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Processo n.º 892/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão:
«1. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão de 6 de outubro de 2011 proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1107 e ss.), mediante requerimento do seguinte teor:
“A., agente da Polícia de Segurança Pública, melhor identificado nos autos, arguido no processo em referência, preso preventivamente no estabelecimento prisional de Évora, tendo sido notificado do Acórdão final proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, vem interpor recurso para o Venerando Tribunal Constitucional, requerendo a fiscalização constitucional concreta, o que faz ao abrigo das disposições legais dos artº 70º, nº 1, al. b), 71º/1, 72º/1-b) e nº 2, 75º/1, 75º-A, 1 e 2, 76º/1, 78º/4, 79º/1, 79º-C da Lei 28/82 de 15 de novembro, Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, com as alterações subsequentes.
O Recorrente entende que os artºs 124º, nº 1, 150º/1, 151º, 154º/1, 354º do Código de Processo Penal são inconstitucionais na forma como foi deliberado por esse Tribunal e pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, impedindo, ou limitando a produção da prova necessária e fundamental em juízo, com grave prejuízo para a defesa dos seus direitos e perda da sua liberdade, um bem supremo.
O Recorrente entende que essa deliberação violou os artºs 2º, 3º, nº 2, 9º, al. b), 12º, nº 1, 16º, 18º, nº 1, 20º, nº 1, 29º, nº 6, 32º, nº 1, e 5 da Constituição, e que foi suscitada nas motivações do recurso intercalar para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa em 19?10?2009, conforme documento de fls..., e também nas motivações do recurso da sentença condenatória para o referido TRL, conforme documento de fls...e ainda nas motivações do recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça em 19-04-201 1, conforme documento de fls...
Mais requer se seja declarado efeito suspensivo ao Acórdão proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça.
(…).”
2. O presente recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (LTC) e como tal foi admitido no tribunal a quo. Este mecanismo processual de impugnação de decisão judiciais tem por objeto normas ou dimensões normativas e o conhecimento do seu objeto não prescinde da verificação prévia de diversos pressupostos.
Como resulta dos artigos 280.º, n.º 1, da Constituição, e 70.º, n.º 1, da LTC, o objeto do recurso de constitucionalidade é integrado por normas. Ora, as questões de constitucionalidade que compõem o objeto do presente recurso não apresentam verdadeira natureza normativa. O recorrente não logrou enunciar, a propósito dos diversos preceitos legais que identifica, uma real questão normativa, perfeitamente destacável das particularidades do caso concreto e enunciável em termos gerais e abstratos. O que contesta – e contestou durante o processo – foi o concreto modo como, em aplicação desses preceitos, as instâncias terão “impedido” ou “limitado” a produção da prova, o que traduz, por conseguinte, a impugnação do processo judicativo em si mesmo considerado e não, como a fiscalização concreta da constitucionalidade de normas impõe, de um qualquer conteúdo normativo extraível de normas jurídicas e de potencial aplicação genérica abstrata.
3. Por outro lado, e atenta a função instrumental que a fiscalização da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional assume no nosso sistema, o recurso de constitucionalidade deve ter por objeto normas ou dimensões normativas que, tendo sido aplicadas pelo tribunal a quo, integrem a ratio decidendi dessa pronúncia. Constata-se, no entanto, que, nos presentes autos, os preceitos que o recorrente integra no objeto do recurso (artigos 124.º, n.º 1, 150.º, n.º 1, 151.º, 154.º, n.º 1 e 354.º, todos do Código de Processo Penal), não foram sequer aplicados pelo Supremo Tribunal de Justiça. Com efeito, este tribunal limitou-se a, relativamente a questões sobre a matéria de facto, constatar que, não existindo insuficiência da matéria de facto para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova, tinha em seu poder todos os elementos de facto necessários para uma escorreita pronúncia sobre as questões de direito colocadas. Decidiu ainda, quanto às questões relativas às normas integradas no recurso de constitucionalidade, não tomar conhecimento do recurso nessa parte por considerar irrecorrível a decisão da Relação no que toca ao que este tribunal havia decidido a propósito do recurso da decisão interlocutória da primeira instância (cfr. fls. 1143).
O recorrente, no requerimento de interposição do presente recurso, demonstra pretender recorrer, também, da decisão anteriormente proferida pela Relação. Essa decisão não pode, no entanto, ser abrangida pelo presente recurso, o qual versa, apenas, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça e respetivos fundamentos.
Deste modo, não tendo sido suscitada qualquer questão de constitucionalidade “normativa” (artigo 72.º, n.º 2, da LTC), e dizendo o recurso respeito a normas que não foram sequer aplicadas pelo tribunal a quo, como, resta concluir pela inadmissibilidade do mesmo.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objeto do recurso e condenar o recorrente nas custas, com 7 UCs de taxa de justiça.»
2. O recorrente reclamou para a conferência nos termos seguintes:
«(…) tendo sido notificado da decisão sumária n.º 680/2011, e por não se conformar com tal decisão vem com a devida vénia, vem ao abrigo do disposto no art.º 76º n.º 4 da lei 28/82 de 15 de novembro, tom as alterações introduzidas pela lei 85/89 de 7 de setembro reclamar do referido despacho que indeferiu o requerimento de interposição do recurso, o que faz nos termos e com os seguintes fundamentos:
1. Com o devido respeito entende a decisão sumaria proferida pelo Venerando Tribunal Constitucional não tomou conhecimento do objeto do recurso por, alegadamente, não ter sido suscitada qualquer questão de constitucionalidade normativa (Art.º 72.º n.º. 2 da LTC, e dizendo o recurso respeito a normas que não foram sequer aplicadas pelo Tribunal “a quo”.
2. Ora o Reclamante em sede de recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ex vi da conclusão 41, invocou a violação do disposto no art.º 32 nº. 5 da Constituição, em consequência do Acórdão daquele Tribunal ter atentado contra o disposto nos artigos 154º/1, 354.º, 150.º/1, 340.º 256.º/1, do Código de Processo Penal.
3. Posteriormente no recurso para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, o Reclamante na conclusão 63 voltou a referir os citados normativos constitucionais, e ainda outros deste diploma fundamental.
4. O Reclamante esgotou todos os recursos ordinários que podem aplicar-se ao caso. O Venerando Supremo Tribunal de Justiça, como é referido no ponto 3 da decisão sumária ora reclamada, decidiu ainda, quanto às questões relativas ás normas integradas no recurso de constitucionalidade, não tomar conhecimento do recurso nessa parte por considerar irrecorrível a decisão da Relação no que toca ao que este Tribunal havia decidido a propósito do recurso da decisão interlocutórias da Primeira Instância (CFR fls. 1143)”.
5. O Reclamante sempre com o devido respeito, entende que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, embora tenha reduzido a pena de prisão aplicada ao Arguido, ao sufragar a restante matéria de facto e de direito acabou por violar os preceitos constitucionais que fundamentam o recurso para esse Tribunal Constitucional.
6. O facto do Venerando Supremo Tribunal de Justiça: não fazer qualquer referência aos artigos nºs. 124º/1, 150º/1, 154º/1 do Código de Processo Penal, não pode afastar a sindicância por esse Venerando Tribunal Constitucional, uma vez que essa questão foi suscitada “ab initio”, para o Venerando Tribunal da Relação, vidé a referida conclusão 41.
7. Para todos os efeitos, o Reclamante sempre invocou a inconstitucionalidade dos referidos preceitos legais, e a violação das citadas normas constitucionais ex-vi do n.º 6 d requerimento de interposição do recurso para esse Venerando Tribunal Constitucional.
8. Ademais merece toda a consideração o despacho proferido pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça que considerou o recurso tempestivo (...), afigurando-se a sua admissão.
9. Assim sendo, salvo melhor opinião deve ser admitido o recurso suscitando a inconstitucionalidade das referidas normas processuais com o significado que lhes foi atribuído pelo Tribunal “a quo” e pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.»
3. O Ministério Público responde do seguinte modo:
“1º
Pela douta Decisão Sumária n.º 680/2011, não se tomou conhecimento do objeto do recurso com base numa dupla fundamentação:
- o recorrente não enunciara questões de constitucionalidade normativa;
- a decisão recorrida não aplicara as “normas” indicadas pelo recorrente.
2º
Efetivamente, parece-nos evidente que, o que recorrente questiona perante o Tribunal Constitucional, tal como já tinha procedido perante as outras instâncias, é que tenha sido “impedido” ou lhe tinha sido dificultada a produção de determinada prova.
3º
Na reclamação agora apresentada, para demonstrar que suscitou uma questão de inconstitucionalidade normativa, refere a conclusão 41.ª da motivação do recurso interposto para a Relação de Lisboa e a conclusão 63.ª da motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça.
4º
Ora, independentemente da irrelevância dessa suscitação – perante o Supremo porque este Tribunal não aplicou as normas e perante a Relação porque o acórdão recorrido é o proferido pelo Supremo -, sempre se dirá que, lendo tais conclusões, o que o recorrente afirma é que “o acórdão recorrido” atentou contra numerosos preceitos do Código de Processo Penal e contra outros da Constituição (fls. 842 e 1002).
5º
Parece-nos evidente que tais afirmações não consubstanciam a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade de natureza normativa.
6º
Quanto ao outro fundamento, o recorrente nada de concreto adianta, parecendo-nos também claro que, não tendo o Supremo Tribunal de Justiça tomado conhecimento do recurso na parte em que estavam integrados os preceito indicados pelo recorrente, não aplicou essas disposições.
7º
No que respeita à afirmação do recorrente de que o recurso foi considerado tempestivo e admitido no Supremo Tribunal de Justiça (n.º 8 da reclamação), sempre se dirá que nunca foi posta em causa a tempestividade do recurso e que a decisão daquele Supremo Tribunal não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
8º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.”
4. A decisão objeto de reclamação entendeu não dever tomar-se conhecimento do objeto do recurso com fundamento em que:
- o recorrente não enunciara questões de constitucionalidade normativa;
- a decisão recorrida não aplicara as “normas” indicadas pelo recorrente.
Nenhum destes fundamentos é infirmado pela reclamação.
Com efeito, o recurso vem interposto do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 1 107 e segs. As questões de constitucionalidade teriam de respeitar a normas por esse aresto aplicadas. Tendo o Supremo decidido não conhecer do recurso na parte relativa à realização das diligências probatórias a que respeitam as normas cuja inconstitucionalidade se pretende ver apreciada – por considerar, nessa parte, irrecorrível o acórdão da Relação (alínea 1) da “deliberação” a fls 1143) –, é evidente que falta o primeiro pressuposto do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC: que incida (objeto em sentido substancial) sob norma aplicada pela decisão judicial recorrida (objeto em sentido processual). Nesta matéria, o Supremo não decidiu se as referidas normas impunham ou não que se realizassem as diligências de prova pretendidas. Entendeu que a questão estava definitivamente resolvida por decisão irrecorrível. O que significa que não aplicou as normas invocadas pelo recorrente, mas aquelas de que resulta a irrecorribilidade da decisão do Tribunal da Relação em tal domínio.
Perante esta evidência é irrelevante discutir se, em algum momento, o recorrente suscitou a inconstitucionalidade das referidas normas. Perante o Supremo é irrelevante, porque elas não integram a ratio decidendi do acórdão recorrido. Perante a Relação é irrelevante, porque o presente recurso não foi interposto do acórdão proferido por esse Tribunal.
De todo o modo, sempre se dirá que nos lugares invocados pelo recorrente, designadamente na conclusão 63 das alegações perante o Supremo Tribunal de Justiça não foi suscitada uma questão de constitucionalidade normativa, como exigem a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e o n.º 2 do artigo 72.º da LTC para abrir a via de recurso de constitucionalidade. Efetivamente, o que aí se afirma é que “o acórdão recorrido do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com todo o respeito, de entre outras, sufragando o deliberado pela deliberação do Tribunal ‘a quo’ atentou contra as disposições dos artigos 432º/nº 1, al. b) e al. d), 434º, e 410º, nº 2, al. a), b) e c) e nº 3, e 61º, nº 1, al. i), 124º, nº 1, 150º/1, 154º/1, 354º, 150º/1, 256º/1 e 340º, nº 1, 354º, do Código de Processo Penal, e artº 15º, al. b), e 146º, 131º e 132º, nº 1 e 2, alínea a), b) e e) do Código Penal, e artºs 2º, 3º, nº 2, 9º, al. b), 12º, nº 1, 16º, 18.º, nº 1, 20º, nº 1, 29º, nº 6, 32.º, nº 1, 5 da Constituição). Com isso não se questiona a validade constitucional de qualquer norma jurídica. Censura-se a decisão da Relação por desrespeitar tanto normas infraconstitucionais, como normas e princípios constitucionais”.
Finalmente, a afirmação do recorrente de que o recurso foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça (n.º 8 da reclamação) é absolutamente irrelevante para a sorte da reclamação, porque o despacho de admissão não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC).
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 11 de janeiro de 2012.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.