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Proc. nº 445/92 Plenário Rel.: Consª Maria Fernanda Palma
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional:
I Relatório
1 - O Provedor de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nº 2, alínea d), da Constituição e nos termos do artigo 51º, nº 1, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral das normas constantes dos artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, 175º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado por esse decreto-lei, e 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 57/90, de 14 de Fevereiro, tanto na versão originária, como na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 98/92, de 28 de Maio.
Sustentou no seu pedido que:
a) As normas contidas nas alíneas b) e c) do artigo 175º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas violam o princípio da segurança e da confiança dos cidadãos, corolário do Estado de direito democrático que o artigo 2º da Constituição consagra, e ainda a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista nos artigos 168º, nº 1, alínea b), e 169º, nº
3, da Constituição;
b) As normas contidas nos artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº
34-A/90 violam o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição;
c) As normas contidas no artigo 17º, nºs 2 e 3, do Decreto-Lei nº
57/90, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 98/92, bem como na sua versão originária, violam os princípios da igualdade e da confiança, contemplados, respectivamente, nos artigos 13º e 2º da Constituição.
2 - O Provedor de Justiça fundamenta o seu pedido numa tríplice violação de normas e princípios constitucionais: a violação da reserva relativa de competência legislativa parlamentar, a violação do princípio da igualdade e a violação de valores tutelados pelo princípio do Estado de direito democrático.
O Provedor considera que o artigo 175º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro) viola a reserva relativa de competência legislativa parlamentar, na medida em que dispõe sobre a passagem automática à reforma dos militares na situação de reserva, sempre que se verifiquem determinados requisitos.
O artigo 175º dispõe:
'Transita para a situação de reforma o militar dos QP que:
(...)
b) Atinja os 65 anos de idade;
c) Complete, seguida ou interpoladamente, cinco anos na situação de reserva fora da efecti-vidade de serviço; [redacção introduzida pela Lei nº
15/92, de 5 de Agosto]
(...)'
Através de tal preceito - alega o Provedor de Justiça -, regula-se matéria relativa à restrição ou limitação do exercício de posições jurídicas subjectivas, afectando-se direitos ou liberdades alicerçados no artigo
47º, nº 2, da Constituição, o qual, protegendo o direito de acesso em condições de igualdade e de liberdade à função pública, 'não pode deixar de proteger, também, a manutenção ou permanência na profissão escolhida', assegurando
'garantias relativamente aos modos de saída'.
A cobertura de direitos relacionados com os 'modos de saída' pela protecção concedida pelo artigo 47º, nº 2, da Constituição implica, igualmente, que tais direitos sejam abrangidos pela reserva relativa de competência legislativa que o texto constitucional conferiu ao Parlamento, no artigo 168º, nº 1, alínea b).
Assim, segundo o Provedor de Justiça, as referidas normas padeceriam de inconstitucionalidade orgânica, na medida em que:
1º 'Não existiu qualquer autorização legislativa, tendo o Governo decretado as normas em causa ao abrigo da alínea c) do artigo
201º da Constituição';
2º Tal inconstitucionalidade não foi sanada pelas alterações que a Assembleia da República introduziu no Estatuto, através da Lei nº 27/91, de 17 de Julho - com efeito, nem tais alterações afectaram o preceituado no artigo 175º, nem existe 'novação das normas', através da aplicação do instituto da 'ratificação dos decretos-leis', previsto no artigo
172º da Constituição, destinado, apenas, a alterar ou a recusar a ratificação de decretos-leis.
3 - O Provedor de Justiça alega também que as normas constantes dos artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº 34-A/90 violam o princípio da igualdade (artigo 13º da Constituição).
A solução de regime transitório para aplicação do artigo 175º do Estatuto consagrada nos artigos 11º e 12º, aplicável aos militares já na reserva à data da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 34-A/90, será violadora da igualdade pelas seguintes razões:
1º Porque não abrangeu, de igual modo, todos os militares na situação de reserva, antes da sua entrada em vigor, estabelecendo um calendário diferenciado;
2º Porque 'apenas os militares na reserva que transitem compulsivamente para a reforma no âmbito do calendário de transição terão direito ao complemento de pensão (artigo 12º, nº 1) estruturado pelo Fundo de Pensão instituído pelo Decreto-Lei nº 269/90, de 31 de Agosto'.
A violação do princípio da igualdade verifica-se ainda, segundo o Provedor de Justiça, na atribuição do suplemento de condição militar, nos termos do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 57/90, tanto na versão originária como com a alteração introduzida pelo artigo 7º do Decreto-Lei nº
98/92.
O primeiro decreto-lei restringiu a anterior generalização da atribuição daquele subsídio [artigo 2º, nº 2, alínea c), do Decreto-Lei nº
190/88, de 28 de Maio] e o segundo, ampliando embora o leque de destinatários
(pela introdução de um novo texto no nº 3 do artigo 17º), 'manteve a ausência de generalização de tal suplemento aos militares na reserva e fez desaparecer a alínea d) do nº 2 da versão originária do artigo 17º que atribuía este suplemento a todos os militares, verificadas, porém, certas condições de antiguidade e procedimento'.
A violação do princípio da igualdade resulta de que na atribuição do suplemento de condição militar 'não se está a conferir um tratamento diferenciado e na proporção da diferença a situações desiguais', mas sim a 'compensar a sujeição sofrida pelos militares na sua esfera pessoal' na situação de reserva (artigos 9º e seguintes, 170º, nºs 1 e 2, e 172º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas).
A atribuição de um tratamento diferenciado a situações para as quais não se verifica fundamento constitucional de distinção redundaria, deste modo, numa colisão com a proibição de discriminações e privilégios resultante do artigo 13º, nº 2, da Constituição.
4 - Finalmente, o Provedor de Justiça alega que as normas constantes dos artigos 175º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas (que introduziram a reforma automática antecipada), 17º, nº 1, do Decreto-Lei nº 57/90, de 14 de Fevereiro, com ou sem a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 98/92 (que alterou o modo de cálculo da remuneração de reserva), e 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 57/90 e nºs 2 e 3 do mesmo artigo com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 98/92, de 28 de Maio (que implicou a perda de suplemento de condição militar por alguns militares na reserva), violam o princípio da confiança (artigo 2º da Constituição).
Fundamenta-se esta conclusão, no essencial, em que:
1º A retroactividade das leis tem limites impostos pelo Estado de direito democrático - a sua necessidade como ultima ratio, a previsibilidade dos cidadãos afectados e 'o carácter desmesurado no balanço entre as vantagens obtidas pelo interesse público ou outros valores constitucionais e o sacrifício infligido aos cidadãos que (...) confiaram na permanência da essencialidade das suas situações jurídicas (...)'; distinguir-se-ia, assim, para legitimação da retroactividade das leis, entre um pressuposto (a prossecução de certos valores constitucionais) e vários requisitos (a necessidade, a previsibilidade, a razoabilidade e a tolerância), que, neste caso, não se verificarão;
2º O pressuposto da prossecução de valores constitucionais não se verifica, no caso em apreço, já que o interesse público prosseguido com aqueles diplomas (actualização e sistematização das normas militares estatutárias desde os anos 60 e 70, racionalização dos recursos humanos, funcionalidade das Forças Armadas, inserção coerente na disciplina geral das remunerações dos funcionários públicos e consideração das características específicas da condição militar) surge por via indirecta ('os objectivos legislativos prendem-se muito mais nitidamente com a execução e desenvolvimento da Lei de Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar - Lei nº
11/89, de 1 de Junho - e do Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho'); ora não se justifica uma retroactividade que atinge situações jurídicas consolidadas no passado, para prosseguir mediatamente valores consagrados na Lei Fundamental;
3º Os requisitos de legitimação da retroactividade também não se verificam: a) A necessidade não se verifica porque 'Em rigor, não é difícil admitir que alguma solução transitória mais alargada fosse possível';
b) A previsibilidade não se verifica pois
'tais alterações não eram facilmente previsíveis', 'o cidadão nada retiraria do Decreto-Lei nº 190/88, de 28 de Maio, nem do seu preâmbulo, sobre a precariedade de algumas das suas disposições' e 'ao tempo da aprovação do Decreto-Lei nº
34-A/90 (...) e do Decreto-Lei nº 57/90 (...) não houve qualquer modificação de vulto nas estruturas económicas, políticas e sociais da realidade portuguesa';
c) Não existe proporcionalidade entre o sacrifício exigido aos militares que tinham efectuado a sua transição para a reserva e os interesses públicos contemplados - 'Na verdade, tais militares não teriam, porventura, passado à reserva ou nela não teriam permanecido nas mesmas circunstâncias. Que repercussões poderá a modificação ter nas suas vidas? São, talvez, incalculáveis, mas, seguramente, sofrem o prejuízo causado pela perda do suplemento de condição militar (se não estiverem ao abrigo dos nºs 2 e 3 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 57/90, de 14 de Fevereiro) e auferirão uma pensão de reforma menos confortável do que aquela com que podiam contar na passagem à reserva'.
5 - Em resposta ao pedido do Provedor de Justiça, o Primeiro-Ministro veio alegar que não há inconstitucionalidade orgânica das alíneas b) e c) do artigo 175º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas. O Primeiro-Ministro considera, no entanto, na sua resposta, as normas que constam do artigo 174º, alíneas b) e c), do Estatuto (com a numeração que lhe foi dada pelo nº 2 do artigo 5º da Lei nº 27/91) e não do artigo 175º, alíneas b) e c), por entender ter havido lapso do Provedor de Justiça quanto à identificação das normas impugnadas, a que toda a argumentação expendida se pretende referir: as normas de transição para a situação de reforma e não as que prevêem a situação de reforma extraordinária.
6 - Os argumentos enunciados pelo Primeiro-Ministro para negar a inconstitucionalidade orgânica são três:
1º. As alíneas b) e c) do artigo 174º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas não restringem direitos consagrados no artigo 47º, nº 2, da Constituição, na medida em que deste artigo 'se não retira um direito de permanência indefinida na Função Pública, mas apenas o direito de não ser afastado da carreira por motivos arbitrários, bem como o de exercer os correspondentes cargos no quadro dos pressupostos definidos pela lei quanto à extensão temporal do vínculo que liga o Estado aos seus servidores'; a fixação do momento de transição da situação de reserva para a situação de reforma resulta do mero desenvolvimento dos limites estabelecidos em abstracto pela Lei nº 11/89, 'ao abrigo e em desenvolvimento do qual foi aprovado o Estatuto dos Militares das Forças Armadas'; a passagem para a situação de reserva não corresponde, também, a uma restrição de direitos, já que 'envolve simultaneamente a criação de um novo vínculo entre o Estado e os militares em causa, ao qual corresponde a atribuição, no âmbito do sistema de segurança social, de um novo direito igualmente tutelado pela Constituição (o direito à reforma)'; e, finalmente, o artigo 174º, alínea c), ao prever um período máximo de permanência numa determinada situação funcional, não envolve restrição de direitos, na medida em que 'a passagem à reforma surge como simples efeito ou consequência, e não como sua causa ou critério';
2º. A inconstitucionalidade orgânica não se verifica, por outro lado, porque teria sido eliminada pela Lei nº 27/91, de 17 de Julho, que procedeu à revisão, em processo de ratificação, do Estatuto dos Militares das Forças Armadas; teria havido um acto positivo de confirmação política da globalidade do diploma, num processo de ratificação acompanhado da aprovação de emendas, 'com a consequente expurgação do vício orgânico que hipoteticamente o afectasse'; reforça-se a anterior conclusão aduzindo o facto de a Assembleia da República ter rejeitado expressamente propostas de alteração das normas impugnadas, 'o que não pode deixar de ser entendido como uma confirmação expressa de tais normas';
3º. Como último argumento quanto à inconstitucionalidade orgânica invoca-se a circunstância de a Assembleia, pela Lei nº 15/92, de 5 de Agosto, ter reiterado 'novamente a sua vontade de manter na ordem jurídica o artigo 175º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, ao dar-lhe nova redacção, donde se conclui não ser hoje invocável, mesmo que originariamente existisse, o vício da inconstitucionalidade orgânica apontado pelo Provedor de Justiça'.
7 - A resposta do Primeiro-Ministro nega também a invocada inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade, pelos seguintes motivos:
1º. A eventual inconstitucionalidade do artigo 12º do Decreto-Lei nº
34-A/90 está necessariamente sanada pelo artigo 1º da Lei nº 15/92, de 5 de Agosto;
2º. O artigo 11º do Decreto-Lei nº 34-A/90 não viola o princípio da igualdade 'na medida em que o regime transitório nele previsto é o mais razoável e equitativo de quantos podiam ser encarados e obedece a um critério uniforme para todos os militares que já se encontrassem na reserva, incluindo aqueles que em Janeiro de 1990 contassem menos de 60 anos de idade, para os quais não foi previsto um escalão próprio pelo único e simples motivo de não ser necessário';
3º. Os nºs 2 e 3 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 57/90 não ofendem o princípio da igualdade porque o suplemento de condição militar que, até à publicação do Estatuto, 'era abonado aos militares na reserva foi expressamente incorporado na remuneração-base resultante da aplicação do novo sistema retributivo então instituído. Constituiria, assim, o suplemento de condição militar criado pelo referido artigo 17º um novo complemento remuneratório, alicerçado numa nova filosofia e em novos critérios, na base dos quais se encontram valores tão atendíveis e constitucionalmente tão legítimos como os de reconhecer e comparar a dedicação ao serviço militar daqueles que passaram à situação de reserva por força do limite de idade ou após uma longa permanência no activo'.
8 - Finalmente, o Primeiro-Ministro sustenta que não houve violação do princípio da confiança no Estado de direito democrático, pelas alíneas b) e c) do artigo 174º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e dos nºs 1, 2 e 3 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 57/90, na parte aplicável aos militares que, na data da respectiva publicação, se encontravam já na situação de reserva:
1º. Desde logo, porque a aplicação daqueles preceitos
'não envolve qualquer retroactividade na lei, visto referir-se ao conteúdo das situações jurídicas constituídas, independentemente dos factos que lhes deram origem (nº 2 do artigo 12º do Código Civil)';
2º. Por outro lado, porque 'é inequívoco que os militares que passaram à reserva antes da publicação do Estatuto dos Militares das Forças Armadas não adquiriram, por esse facto, qualquer direito a nela permanecer até aos 70 anos';
3º. Desta forma, 'se não há retroactividade da lei nem ofensa de direitos adquiridos, também não há violação do princípio de confiança, pois a actividade legislativa só pode estar limitada por este princípio se o legislador objectivamente tiver criado e transmitido ao cidadão a convicção de que determinadas normas permanecerão inalteradas'; assim, 'no caso das alíneas b) e c) do artigo 175º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, não é possível invocar qualquer ideia de confiança para obstar à modificação do regime aplicável aos militares na reserva, pois nada na lei anterior podia ser interpretado no sentido de lhes fazer crer que o legislador não utilizaria no futuro a sua normal competência para disciplinar em novos termos a situação'; e quanto ao artigo 17º do Decreto-Lei nº 57/90 'não se pode também falar em violação do princípio da confiança por privação do suplemento de condição militar, já que este suplemento foi integrado na retribuição normal dos militares não deixando portanto de ser abonado em relação a todos eles, incluindo os reservistas';
4º. Finalmente, 'não se verificou qualquer diminuição de vencimento como consequência das novas regras de cálculo do vencimento na reserva, razão porque o facto de os reservistas eventualmente não virem a atingir o escalão máximo, no âmbito do regime do Decreto-Lei nº 57/90, não pode significar violação do princípio da confiança'.
9 - Tudo visto, cumpre decidir.
II
Fundamentação
A
A questão prévia do conhecimento da questão da constitucionalidade orgânica das normas do artigo 174º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro
10 - A questão de constitucionalidade suscitada refere-se às alíneas b) e c) do artigo 175º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, preceito que veio a ser objecto de uma diferente numeração, através do artigo 5º da Lei nº 27/91, passando a identificar-se, hoje, como artigo 174º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas.
À alteração do número do preceito não correspondeu qualquer alteração normativa substancial ou formal, pelo que o Tribunal deve conhecer a questão da constitucionalidade das referidas normas na sua actual identificação como artigo 174º, alíneas b) e c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, identificação conferida pela Lei nº 27/91, de 17 de Julho.
Não se verifica, consequentemente, por este motivo, qualquer obstáculo ao conhecimento da questão de constitucionalidade da norma actualmente em vigor, mesmo que se entenda que a simples alteração de preceito possa ser fundamento do não conhecimento da norma (cf. Acórdãos nºs 806/93 e 57/95, D.R., II, de 29 de Janeiro de 1994 e 12 de Abril de 1995, respectivamente). Na verdade, trata-se apenas de uma alteração de numeração, justificada pela nova redacção de outros preceitos, que não afectou minimamente a redacção do artigo
175º, alíneas b) e c), e nem sequer modificou a sua inserção sistemática.
A identidade da norma de modo algum é posta em causa, até porque o número 3 do artigo 5º da Lei nº 27/91 refere a sua alteração como uma
'remuneração'. Para além disso, na própria Lei nº 15/92, o legislador veio a referir-se à alínea c) do artigo 175º do Estatuto 'aprovado pelo Decreto-Lei nº
34-A/90 ... ratificado pela Lei nº 27/91 ...', não dando qualquer relevância à alteração da numeração.
11 - Entende o Tribunal, todavia, que já constitui obstáculo ao conhecimento da norma contida no artigo 174º, alínea c), o facto de a Lei nº
15/92, de 5 de Agosto, ter alterado, entretanto, a respectiva redacção, de modo a reduzir para cinco anos a duração máxima de reserva.
Fundamenta-se esta tese, que a ora relatora não subscreve, em a alteração do prazo legal de duração máxima da reserva não permitir qualificar o preceito actualmente em vigor como norma idêntica ao primitivo artigo 174º, alínea c), do Decreto-Lei nº 34-A/90, por ter havido uma alteração substancial do seu conteúdo, conforme ao entendimento expresso no Acórdão nº 57/95 (cit.) deste Tribunal.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional não deverá tomar conhecimento a norma do artigo 174º, alínea c), na redacção originária do preceito, na medida em que terá deixado de existir interesse jurídico relevante na emissão de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral que atinja a norma revogada.
Na realidade, se é indiscutível que o facto de uma norma ter deixado de vigorar não obsta, em si mesmo, à declaração da sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, como é jurisprudência pacífica deste Tribunal (cf., entre outros, Acórdãos nºs 17/83 e 453/95, D.R., II Série, de 31-1-84 e de 7-10-95, respectivamente), também é igualmente aceite que pode deixar de existir interesse juridicamente relevante quando seja inadequado e desproporcionado accionar um mecanismo de índole genérica e abstracta para os casos concretos em que a aplicação da norma subsistiu (neste sentido, Acórdãos nºs 17/83 e 453/95, já citados).
Ora, na situação presente, a aplicação da norma passou certamente pela prática de actos administrativos de que poderá ter decorrido um de dois desfechos, conforme tenha havido (ou não) recurso contencioso. Se houve recurso contencioso ou ainda puder haver, não é indispensável nem adequada a fiscalização abstracta para resolver o caso, abrindo-se sempre a via do recurso de constitucionalidade. Se não houve recurso contencioso, o acto administrativo acabou por se consolidar na ordem jurídica, deixando de ser impugnável. Nesta
última hipótese, tal consolidação, mesmo não constituindo caso julgado em sentido estrito, por não proceder de decisão judicial, há-de, no entanto, a ele ser equiparada para efeito do disposto no artigo 282º, nº 3, da Constituição (no sentido dessa equiparação, cf. Acórdão nº 804/93, D.R., II Série, de 31-1-94).
B
A questão prévia do conhecimento da constitucionalidade
material das normas dos artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº 34-A/90 que aprova o Estatuto dos Militares das Forças Armadas
12 - As normas dos artigos 11º e 12º do Decreto-Lei nº
34-A/90 têm o seguinte conteúdo:
'Artigo 11º
1. A aplicação do disposto na alínea b) do artigo 175º do Estatuto far-se-á gradualmente, mediante a passagem automática à situação de reforma dos militares que:
a) Em 1990 - atinjam 70 anos de idade, no próprio dia em que os completarem, ou atinjam 69 anos, no dia 31 de Dezembro;
b) Em 1991 - atinjam 69 anos de idade, no próprio dia em que os completarem, ou atinjam 68 anos, no dia 31 de Dezembro;
c) Em 1992 - atinjam 68 anos de idade, no próprio dia em que os completarem, ou atinjam 67 anos, no dia 31 de Dezembro;
d) Em 1993 - atinjam 67 anos de idade, no próprio dia em que os completarem, ou atinjam 66 anos, no dia 31 de Dezembro;
e) Em 1994 - atinjam 66 anos de idade, no próprio dia em que os completarem, ou atinjam 65 anos, no dia 31 de Dezembro.
2. A aplicação do disposto na alínea c) do artigo 175º do Estatuto far-se-á gradualmente, mediante a passagem automática à situação de reforma, nos seguintes termos:
a) Em 1 de Julho de 1990, todos os militares que nessa data contem
10 ou mais anos, seguidos ou interpolados de serviço, independentemente da situação em que então se encontrem;
b) Em 1 de Janeiro de 1991, todos os militares que nessa data contem 9 ou mais anos na reserva fora da efectividade de serviço, independentemente da situação em que então se encontrem.'
'Artigo 12º
1. Sempre que a pensão de reforma dos militares a que se refere o artigo 11º resulte inferior à remuneração da reserva a que teriam direito caso não lhes fosse aplicado o calendário de transição, ser-lhes-á abonado, a título de complemento de pensão, o diferencial verificado.
2. As verbas eventualmente necessárias para fazer face ao abono previsto no número anterior serão anualmente inscritas no orçamento do Ministério da Defesa Nacional.
3. O direito ao abono do complemento de pensão manter-se-á até ao mês em que o militar complete 70 anos de idade.'
O regime constante do artigo 12º veio, porém, a adquirir um
âmbito de aplicação mais amplo, através do artigo 1º, nº 4, da Lei nº 15/92, de
5 de Agosto, que dispõe o seguinte:
'4. O regime previsto nos artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, aplica-se a todos os militares que se encontrem na situação de reserva à data da entrada em vigor do presente diploma, sejam ou não abrangidos pelo calendário de transição, estabelecido no nº 2 do presente artigo, bem como
àqueles que passaram à situação de reforma em data posterior a 1 de Janeiro de
1991, ao abrigo da alínea c) do artigo 175º do EMFAR.'
13 - Como se vê, tal preceito veio determinar a aplicação do regime previsto no artigo 12º a todos os militares na situação de reserva, abrangidos ou não pelo calendário de transição, incluindo aqueles que passaram à situação de reforma a partir de 1 de Janeiro de 1991. Modificou-se, deste modo, o âmbito de aplicação do regime introduzido pelo artigo 12º que, inicialmente, não atribuía aos militares na reserva não abrangidos pelo calendário de transição o complemento de pensão.
Uma tal modificação da esfera de aplicação da norma do artigo
12º do Decreto-Lei nº 34-A/90 não permite que tal norma se considere subsistente, com o conteúdo primitivo, no ordenamento jurídico. Por outro lado, como o artigo 1º, nº 4, da Lei nº 15/92 abrangeu também os militares que passaram à situação de reforma a partir de 1 de Janeiro de 1991, o referido artigo 12º deixou de abranger quaisquer situações de passagem compulsiva à reforma, determinadas pelo Decreto-Lei nº 34-A/90. De modo que se poderá concluir que não há situações excluídas do regime actual do artigo 12º materialmente idênticas às que são abrangidas.
Não persiste, consequentemente, qualquer interesse na apreciação da questão da constitucionalidade do artigo 12º, com o âmbito de aplicação primitivo.
Subsiste, porém, com o mesmo conteúdo, o artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, permanecendo, relativamente a ele, o interesse no conhecimento do pedido. O conhecimento da questão da constitucionalidade do nº 2 do mesmo artigo está prejudicado, uma vez que este número visa dar execução, através de um regime gradual, à alínea c) do artigo 174º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, norma essa cuja constitucionalidade não pode ser apreciada pelas razões anteriormente explicitadas.
C
A questão da constitucionalidade orgânica
da norma do artigo 174º, alínea b),
do Estatuto dos Militares das Forças Armadas
14 - O artigo 174º, alínea b), dispõe o seguinte:
'Transita para a situação de reforma o militar do QP que:
(...)
b) Atinja os 65 anos de idade;
(...)'
Segundo o Provedor de Justiça esta norma estaria ferida de inconstitucionalidade orgânica por violação do artigo 168º, nº 1, alínea b), da Constituição.
As duas questões de cuja solução depende o juízo deste Tribunal são a da efectiva exigência de reserva de lei relativamente à matéria regulada em tal norma e a da superação posterior da eventual inconstitucionalidade orgânica pelo accionamento do mecanismo previsto no artigo
172º da Constituição, do qual resultou a Lei nº 27/91, de 17 de Julho.
15 - A primeira questão centra-se na consideração, pelo Provedor de Justiça, de que o artigo 174º, alínea b), trata de matéria relativa
à restrição ou limitação do exercício de posições jurídicas subjectivas, afectando direitos ou liberdades alicerçados no artigo 47º, nº 2, da Constituição, na medida em que atinge as garantias do modo de saída da Função Pública.
O Primeiro-Ministro contradita esta tese do Provedor de Justiça, alegando que do artigo 47º, nº 2, da Constituição, não se extrai um direito a uma permanência indefinida e sem obediência a quaisquer requisitos legais na Função Pública e, por isso, entende, no que ao artigo 174º, alínea b),se refere:
1º - Que a alteração das condições de passagem à reforma não se subsume no direito vertido no artigo 47º, nº 2, da Constituição;
2º - Que tal situação não implica restrições de direitos (por envolver a criação de um novo vínculo entre o Estado e os cidadãos);
16 - A contraposição de argumentos acerca da reserva de lei pode ser entendida como uma discussão directa sobre um eventual carácter restritivo de direitos (alicerçados no artigo 47º, nº 2, da Constituição) do artigo 174º, alínea b). Estar-se-ia, então, a discutir se existe ou não um direito fundamental à permanência na Função Pública em certos termos ou alguma garantia quanto aos modos de saída e, em segundo lugar, se o artigo 174º, alínea b), restringiria tal direito.
Mas também é possível referir a controvérsia suscitada pelas teses em confronto a uma diferença de entendimento do sentido da reserva de lei, tal como se concretiza no artigo 168º, nº 1, alínea b): por um lado, o entendimento do objecto da reserva de lei como abrangendo toda a matéria relativa a direitos; por outro lado, o entendimento de que a reserva de lei engloba apenas restrições ou limitações de direitos, que, alegadamente, não estariam em causa na situação em análise.
Ainda no plano da constitucionalidade orgânica, poder-se-ia questionar se o artigo 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas contraria o disposto na alínea v) do nº 1 do artigo 168º da Constituição, na medida em que esta norma inclui na reserva de lei da Assembleia da República o regime geral da função pública.
17 - Todavia, independentemente da opção quanto à questão a decidir ou até da efectiva resposta a qualquer uma das questões formuladas, poderia ser declarada uma eventual inconstitucionalidade orgânica, apesar da não recusa de ratificação daquele decreto-lei, num processo em que foram propostas alterações e que culminou na Lei nº 27/91, de 17 de Julho, que contém normas de conteúdo idêntico ao das normas sub judicio?
Dividia-se a doutrina entre a aceitação e a recusa de valor confirmativo e de eficácia sanatória ao mecanismo da ratificação de decretos-leis previsto no artigo 172º da Constituição, em face do seu texto primitivo, anterior à revisão constitucional de 1982.
A favor da tese da aceitação de valor confirmativo e da consequente sanação da inconstitucionalidade orgânica concorria o facto de o processo de ratificação permitir sempre a abertura de um processo legislativo destinado a introduzir emendas, competindo ao plenário da Assembleia da República a votação na especialidade. A isto acrescia que a ratificação se traduzia na confirmação política do diploma pela Assembleia, que é, afinal, o
órgão competente para legislar sobre aquela matéria (cf., acerca do mecanismo de ratificação vigente antes de 1982, Luís Nunes de Almeida, 'O problema da ratificação parlamentar de decretos-leis organicamente inconstitucionais', Estudos sobre a Constituição, 3º vol., 1979, p. 619 e ss.).
A favor da tese que recusava o valor confirmativo e a eficácia sanatória da inconstitucionalidade orgânica argumentava--se com a função essencial e a ratio essendi da reserva de lei: o valor confirmativo e a eficácia sanatória da ratificação corresponderiam ao reconhecimento de uma liberdade concedida ao Governo para invadir a reserva de competência legislativa da Assembleia da República e ainda a uma confusão entre confirmação por vontade política e fiscalização da constitucionalidade (cf. Jorge Miranda, Funções,
Órgãos e Actos do Estado, 1990, p. 519).
18 - A controvérsia perdeu grande parte do seu sentido pela transmutação do instituto da ratificação, após a revisão constitucional de 1982, na mera possibilidade de suscitar a recusa de ratificação ou a alteração de um diploma. O sentido da questão que é possível colocar ao Parlamento consiste agora em provocar uma vontade negativa relativamente ao diploma e não como antes uma confirmação dos actos legislativos do Governo.
Quando a vontade negativa - a recusa - não se verifica, não subsiste automaticamente uma vontade positiva quanto à vigência do diploma
(assim, Jorge Miranda, ob.cit., p. 517 e ss.). O actual sistema pressupõe a autonomia, constitucionalmente conferida, do poder legislativo do Governo, que não se coaduna com qualquer ideia de confirmação tácita subjacente à não recusa de ratificação. Se não há recusa de ratificação subsiste a situação anterior, desde que legitimada pela competência legislativa do Governo.
É indiscutível, assim, que a articulação fundamental dos poderes legislativos é regulada no artigo 168º da Constituição, como foi realçado pela doutrina (cf. Jorge Miranda, ob.cit., loc.cit.). Por outro lado, o próprio artigo 172º, nº 4, da Constituição permite concluir pela total irrelevância da vontade política manifestada pelo Parlamento, relativamente ao decreto-lei cuja ratificação foi recusada no período da sua vigência, na medida em que a recusa de ratificação apenas o atinge a partir do dia de publicação da resolução. Ora, deste modo, também a não recusa de ratificação não pode eliminar retroactivamente os vícios de inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade orgânica não é suprida relativamente ao passado, pela possibilidade de recusa de ratificação pelo órgão competente.
Não é possível sanar retroactivamente, por mera vontade política, a falta de controlo pelo Parlamento da própria iniciativa legislativa. E a vontade política concordante do Parlamento é, como afirma Jorge Miranda,
'uma vontade formada a posteriori perante situações criadas ou factos consumados pelo decreto-lei e que a Assembleia, tudo ponderado, poderá não querer ou sentirá não poder quebrar' (ob.cit., p. 519). A vontade política presente na não recusa de ratificação também não se confunde com uma vontade dirigida à situação em que juridicamente se encontre o decreto-lei e que possa precludir, por esse motivo, a intervenção fiscalizadora do Tribunal Constitucional.
19 - Reconhece-se, todavia, que tais argumentos, válidos, em geral, para a mera não recusa de ratificação, não têm relevância absoluta num caso em que foram introduzidas alterações no diploma e em que foram rejeitadas propostas de alteração relativamente às normas cuja constitucionalidade orgânica
é questionada. Em tal caso, foi desencadeado um processo legislativo autónomo, exigente nos respectivos pressupostos (de iniciativa de pelo menos dez Deputados) e que veio a culminar com uma nova lei. Embora se trate de um processo legislativo específico, destinado a produzir alterações, haverá, quanto
às normas objecto de propostas de alteração, mas não alteradas, uma decisão positiva da Assembleia da República ou, noutros termos, uma assunção da anterior intenção legislativa (cf. Jorge Miranda, ob.cit., p. 520, que, apesar de rejeitar valor confirmativo à não recusa de ratificação, o não exclui quanto às normas objecto de propostas de alteração).
Ora, na situação que se analisa, não só houve a aprovação de emendas ao diploma como foram expressamente rejeitadas pro-postas de alteração da norma agora impugnada. Consequentemente, o argumento da necessidade de preservação da função essencial do artigo 168º da Constituição e da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental deixa de ser pertinente.
A possibilidade, efectivamente utilizada, de uma discussão na especialidade das normas impugnadas e da sua reafirmação num novo processo legislativo assegura a iniciativa parlamentar e ilustra uma verdadeira vontade legislativa. Através do uso de tal faculdade, a não recusa de ratificação não se esgota numa vontade política, assumindo-se como verdadeira intenção legislativa.
Assim, embora num plano lógico-formal seja questionável qualquer superação da inconstitucionalidade orgânica por esta assunção legislativa (porque, na realidade, também a recusa de ratificação apenas faz cessar a vigência do diploma após a sua publicação) e não se possa atribuir a esta vontade legislativa uma eficácia sanatória ou uma supressão retroactiva da inconstitucionalidade, também é verdade que a justificação da invocação da inconstitucionalidade orgânica, num plano funcional, não se verifica.
É certo que não há paralelismo absoluto entre o significado da confirmação de actos anuláveis e esta situação (isto é, a da não recusa da ratificação, acompanhada da rejeição de propostas de alteração), porque, aqui, o princípio subjacente não é, como no direito civil, a pura realização do interesse concreto de quem pode arguir a anulabilidade, mas o valor objectivo da preservação da distribuição da competência legislativa entre órgãos autónomos do Estado, como emanação da separação dos poderes e do sistema de controlo democrático dos poderes. Todavia, a vontade positiva manifestada após a rejeição das propostas de alteração, inserida num específico processo legislativo, revela que foi assegurado o sistema de controlo democrático inerente à delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.
Assim, a declaração de inconstitucionalidade orgânica do diploma não se justificaria para o cumprimento da função de controlo parlamentar da decisão legislativa, função já plenamente cumprida pelo processo de alteração do diploma, nos termos do artigo 172º, nº 2, da Constituição.
Deste modo, conclui-se que a inconstitucionalidade orgânica de um diploma, a que não foi recusada a ratificação, após discussão de propostas de alteração, não é pertinentemente invocável, não sendo exigível pela função de preservação da delimitação dos processos legislativos parlamentar e governamental.
D
A questão da constitucionalidade material da norma
do artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, ante o artigo 13º da Constituição
20 - O artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, já citado, define um regime transitório de aplicação do novo limite de idade para passagem à reforma, de modo a permitir a aplicação imediata do disposto no artigo 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas.
Por um lado, o critério do regime transitório visava diferir, para uma data posterior à entrada em vigor do decreto-lei, a passagem à reforma dos militares com mais de 65 anos. Estes não seriam automaticamente reformados desde logo [alíneas a), b) e c)], mas sim em anos diferentes (com intervalo de um ano entre cada dois anos de idade), conforme estivessem mais próximos ou afastados dos 70 anos de idade (para cada escalão etário de 2 anos). Desta forma, os militares com 69 anos de idade seriam reformados ainda em 1990 [alínea a)], mas os militares com 68 anos em 1990 seriam reformados no ano seguinte, com
69 anos. E assim, sucessivamente, seriam abrangidos todos os militares com mais de 65 anos em 1990.
Por outro lado, o referido regime diferia em um ano, para além dos 65 anos, a passagem à reforma dos militares com mais de 61 anos à data da entrada em vigor do decreto-lei, de modo que tais militares se viriam a reformar ainda com mais de 65 anos, e tanto mais para além dos 65 anos quanto mais próximo dessa idade se encontrassem em 1990 (à razão de um ano de diferimento para cada escalão etário de dois anos).
Introduziu tal critério uma óbvia diferença de idades de reforma entre os militares com idades compreendidas entre os 61 e os 70 anos em
1990 e, também, entre aqueles militares e todos os outros a que se viria a aplicar, fora do regime transitório, a nova idade legal de reforma. Corresponderá a diferenciação resultante do artigo 11º, nº 1, quanto às idades de passagem automática à reforma e, em geral, quanto às idades de reforma, uma violação do princípio da igualdade ínsito no artigo 13º da Constituição?
21 - É jurisprudência firme do Tribunal Constitucional que a violação do princípio da igualdade pressupõe, para além da desigualdade das posições das pessoas, ou apesar dela, a fundamentação de discriminações 'em motivos que não oferecem um carácter objectivo e razoável' (Acórdão nº 44/84, de
22 de Maio de 1984, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 3º vol., p. 133). O regime transitório previsto não estabelece uma distinção indiscriminada, sem justificação objectiva e razoável, entre os militares abrangidos pelo regime de transição, na medida em que corporiza o princípio de que a expectativa de permanência na reserva seria superior para quem mais longe se encontrava da idade de reforma vigente no momento da passagem à reserva.
Assim, o critério de antecipação da reforma em relação à idade de 70 anos, para os militares com mais de 65 anos, e de diferimento da idade de reforma para uma idade superior a 65 anos, relativamente aos militares com menos de 65 anos, mas relativamente próximos dessa idade (mais de 61 anos),
é um critério objectivo e razoável, fundamentado numa lógica de proporcionalidade quanto à alteração das expectativas.
Por outro lado, tal critério tem aplicação uniforme, pois reduz ou difere a idade de reforma segundo uma mesma razão. E ao abranger dois anos em cada escalão etário do calendário de transição, e não apenas um ou três, não é puramente arbitrário, pois impede a criação de uma diferença de idades de reforma exagerada entre militares com menos e mais de 65 anos de idade à data da entrada em vigor do diploma, sem criar, por isso, um calendário de transição que atingisse o limite mínimo da idade de reserva (57 anos).
Tal justificação é, por isso, razoável na perspectiva imposta pelo artigo 13º da Constituição (acerca do princípio da razoabilidade como critério de decisão quanto à violação de igualdade, cf. Claudio Rossano,
'Ragionevolezza e fattispecie di eguaglianza', e Giuseppe Volpe, 'Razionalità, ragionevolezza e giustizia nel giudizio sull'eguaglianza delle leggi', Il principio di ragionevolezza nella giurisprudenza costituzionale della Corte Costituzionale, 1994, p. 169 e ss. e 193 e ss., respectivamente).
E
A questão da constitucionalidade material das normas
do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 57/90, na versão originária e com a redacção dada
pelo artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/92, em face do artigo 13º da Constituição
22 - A questão da violação do princípio da igualdade coloca-se, de novo, a propósito da atribuição do suplemento de condição militar para os militares na reserva nos termos das normas referidas em epígrafe.
Na sua versão originária, o preceito estipulava o seguinte:
'Artigo 17º
(...)
2. À remuneração base referida no número anterior acresce, para efeitos de cálculo da remuneração de reserva, e nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 47º do Estatuto da Aposentação, o montante do suplemento de condição militar sempre que a passagem à situação de reserva se tenha verificado ou venha a verificar em qualquer dos seguintes casos:
a) Por limite de idade, estabelecido para o respectivo posto;
b) Por parecer da competente junta hospitalar de inspecção que declare a incapacidade física para o serviço activo e comprove que a inca-pacidade resulta de acidente ocorrido em serviço ou por motivo do mesmo ou de doença adquirida no serviço ou por motivo do mesmo;
c) Por declaração do próprio, após completar 36 anos de tempo de serviço militar;
d) Por declaração do próprio, sob proposta do chefe do estado-maior do ramo respectivo, fundamentada em conveniência de serviço, desde que tenha 20 ou mais anos de serviço militar.
(...)'
O artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/92 introduziu a seguinte redacção:
'Artigo 17º
(...)
2. Às remunerações referidas no número anterior acresce, para efeitos de cálculo da remuneração de reserva e nos termos da alínea a) do nº 1 do artigo 47º do Estatuto da Aposentação, o montante do suplemento de condição militar, sempre que a passagem à situação de reserva se tenha verificado ou venha a verificar em qualquer dos seguintes casos:
a) Por limite de idade, estabelecido para o respectivo posto;
b) Por declaração do próprio, após completar 36 anos de tempo de serviço militar.
(...)'
23 - O suplemento de condição militar resultava do artigo 2º do Decreto-Lei nº 190/88, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 57/90, e aplicava-se a todos os militares anteriormente em efectividade de funções ou em situação de comprovada incapacidade física. Através do artigo 17º, nºs 2 e 3, do Decreto-Lei nº 57/90, tal suplemento apenas se vem aplicar aos militares que passaram à situação de reserva por limite de idade ou após uma longa permanência no activo, em detrimento dos que ingressaram mais cedo, e por vontade própria, na situação de reserva. O nº 3 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 98/92 alargou o
âmbito primitivo de atribuição do suplemento de condição militar aos militares que transitaram para a situação de reserva até à publicação do Decreto-Lei nº
34-A/90 'por terem sido julgados fisicamente incapazes para o serviço activo ... tendo sido comprovado que a incapacidade resultou de acidente ocorrido em serviço ou por motivo do mesmo ou de doença adquirida em serviço ou por motivo do mesmo'.
Em qualquer dos casos, o novo regime não generaliza a figura designada como suplemento de condição militar, sendo certo que uma figura com esse nome se aplicava mais generalizadamente antes da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 57/90. Por outro lado, deve notar-se que o Decreto-Lei nº 57/90, no seu artigo 20º, considerou, na determinação do escalão remuneratório, o vencimento base adicionado ao suplemento de condição militar.
24 - Em consequência, a modificação do regime da figura assim designada não correspondeu à diminuição de regalias salariais fundamentadas em expectativas anteriores nem discriminou os militares que deixarem de ser abrangidos por esse suplemento perante os outros, relativamente às expectativas anteriormente criadas. Somente para o futuro deixou de existir com o mesmo
âmbito de destinatários este suplemento, o qual passou a justificar-se por razões de mérito, deixando de privilegiar os reservistas voluntários.
Esta modificação do regime do suplemento de condição militar criou uma distinção entre os militares fundada em critério objectivo e razoável
- um critério de mérito -, deixando de privilegiar automaticamente, com base numa presunção inilidível de risco da carreira militar, todos os outros militares.
Não se vislumbra que esta alteração do âmbito, da função e do sentido do suplemento de condição militar fira a igualdade entre os militares, correspondendo apenas a uma racionalização da figura, concordante com expectativas éticas razoáveis e compreensíveis acerca da condição militar.
F
A questão da constitucionalidade material das normas do artigo 11º, nº 1 do Decreto-Lei nº 34-A/90,
174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e 17º, nºs 1 e 2,
do Decreto-Lei nº 57/90, em face do artigo 18º, nº 3, da Constituição e do princípio da confiança
(artigo 2º da Constituição)
25 - Por último, foi colocada pelo Provedor de Justiça a questão da violação do princípio da confiança, emanado do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição), pelas normas contidas nos artigos 11º e
12º do Decreto-Lei nº 34-A/90, 174º do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 57/90.
O problema foi colocado numa dupla perspectiva: com a justificação de 'no momento da opção pela situação de reserva, o militar que o fez antes da vigência dos Decretos-Leis nºs 34-A/90 e 57/90 ter tido presente a possibilidade de permanecer (na reserva) um certo número de anos que lhe permitissem, mais tarde, a reforma com determinados benefícios' e com a justificação de a perda do suplemento de condição militar, por alguns reservistas, ter sido uma perda de direitos.
Por ter decidido, anteriormente, não conhecer a questão da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 12º do Decreto-Lei nº
34-A/90 e 174º, alínea c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, o Tribunal ocupar-se-á apenas do problema suscitado relativamente às outras normas, isto é, aos artigos 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, 174º, alínea b) do Estatuto dos Militares das Forças Armadas e 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 57/90.
O problema de constitucionalidade centrar-se-á, agora, na violação do princípio da confiança pela antecipação da idade de reforma e pela eventual perda do suplemento de condição militar por alguns reservistas.
26 - Pressuposto da colocação dos problemas assinalados foi
o entendimento de que os referidos decretos-leis se aplicariam retroactivamente e que, não sendo a proibição de retroactividade um princípio constitucional, a Constituição não permitiria, todavia, de modo absoluto, a retroactividade de normas jurídicas. A violação do princípio da confiança fundamentar-se-ia na existência de leis retroactivas, naqueles casos em que se imporia constitucionalmente a proibição de retroactividade.
Deveremos analisar este pressuposto em ordem a esclarecer três problemas:
1º. Existe uma aplicação retroactiva dos referidos decretos-leis?
2º. Existiu uma violação do princípio da confiança com fundamento na aplicação retroactiva da lei?
3º. Existiu uma violação do princípio da confiança com outro fundamento?
27 - A resposta à primeira questão é essencial, pois a retroactividade da lei não é constitucionalmente irrelevante. Embora não exista uma proibição geral de retroactividade (cf. Acórdão nº 11/83, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 1 e ss.), a retroactividade da lei só é expressamente decretada na Constituição como excepcional (artigo 29º, nº 4) e mesmo a lei constitucional só determina a produção de efeitos da declaração de inconstitucionalidade de normas anteriores a partir do seu início de vigência
(artigo 282º, nº 2).
A retroactividade é uma solução legislativa que necessita de se compatibilizar com os valores constitucionais e nunca uma solução absolutamente disponível pelo legislador ordinário. As limitações constitucionais à retroactividade hão-de ser compreendidas a partir da prevalência, em certas situações, dos valores da segurança, da igualdade e da protecção dos direitos fundamentais, relativamente aos interesses prosseguidos pelas normas retroactivas (cf. Acórdãos nºs 5/84 e 86/84, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2º vol., p. 239 e ss., e 4º vol., p. 81 e ss., respectivamente).
28 - Antes, porém, de apreciar a admissibilidade de retroactividade no caso presente, é necessário averiguar se as normas legais sub judicio serão retroactivas. Uma posterior compreensão da sua compatibilidade com as restrições da Constituição à retroactividade disso dependerá sempre.
Domina na doutrina jurídica nacional, que se atém à concepção de retroactividade emanada do Código Civil (artigo 12º), a ideia de que a retroactividade de qualquer lei, em sentido próprio, é apenas a que pretende atingir os factos anteriores à sua entrada em vigor, de modo que as leis que regulam apenas o conteúdo das situações jurídicas já constituídas, abstraindo dos factos que as originaram, não serão verdadeiramente retroactivas (cf. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 1968, pp. 213 e ss. e 306 e ss., e Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 1990, p.
231 e ss.).
Aceitando, provisoriamente, que a retroactividade na ordem jurídica portuguesa é apenas concebível nos termos fixados pelo Código Civil, não derivando da Constituição qualquer outro conceito de retroactividade, serão retroactivas as normas do artigo 11º do Decreto-Lei nº 34-A/90, 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, e 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 57/90, em face do conceito pressuposto no artigo 12º do Código Civil?
29 - A resposta definitiva à questão da retroactividade não depende apenas da intenção legislativa, nomeadamente da pretensão de regular situações jurídicas prescindindo de abranger os factos que as originaram. A perspectiva da determinação da lei competente vincula-se necessariamente a um critério objectivo de sentido, vinculativo do intérprete, a partir do tipo de ligação entre a regulamentação da situação e a do facto fundamentante (cf. Baptista Machado, Sobre a Aplicação no Tempo ..., loc.cit., e Introdução ..., ob.cit., p. 234 e ss.). Ponto de partida para uma resposta a tal questão é, desde logo, a perspectiva de que a aplicação da lei no tempo pressupõe uma determinação da lei competente e não apenas dos factos abrangidos pela lei (cf. Baptista Machado, ibid.).
Existiriam, assim, factos determinantes da competência da lei aplicável e factos abrangidos pelo âmbito de aplicação da lei competente. Só os factos constitutivos, modificativos e extintivos de situações jurídicas seriam determinantes da competência da lei. Os factos que fossem tidos como meras referências ou pressupostos das situações jurídicas reguladas seriam, diferentemente, irrelevantes para fixar a competência da lei.
Segundo esta perspectiva, a teoria do facto passado levaria a que no campo dos contratos, por exemplo, a lei competente para regular as situações jurídicas seria sempre a lei vigente no momento da sua conclusão
(artigo 12º, nº 2, do Código Civil). O respeito pela autonomia da vontade das partes implicaria que nunca se abstraísse, na regulação de uma situação jurídica dela emanada, de um controlo de tal facto jurídico de eficácia constitutiva. A lógica da determinação da competência da lei pelo facto constitutivo seria consubstanciada, neste caso, pelo princípio da autonomia da vontade das partes.
Por outro lado, onde não fosse possível ao intérprete divisar numa lei o objectivo de regular o próprio facto constitutivo, mas apenas uma situação jurídica presente em que certos factos passados surgem como referência
(como, por exemplo, quando a lei nova se refere aos efeitos inibitórios de certas penas relativamente à aquisição do estatuto de comerciante), aí será competente essa mesma lei, que abrange no seu campo de aplicação factos passados
(cf. Baptista Machado, Introdução ..., ob.cit., pp. 235 e 236).
30 - Quanto às normas dos artigos 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90 e 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, pode dizer-se que o legislador centrou a sua atenção na regulação de situações jurídicas em que certos factos passados surgem como referência. A alteração do limite de idade para a reforma não vem afectar situações jurídicas constituídas
- mas apenas expectativas criadas - nem vem regular qualquer facto anterior como o do ingresso na carreira, elegendo-o apenas como referência.
Assim, tomando em consideração a noção de retroactividade pressuposta pelo artigo 12º do Código Civil, sempre se concluiria que as normas dos artigos 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90 e 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, não seriam retroactivas, pois apenas regulariam relações já constituídas, subsistindo à data da sua entrada em vigor
(artigo 12º, nº 2, in fine).
Ora, é certo que o artigo 12º do Código Civil não tem que condicionar o sentido da retroactividade utilizado pelo legislador constitucional em todas as manifestações de proibição de retroactividade, nomeadamente quanto à chamada retroactividade inautêntica ou retrospectividade
(cf. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., 1993, p. 379). E, por outro lado, não é de excluir, em certos casos, por razões garantísticas, uma concepção mais ampla de retroactividade.
Todavia, onde não existirem especiais razões para afastar o conceito de retroactividade adoptado pelo Código Civil, ele será constitucionalmente adequado, por exprimir uma linguagem jurídica comum, tendencialmente válida em todos os sectores do ordenamento jurídico (no sentido de que o artigo 12º do Código Civil, embora não estando inserido na Constituição, funciona como uma autêntica bitola profunda da ordem jurídica - cf. Menezes Cordeiro, 'Problemas de Aplicação da Lei no Tempo. Disposições Transitórias', A Feitura das Leis, II, 1986, p. 374 e ss.).
31 - Também quanto às normas do artigo 17º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 57/90 se justifica idêntica conclusão quanto à retroactividade. A alteração produzida quanto ao subsídio de condição militar apenas consistiu numa alteração do modo de cálculo do vencimento, através da integração daquele subsídio (que já constituía, afinal, parte do vencimento de todos os militares) no vencimento base de todos os beneficiários e, simultaneamente, na criação, para o futuro, de um subsídio com requisitos diferentes.
Não se verificou, desta sorte, nenhuma supressão do subsídio primitivo que tenha atingido quem a ele tivesse direito, mas apenas uma substituição desse subsídio por uma nova composição do vencimento, que o passou a integrar. E, paralelamente, como se referiu, criou-se uma outra figura de subsídio, sem correspondência com o âmbito, a função e o sentido da anterior. Não houve, consequentemente, qualquer afectação de direitos já adquiridos ou regulação retroactiva de situações jurídicas anteriormente constituídas.
32 - Mas, independentemente da óptica de uma proibição constitucional da retroactividade, também se impõe o confronto das normas sub judicio [os artigos 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90 e 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas] com o princípio da confiança.
O princípio da protecção da confiança exprime uma ideia de justiça que aprofunda o Estado de direito democrático. Segundo ela, o Estado não pode legislar alterando as expectativas legítimas dos cidadãos relativamente às respectivas posições jurídicas, a não ser que razões ponderosas o ditem (cf. Gomes Canotilho, ob.cit., p. 371 e ss.). Prevalecem, neste último caso, a necessidade e o valor dos fins almejados, perante a segurança e a solidez das expectativas. Mas tal sacrifício das expectativas deve ser previsível para os cidadãos atingidos e não desproporcional à lesão dos interesses subjacentes ou, dito de outro modo, exigível (cfr. Acórdão nº 287/90, D.R., II, de 20 de Fevereiro de 1991).
Mas haverá lesão de expectativas que implique a violação do princípio da confiança?
Pressuposto de tal violação é a validade das expectativas. Isso não implica, necessariamente, que estas correspondam a direitos subjectivos, mas apenas que tenham um fundamento jurídico. E, por outro lado, não bastam quaisquer expectativas tuteladas juridicamente para que se justifique a intervenção do princípio da confiança. A validade das expectativas impõe que a previsibilidade da manutenção de uma posição jurídica se fundamente em valores reconhecidos no sistema e não apenas na inércia ou na manutenção do status quo.
Deste modo, terá de ser objectivamente previsível que se mantenha uma certa regulamentação jurídica no plano dos factos, por não haver indícios de futura alteração legislativa, e também no plano dos valores jurídicos, por não se vislumbrar a sua precariedade no momento em que se constitui a situação jurídica. Assim, deve reunir-se uma perspectiva privatística do investimento na confiança com uma perspectiva publicista de validade das expectativas por serem legitimamente fundadas (cf. Acórdão da Comissão Constitucional nº 437, de 26 de Janeiro de 1982, Boletim do Ministério da Justiça, nº 314, p. 141 e ss.).
33 - As normas sujeitas à apreciação da constitucionalidade, por alegada violação do princípio da protecção da confiança, constantes dos artigos 11º do Decreto-Lei nº 34-A/90 e 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, alteram as expectativas legítimas criadas pelos militares que ingressaram na carreira ao abrigo de legislação anterior?
A resposta terá de ser negativa, na medida em que a alteração da idade de reforma não corresponde a uma sua antecipação desproporcionada ou intolerável. O limite de idade de 65 anos passa a ser, é certo, inferior ao limite geral da função pública que se situa nos 70 anos. Porém, a escolha de um limite especial de idade nas Forças Armadas não pode ter-se como arbitrária, atendendo à especificidade das funções que elas desempenham. Por outro lado, o novo limite de idade terá sido ditado por um desígnio de reorganização das Forças Armadas que não pode deixar de se considerar legítimo.
Além disso, mesmo que se considere que existe uma expectativa jurídica de continuidade em funções até ao limite de idade - que teria sido
'encurtada' pela entrada em vigor do novo regime -, deve observar-se que a antecipação do limite de idade foi acompanhada de um regime transitório, consagrado, justamente, no artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, nos termos do qual a passagem automática à situação de reforma se fará gradualmente, entre os 66 e os 70 anos de idade, conforme os casos.
Além disso, não pode deixar de se considerar que a exclusiva ponderação do princípio da confiança nesta matéria inviabilizaria qualquer mutação de política legislativa em relação ao limite de idade. Assim, novas políticas de emprego ou de segurança social só poderiam ser definidas com quarenta ou cinquenta anos de antecedência para salvaguardar as expectativas de permanência no serviço de quem tivesse acabado de nele ingressar. Ora, esta conclusão é insustentável. O que se deve concluir, pelo contrário, é que as expectativas de permanência no serviço até à perfeição do limite de idade definido aquando do ingresso não constituem um valor absoluto, podendo ceder perante valores superiores.
34 - Por outro lado, a norma do artigo 17º do Decreto-Lei nº
57/90 não é, como se viu, retroactiva e não viola o princípio da confiança. Com efeito, o subsídio de carreira não foi suprimido retroactivamente apenas passou a ser qualificado, com mais propriedade, como elemento da remuneração global
(artigo 20º do Decreto-Lei nº 34-A/90). Por seu turno, o novo subsídio, possuindo uma fundamentação distinta, não se poderá conexionar com quaisquer expectativas anteriores. Quaisquer expectativas existentes só poderiam referir-se ao subsídio anterior.
Finalmente, uma eventual expectativa quanto à continuidade da atribuição de parte da remuneração a título de subsídio de carreira, e não como elemento da mesma remuneração, não tem qualquer significado jurídico. E também não há uma expectativa jurídica de que, após o primeiro subsídio ser integrado na remuneração, passando a beneficiar dos aumentos anuais da nova remuneração base, o novo subsídio de condição militar (criado com um fundamento legal distinto) venha a ser generalizadamente atribuído. Nesse caso, a expectativa a considerar não seria a da continuidade de uma situação jurídica preexistente, mas sim a de um direito ilimitado a quaisquer subsídios a criar, o que não constitui, obviamente, uma expectativa jurídica tutelada pelo princípio da confiança.
III Decisão
35 - Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 174º, alínea c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro;
b) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº
34-A/90, de 24 de Janeiro, que aprova o Estatuto dos Militares das Forças Armadas;
c) Não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 12º do Decreto-Lei nº
34-A/90, de 24 de Janeiro, que aprova o Estatuto dos Militares das Forças Armadas;
d) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 174º, alínea b), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro;
e) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 11º, nº 1, do Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, que aprova o Estatuto dos Militares das Forças Armadas;
f) Não declarar a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 17º, nº 2, do Decreto-Lei nº 57/90, de 14 de Fevereiro, na versão originária, e com a redacção dada pelo artigo 7º do Decreto-Lei nº 98/92, de 28 de Maio.
Lisboa, 19 de Junho de 1996 Maria Fernanda dos Santos Martins da Palma Pereira (vencida quanto às alíneas a) e b) da decisão, nos termos de declaração de voto junta)
Sendo relatora do presente processo, votei vencida quanto às alíneas a) e b) da decisão por entender que não constitui obstáculo ao conhecimento da norma contida no artigo 174º, alínea c), o facto de a Lei nº
15/92, de 5 de Agosto, ter alterado, entretanto, a redacção de tal preceito, de modo a reduzir para cinco anos a duração máxima de reserva.
A redução da duração da reserva operada pela Lei nº 15/92 mantém inalterado o critério normativo da existência de uma duração máxima da situação de reserva, apenas modificando o seu prazo concreto. Do ponto de vista das questões suscitadas, a parte da norma cuja constitucionalidade se discute não é a que concretiza um certo período máximo de permanência na situação de reserva - nove anos -, mas apenas a que prevê uma limitação da possibilidade de permanência na reserva, qualquer que seja o prazo. Na verdade, a invocada violação do princípio da protecção da confiança configura-se pelo confronto de uma situação normativa em que a permanência na reserva não tenha limites com uma situação em que se institui o princípio da duração máxima.
Mas mesmo que assim se não entendesse, por escrupuloso respeito pelo princípio do pedido, é indiscutível que quem suscita a inconstitucionalidade da norma que criou um prazo de nove anos, onde antes não existia qualquer prazo, por maioria de razão questionará todas as reduções deste prazo de nove anos. Assim, pode concluir-se que quem contesta a dimensão normativa menos gravosa, contesta necessariamente a mais gravosa, que está compreendida na primeira.
Deste modo, deveria o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 51º, nº 5, da Lei nº 28/82, tomar conhecimento das questões de constitucionalidade material suscitadas relativamente ao artigo 174º, alínea c), com o conteúdo que lhe foi conferido pela Lei nº 15/92, por considerar o objecto do pedido extensivo a esta nova redacção do preceito em causa, na medida em que, substancialmente, a norma se mantém. E consequentemente, o Tribunal também deveria apreciar a conformidade constitucional do artigo 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº 34-A/90, na medida em que esta norma contém um regime de aplicação gradual do disposto no artigo 174º, alínea c), do Estatuto dos Militares das Forças Armadas. É este o entendimento que decorre de uma visão funcional do conceito de norma, que tenha em consideração as competências conferidas ao Tribunal Constitucional e a finalidade do processo de fiscalização abstracta sucessiva. Vitor Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Alberto Tavares da Costa Messias Bento Fernando Alves Correia Maria da Assunção Esteves Bravo Serra Antero Alves Monteiro Diniz (vencido quanto às alíneas a) e b) pelas razões constantes da declaração de voto da Exmª Conselheira Maria Fernanda Palma). Luis Nunes de Almeida (com declaração idêntica à da Exª Relatora). José Manuel Cardoso da Costa