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Proc. nº 875/93
1ª Secção Rel: Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A. e sua mulher, B., vieram em 16 de Novembro de
1993 deduzir reclamação para o Tribunal Constitucional da decisão do Juiz do 1º Juízo da Comarca de Cascais que não admitiu o recurso interposto para o mesmo Tribunal, ao abrigo do art. 76º, nº 4, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional).
Invocaram os seguintes fundamentos:
- Assistia razão ao Juiz reclamado quando afirmava que o art. 687º do Código de Processo Civil não admite recurso do despacho que fixa o efeito do recurso, só podendo esse efeito ser impugnado na alegação do recurso ordinário, na medida em que tal artigo se refere apenas a recurso ordinário. Daí não decorria que o mesmo regime fosse aplicável ao recurso de constitucionalidade.
- Na acção de reivindicação em que são réus os reclamentes e autora C., foi pedido o reconhecimento da propriedade e a entrega de uma fracção do prédio urbano em que habitam aqueles, vindo essa acção a ser julgada procedente em primeira instância;
- Tendo os réus interposto recurso da sentença final, foi o mesmo admitido com efeito devolutivo, de harmonia com o art. 792º do Código de Processo Civil;
- Pela via normal, o despacho de admissão do recurso não seria susceptível de impugnação, mas sucedia que os réus recorrentes sustentaram, ao interpor
'recurso extraordinário para o T.C.', que a decisão que atribui no caso concreto efeito devolutivo ao recurso ordinário 'extrai do preceito do artigo 792º do C.P.C., tendo em conta o regime do nº 2 do artigo 980º, norma que ofende o artigo 65º da C.R.P.' (fls. 2 vº dos autos);
- Parece, assim, que a admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional seria indiscutível, visto que a possibilidade de execução da decisão do tribunal recorrido 'resulta da aplicação de norma inconstitucional e é susceptível de ofender imediatamente o direito fundamental de habitação'. Na verdade, se 'o despacho que fixa a um recurso ordinário certo efeito, mesmo que de acordo com a lei ordinária, faz aplicação ou interpretação de norma que torna violadora de direitos fundamentais ou de normas constitucionais, não é o artigo 687º do C.P.C. que obsta o recurso para o T.C., posto que este preceito só se aplica à impugnação ordinária' (ibidem).
Concluiram, pois, que devia ser atendida a reclamação e admitido o recurso por eles interposto, visto que a decisão reclamada 'não tomou em conta que a lei ordinária, mesmo substantiva, não pode limitar os casos em que é admissível a impugnação de decisões judiciais, desde que estas envolvam aplicação de normas inconstitucionais, ou cuja inconstitucionalidade é posta em causa pelo recorrente.'
Juntaram aos autos de reclamação certidão das peças processuais necessárias para o conhecimento do objecto de reclamação, tendo sido proferido pelo Senhor Juiz de Cascais despacho de manutenção do despacho reclamado, nos termos do art. 688º, nº 3, do Código de Processo Civil.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Após a distribuição, teve vista do processo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, o qual emitiu parecer, onde sustentou que a reclamação não podia ser deferida.
3. Foram corridos os vistos legais.
Cumpre apreciar a reclamação.
II
4. Da leitura da certidão junta aos autos, retira-se o seguinte.
Através de sentença proferida em 5 de Março de
1993, foi julgada procedente a acção de reivindicação proposta por C. contra os ora reclamantes na comarca de Cascais, sendo reconhecido o direito de propriedade sobre a fracção designada ---------------- na Quinta -------------, na freguesia de --------------, sendo os réus condenados a restituir à autora tal imóvel, do mesmo modo que foi ordenado o cancelamento de qualquer registo de aquisição dessa fracção a favor dos mesmos réus.
Os réus interpuseram recurso de apelação desta sentença, sustentando que o mesmo devia ter efeito suspensivo e subida imediata nos autos, por considerarem justificada a adopção por analogia do regime de recurso de apelação na acção de despejo, atendendo a que defendiam o direito constitucional de habitação (art. 65º da Constituição). Afirmaram ainda que outro entendimento tornaria no caso concreto a norma do art. 792º do Código de Processo Civil inconstitucional, por violação daquele preceito da Constituição.
O recurso foi admitido com subida imediata e nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, por decorrência expressa do art. 792º citado, afirmando-se naquele despacho que não se vislumbrava que o mesmo ofendesse qualquer norma constitucional, nem que fosse possível aplicar por analogia o regime fixado para as acções de despejo, por não haver tal analogia.
Notificados deste despacho, dele vieram interpor recurso para o Tribunal Constitucional os ora reclamantes, ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional, invocando que a circunstância de o despacho de admissão do recurso e de fixação do seu efeito ser irrecorrível autonomamente, não impedia a interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, desde que a questão de constitucionalidade houvesse sido suscitada durante o processo. Invocaram ainda que o regime do art.
792º do Código de Processo Civil devia ser afastada no caso sub judicio, pois que existiria paridade de razões para considerar que deveria ser aplicável antes aos autos o regime de efeito suspensivo previsto no art. 980º do mesmo diploma.
Este recurso foi rejeitado por despacho de 29 de Outubro de 1993, com o seguinte teor:
'Requerimento de fls. 276:
Não se admite o recurso, uma vez que o despacho em que se admite o recurso é irrecorrível e nos termos do art. 687º, nº 4 do Cód. Proc. Civil as partes só podem impugnar o efeito atribuído ao recurso nas suas alegações.'
5. Consoante se sustenta no parecer do Representante do Ministério Público, não têm razão os reclamantes.
A decisão de admissão de um recurso cível, incluindo a parte em que se fixa o efeito ao recurso, é insusceptível de recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei nº 28/84.
Esta afirmação é justificada pela doutrina, acolhida maioritariamente pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, que sustenta a irrecorribilidade para este Tribunal das decisões judiciais provisórias (neste sentido, vejam-se os Acórdãos nºs 151/85 e 267/91, o primeiro publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 6º, págs. 351 e seguintes, e o segundo no Diário da República, II Série, nº 244, de 23 de Outubro de 1991; em sentido contrário, veja-se o Acórdão nº 92/87, in Boletim do Ministério de Justiça, nº 365, págs. 261 e seguintes). Como se escreveu no Acórdão nº 267/91:
'Tem, assim, de se concluir que o despacho de admissão de recurso não tem autonomia, porquanto a decisão final sobre tal matéria cabe sempre ao tribunal de recurso, que, independentemente de qualquer requerimento das partes, tem o dever de se pronunciar sobre se o recurso deve ou não ser admitido em definitivo
(artigo 701º do Código de Processo Civil).
A decisão do juiz recorrido mais não é do que, como certeiramente a qualifica Vital Moreira (voto de vencido citado), uma «pré-decisão, quando muito uma decisão provisória, que nunca subsiste por si mesma [...]». [...]
Ora, destinando-se o despacho de admissão recorrido a ser substituído por outro - este sim, definitivo - e não sendo passível de recurso comum e não podendo sobre ele formar-se caso julgado, admitir que dele se possa interpor recurso de constitucionalidade é, afinal, retirar ao tribunal de recurso a possibilidade de decidir dentro da sua competência sobre a questão da admissibilidade ou inadmissibilidade do recurso, tornando desde logo definitiva a questão (a constitucionalidade) quando a decisão em que ela se insere é meramente provisória, pois ainda não está tomada por forma que sobre ela se venha a formar caso julgado.
A decisão que viesse a ser proferida pelo Tribunal Constitucional
- que faz, esta sim, caso julgado e se impõe aos outros tribunais - iria condicionar por forma radical a decisão do Tribunal de recurso, que era, afinal, o tribunal ao qual verdadeiramente competiria definir a questão da admissibilidade do recurso.'
6. Mas, como põe em destaque o mesmo Procurador-Geral Adjunto, a solução de irrecorribilidade do despacho de admissão de recurso cível ainda se imporá para aqueles que não subscrevem a tese da irrecorribilidade das decisões provisórias, quando se está perante o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
De facto, os recursos previstos na alínea b) do nº
1 do art. 70º; da Lei do Tribunal Constitucional 'só podem ser interpostos de decisões que não admitam recurso ordinário' (nº 2 do mesmo art. 70º, veja-se o nº 4 do art. 280º da Constituição, in fine). Fala-se, a este propósito, de princípio da exaustão ou de esgotamento dos recursos ordinários. Ora, é manifesto que deve aplicar-se por analogia o disposto no nº 2 do art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional aos casos em que - como no dos presentes autos - a alteração do efeito do recurso fixado por uma instância é susceptível de ser levada a cabo pela instância de recurso, dentro do mesmo processo.
Pode ler-se no já citado parecer do Ministério Público:
'É certo que esta forma ou meio de «impugnação» da decisão provisória proferida sobre o efeito do recurso não é tecnicamente subsumível à letra do nº 2 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional. Porém, a jurisprudência constitucional vem sustentando, de forma reiterada, que tal conceito normativo é de amplíssima significação - abrangendo, por exemplo, as reclamações do despacho de não recebimento de recursos, que tecnicamente também não são 'recursos ordinários' - interpretando, deste modo, tal requisito de admissibilidade de recurso, baseado na alínea b) do nº 1 do artigo 70º, em termos «funcionais» ou teleológicos: o que interessa é que a decisão objecto de recurso de constitucionalidade constitua a «última palavra» dentro da ordem judiciária a que pertence o tribunal que a tomou (cfr. Acórdão nº 21/87). A ideia base subjacente a tal regime estará, deste modo, em só admitir a intervenção do Tribunal Constitucional quando a questão tenha sido examinada e decidida por todas as instâncias possíveis na ordem judicial respectiva, de modo a obviar ao levantamento ou suscitação 'gratuitos' de questões de pretensa inconstitucionalidade normativa, evitando a intervenção desnecessária e prematura deste Tribunal.
Ora, nesta perspectiva, sendo perfeitamente licito ao ora reclamante recolocar a questão da inconstitucionalidade do artigo 792º do Código de Processo Civil nas suas alegações do recurso de apelação - como fundamento da pretendida alteração do efeito fixado a esse recurso - inexiste um pressuposto fundamental de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/83'. (a fls. 20-21 dos autos)
III
7. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em cinco(5) unidades de conta.
Lisboa, 22 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Maria da Assunção Esteves
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa