certo que o legislador introduziu um regime de prazos mais favorável do que o anteriormente fixado no artigo 1817.º, e não apenas no que se refere ao prazo-regra do n.º 1.
Mesmo que assim se não entenda, o que não sofre dúvida é a inexistência de qualquer expectativa legítima de continuidade da não fixação legislativa de qualquer prazo. A decisão de inconstitucionalidade do acórdão n.º 23/2006 foi tomada por razões atinentes à exiguidade do prazo de dois anos e ao seu termo inicial, logo nesse aresto se deixando patente que o regime de não caducidade não era a única alternativa pensável. Não obstante as posições que propugnavam esse regime, defendidas por alguns autores e sufragadas por algumas decisões judiciais, pode dizer-se que essa era uma questão em aberto, não tendo suporte a ideia de que os interessados não podiam contar com um regime de prazos do tipo do que foi estabelecido pela Lei n.º 14/2009. É quanto basta para se excluir qualquer lesão ao princípio da protecção da confiança.
Por tudo, fui de opinião que a norma impugnada não é, em si mesma, constitucionalmente desconforme. – Joaquim de Sousa Ribeiro.