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Proc. nº 566/92
1ª Secção Cons. Ribeiro Mendes
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A., recluso a cumprir pena de prisão no Estabelecimento Prisional ------, interpôs recurso para o Tribunal de Execução de Penas de Lisboa da decisão do director desse estabelecimento que lhe aplicou, em 17 de Setembro de 1992, a punição de internamento durante trinta dias em cela disciplinar, em virtude de ter consumado uma fuga em 15 do mesmo mês e ano, durante a realização de trabalho no exterior do estabelecimento, tendo vindo a ser recapturado pouco tempo depois.
O Senhor Juiz do 3º Juízo daquele Tribunal de Execução de Penas admitiu o recurso por despacho de fls. 6 dos autos, com efeito suspensivo a partir do oitavo dia se até lá não fosse o mesmo decidido, tendo marcado a reunião do Conselho Técnico e a audição do recluso para o dia 23 de Setembro de 1992.
Após a audição do recluso, o Agente do Ministério Público suscitou verbalmente em audiência a questão da inconstitucionalidade das alíneas q) e r) do art. 132º do Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto (Lei Prisional), invocando que, sendo a evasão de presos tipificada como crime no Código Penal (art. 392º), a aplicação de uma sanção disciplinar implicaria um duplo julgamento do recluso pelo mesmo facto ilícito (veja-se despacho de fls.
21).
Por despacho de fls 18 e vº, proferido em 24 de Setembro do mesmo ano, o Senhor Juiz indeferiu o recurso, considerando a sanção disciplinar aplicada adequada à culpa e personalidade do recluso e aos factos praticados, pois, para além de o abandono voluntário do local de trabalho e da fuga constituir crime de evasão, utilizou nessa fuga um veículo de uma câmara municipal, conduzindo-o sem estar habilitado com a necessária licença de condução, criando um alto risco nessa condução. Nada referiu sobre a questão de inconstitucionalidade.
O Agente do Ministério Público veio, através de requerimento apresentado em 25 de Setembro, pedir que fossem julgadas inconstitucionais as normas constantes das alíneas q) e r) do art. 132º da Lei Prisional, sustentando que 'a aplicação de sanção disciplinar implica um duplo julgamento do mesmo crime, cuja instrução cabe a um juiz próprio, presumindo-se o arguido inocente até ao trânsito em julgado da condenação, pelo que aquelas disposições legais contrariam o disposto nos artigos 29º nº 5 e 32º nºs 2 e 4 da Constituição da República Portuguesa' (a fls. 20).
Sobre este requerimento recaiu o despacho de fls 21, proferido nesse mesmo dia:
'Na decisão de fls. 18 não foi acolhida a posição da inconstitucionalidade alegada verbalmente pelo Mº Pº por se entender não haver qualquer violação da Constituição - trata-se de interesses jurídicos distintos, sendo que o ilícito disciplinar tem autonomia relativamente ao ilícito criminal.
Por isso, esta posição agora expressa por escrito pelo Mº Pº em nada vem alterar o decidido, que se mantém.
Notifique.'
2. Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Agente do Ministério Público, ao abrigo do art. 70º, nº 1, alínea b), da lei deste Tribunal, invocando que a inconstitucionalidade suscitada teria influenciado', pelo menos, a dosimetria da sanção aplicada'.
O recurso de constitucionalidade foi admitido por despacho de fls. 23., tendo sido nomeada defensora oficiosa ao recluso.
3. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional.
Apenas apresentou alegações o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, onde formulou as seguintes conclusões:
'1º As garantias do processo criminal, constantes dos nºs 2 e 4 do artigo 32º da Constituição, não são directamente aplicáveis ao processo disciplinar, limitando-se, quanto a este, a Constituição a prescrever que são garantidas ao arguido a sua audiência e defesa (artigo 269º, nº 3).
2º Radicando as responsabilidades criminal e disciplinar no violação de bens jurídicos de diferente natureza, há concurso real de infracções sempre que o mesmo comportamento do arguido preencha simultaneamente aquelas duas ordens normativas; pelo que não viola o princípio «non bis in idem», proclamado pelo nº
5 do artigo 29º da Lei Fundamental, a possibilidade de apreciação autónoma da responsabilidade disciplinar - mesmo antes de decidido o processo penal - e a sucessiva imposição ao arguido de sanções de natureza diversa'. (a fls. 35-36)
Sustentou, em consequência, que devia ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
4. Foram corridos os vistos legais.
Por não haver motivos que a tal obstem, cumpre apreciar o objecto do recurso e decidir.
II
5. O crime de evasão de recluso condenado por sentença passada em julgado achava-se previsto no art. 196º do Código Penal de
1886. No caso de evasão de recluso condenado por sentença transitada em julgado e sem que tivesse cumprido a pena, seria prolongada a pena da sentença pelo dobro do tempo em que andasse fugido, muito embora o aumento de duração da pena de prisão não pudesse, em caso algum, exceder a metade do tempo da mesma pena. Tratando-se de pena mista, o aumento seria calculado somente em relação à espécie de pena que o condenado estivesse a cumprir, no momento da evasão.
Na fase final da vigência do Código Penal de 1886, foi publicado o Decreto-Lei nº 265/79, de 1 de Agosto (entretanto alterado pelos Decretos-Leis nºs 49/80, de 22 de Março, e 414/85, de 18 de Outubro) que contém a nova Lei Prisional, revogando a Reforma Prisional de 1936. Na tradição da legislação penitenciária portuguesa, regula-se a matéria das infracções disciplinares e das respectivas medidas sancionatórias. Tal responsabilidade disciplinar do recluso pode cumular-se com a responsabilidade penal, se a infracção culposa dos deveres impostos ao recluso constituir igualmente crime
(art. 128º, nº 3, do Decreto-Lei nº 265/79).
De harmonia com o art. 132º da Lei Prisional, as medidas disciplinares são aplicadas, sem prejuízo do disposto no art. 128º do mesmo diploma, de uma forma geral:
'... a todos os reclusos cuja conduta contrarie a ordem e a disciplina do estabelecimento e os fins tidos em vista na execução da medida privativa de liberdade, bem a reclusos que sejam declarados responsáveis, nomeadamente por:
-------------------------------------------
q) Evasão;
r) Factos previstos na lei como crime.'
As medidas sancionatórias de natureza disciplinar vão desde a repreensão ao internamento em cela disciplinar até um mês (art. 133º) e são aplicadas pelo director do estabelecimento (art. 136º). No caso de se tratar de medida de internamento em cela disciplinar por tempo superior a oito dias, existe recurso a interpor para o juiz do tribunal de execução de penas (arts.
143º a 148º da Lei Prisional).
O Código Penal de 1982 continuou a criminalizar a evasão de reclusos no seu artigo 392º, tornando claro que se trata de um crime autónomo punível com pena de prisão, variável em função do tipo de execução da pena ou do estabelecimento prisional (em regime fechado, em estabelecimento com funcionamento aberto ou em sistema de segurança média) ou do modo como foi cometido o acto de evasão. Neste crime, a tentativa é punível (art. 392º, nº 7).
6. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido considerou que violava a Constituição a aplicação cumulativa de sanções de natureza criminal e disciplinar ao recluso, por força do facto da evasão por ele cometida, afirmando que as normas das alíneas q) e r) do art.
132º da Lei Prisional violariam o princípio constitucional de non bis in idem
(art. 29º, nº 5, da Constituição) e o disposto nos nºs 2 e 4 do art. 32º da Lei Fundamental.
Não se sufragam as razões apresentadas para o juízo de inconstitucionalidade, devendo acentuar-se que se concorda com a posição sustentada pelo Exmo Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, de que não ocorre qualquer vício de inconstitucionalidade.
7. De facto, não se confundem o ilícito criminal e o ilícito disciplinar previsto no direito penitenciário. Como se escreve nas alegações da entidade recorrente:
'É, de um modo geral, considerado como ponto assente e inquestionado a autonomia do direito e processo disciplinar relativamente ao direito e processo penais, considerando-se que visam a tutela de interesses ou bens jurídicos distintos, assumindo as sanções impostas num ou noutro ramo do ordenamento jurídico âmbito e natureza diversas (neste sentido, veja-se o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, no processo nº 101/87, in Diário da República, II Série, de 29/4/88).
Na verdade, o direito disciplinar não tutela - ao contrário do direito penal - interesses gerais e fundamentais da comunidade, mas a especial fidelidade, zelo e eficácia no cumprimento de deveres por alguém que se encontra inserido no âmbito de um serviço administrativo: ou seja, a sanção disciplinar aparece sempre ligada às específicas necessidades e interesse do serviço público'. (a fls. 29 dos autos)
Eduardo Correia acentua igualmente que o ilícito disciplinar é 'eticamente fundado, na medida em que protege valores de obediência e disciplina, em face de certas pessoas que estão ligadas a um especial dever perante outras, no quadro de um serviço público', afirmando que o serviço público 'pode, antes de tudo, integrar-se no quadro geral de valores que ao Estado cumpre defender, caso em que a lesão ou o pôr em perigo desses valores, pelo mau funcionamento do serviço, constituirá um ilícito criminal (v. g. os crimes de concussão, peculato, etc.)'. Mas, a par desta reacção criminal face a actos ilícitos tipificados como crimes, 'o serviço público pode também - considerados os especiais fins que visa realizar - ver-se em si próprio, como unidade funcional que exige uma certa disciplina para o seu perfeito funcionamento. A violação desta disciplina constituirá então o ilícito disciplinar e as penas que dele derivam serão penas disciplinares.' (Direito Criminal, vol. I, Coimbra, 1968, reimpressão, com a colaboração de Figueiredo Dias, págs. 35-36).
Ora, se existe um ilícito criminal distinto de um ilícito disciplinar quanto aos funcionários públicos ou, mais latamente, quanto aos agentes administrativos - vinculados ao Estado ou a outras entidades de natureza pública no âmbito de um vínculo de emprego público - não há razões que impeçam a coexistência de ilícitos criminais distintos de ilícitos disciplinares, no que toca aos reclusos que se acham detidos num estabelecimento prisional, em situação de prisão preventiva ou em cumprimento de uma pena detentiva determinada por decisão judicial transitada em julgado. A par do direito criminal, o direito disciplinar de natureza penitenciária configura-se como uma modalidade do direito disciplinar administrativo, sendo, por isso, um direito sancionatório público. Como se escreveu no citado Parecer nº 123/87, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República:
'Desta autonomia e independência dos direitos disciplinar e criminal [...],
«decorre como natural corolário que a valoração da mesma conduta pode ser feita e sancionada concomitantemente no âmbito respectivo sem que isso envolva violação do princípio non bis in idem, que só funciona no âmbito de cada específico ordenamento punitivo, e ainda que, no caso de excepcionalmente a tutela penal, por mais ampla, abranger também o domínio disciplinar [...], pode este actuar, e deve até, em caso de aquela tutela não se ter concretamente efectivado ou, apenas, se mostrar insuficiente.»' (in Colectânea dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República - Ano de 1988, Coimbra, 1991, pág. 501; a transcrição aí feita provém do Parecer nº 163/82, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 328, pág. 245)
Na situação de cumprimento da pena privativa de liberdade, o recluso é o sujeito da execução da pena, decorrendo dessa ideia a
'consideração dos princípios de necessidade, de participação, responsabilidade e co-responsabilidade'. Tal ideia-base ilumina, no dizer de Eduardo Correia,
'todas as fases do processo de tratamento até ao momento da libertação'.
(Direito Criminal - III (1), lições em colaboração com Anabela Miranda Rodrigues e António M. de Almeida Costa, Coimbra, 1980, pág. 127). Ora, a comunidade prisional pressupõe um regime disciplinar próprio, com finalidades específicas, visando, relativamente a cada um dos reclusos, assegurar o preenchimento de uma finalidade recuperadora, prévia à plena reinserção social do recluso, recuperação que se alcança fundamentalmente pela prestação de trabalho e integral inserção na vida comunitária prisional.
Não se vê, assim, que existam razões de ordem constitucional que impeçam a aplicação de sanções de diversa natureza, disciplinar e criminal, relativamente à mesma conduta de um recluso, no caso a evasão de um estabelecimento prisional. Também quanto a outros direitos sancionatórios públicos, podem as mesmas condutas ser sancionadas no âmbito de cada um deles, sem que se fale de violação do princípio non bis in idem
(veja-se, quanto ao ilícito de mera ordenação social, o disposto no art. 38º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro; e quanto ao ilícito disciplinar no
âmbito de função pública, o disposto no art. 8º do respectivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro)
Trata-se, nestes casos, de convergências ou concursos de normas sancionadoras de natureza diversa (no caso, normas penais e disciplinares), situação que é bem conhecida dos diferentes ordenamentos jurídicos e se acha bem estudada pela Teoria Geral do Direito. Tratando-se de concursos de normas sancionadoras de diferente natureza, parece intuitivo que não pode dar-se prevalência a uma sobre a outra, na ausência de norma que disponha nesse sentido.
8. O que acaba de dizer-se, mostra que é descabido sustentar que haja, no caso sub judicio, uma violação do princípio constitucional de non bis in idem. Bastará referir, desde logo e em abono desta afirmação, que não se vê por que razão teria de se considerar que a norma sancionadora administrativa já aplicada haveria de ceder perante a norma penal incriminadora que ainda não foi aplicada pelo juiz penal, ou que a aplicação daquela ficasse dependente de uma prévia declaração de responsabilidade penal.
O nº 5 do art. 29º da Constituição proíbe o julgamento de alguém 'mais do que uma vez pela prática do mesmo crime'. Esta norma traduz um princípio garantístico clássico, sendo para a tarefa de
«densificação semântica» do mesmo 'particularmente importante a clarificação do sentido da expressão «prática do mesmo crime», que tem de obter-se recorrendo aos conceitos jurídico-processuais e jurídico-materiais desenvolvidos pela doutrina e processo penais'. (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. rev., Coimbra, 1993, pág. 194). De facto, e como chamam a atenção estes constitucionalistas, há casos regulados no direito penal que suscitam muitas dificuldades no que toca à observância deste princípio constitucional (casos de comparticipação, de concursos de crimes e de crime continuado - arts. 28º e seguintes do Código Penal). Mas é evidente que a problemática do princípio de non bis in idem se põe relativamente a cada direito sancionatório, sendo certo que só no plano do direito criminal o princípio tem expressa consagração constitucional. Poder-se-á sustentar, é claro, que o princípio é aplicável também por analogia nos outros direitos sancionatórios públicos, no âmbito interno respectivo.
Situação diversa é a da convergência ou concurso real de normas de diferente natureza que sancionam o mesmo facto, dando origem a um concurso real de infracções. Neste caso, não há que falar em princípio de non bis in idem, muito embora o legislador possa dar relevância a tal concurso (é o que sucede, por exemplo, com o art. 20º do Decreto-Lei nº 433/82, de 27 de Outubro, no caso de concurso de crime e de contra-ordenação).
No caso apreciado nos autos, o recluso terá cometido um crime de evasão, previsto no Código Penal (art. 392º), e, paralelamente, a sua conduta (que se traduziu no afastamento não autorizado do lugar onde se achava a trabalhar com a intenção de fuga do estabelecimento prisional) constituiu facto disciplinar ilícito. A aplicação, por acto administrativo do director do estabelecimento prisional, de uma certa sanção disciplinar não impede a sujeição do recluso à responsabilidade criminal. É que, tratando-se de actos ilícitos de diferente natureza, sancionados com penas diferentes, apreciados em processos diversos por autoridades diferentes (num caso, um funcionário público; no outro, um juiz penal) não pode falar-se de um duplo julgamento, não havendo o risco de se conseguir nem uma condenação penal de quem já haja sido definitivamente absolvido pela prática do acto ilícito, nem uma nova aplicação de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo acto ilícito. De facto, trata-se de responsabilidades diversas e autónomas que tutelam bens jurídicos perfeitamente distintos, podendo o agente ser censurado pelo seu comportamento em dois planos diversos, o penal e o disciplinar, sem ofensa de qualquer princípio constitucional.
O que acaba de dizer-se pressupõe, como é óbvio, que as sanções aplicadas sejam de diferente natureza, pois, de outro modo, poderia sustentar-se que se tratava de uma dupla penalização criminal, não obstante as diferentes qualificações formais das leis em presença. Ora, não restam dúvidas de que o internamento do recluso durante trinta dias em cela disciplinar não é uma sanção penal (de harmonia com os arts. 40º e seguintes do Código Penal, tal sanção não pode reconduzir-se a nenhuma das sanções principais ou acessórias tipificadas na lei). Trata-se de uma forma de isolamento temporário do recluso, que fica afastado do convívio com outros reclusos nas ocupações diárias (tomada de refeições, prestação de trabalho, tempos de recreio e de descanso, etc.) e que se configura, por isso, como uma típica sanção disciplinar, análoga às sanções suspensivas que surgem no direito disciplinar aplicável na função pública ou a certos utentes dos serviços públicos, e que se traduz aqui num carácter mais gravoso da forma de execução de uma pena criminal privativa de liberdade do recluso.
Por estas razões, conclui-se que as normas das alíneas q) e r) do art. 132º do Decreto-Lei nº 265/79, tal como foram interpretadas pela decisão recorrida, não violam o art. 29º, nº 5, da Constituição.
9. Tão-pouco se pode aceitar que as referidas normas da Lei Prisional violem os nºs 2 e 4 do art. 32º da Constituição.
Na verdade, tratando-se de uma responsabilidade disciplinar sancionada através de um processo administrativo, não estão as disposições que regulam tal responsabilidade e o respectivo processo sancionador subordinadas às normas constitucionais aplicáveis ao processo penal e que são indicadas pelo Agente do Ministério Público junto do tribunal recorrido.
No que toca à responsabilidade disciplinar, a aplicação da sanção pode ser independente do julgamento do recluso pelo crime de evasão. Só quanto à sujeição deste à lei penal, é que a Constituição impõe a presunção de inocência do arguido (bem como o dever de julgamento no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa). Apenas no que se refere à responsabilidade penal, é que a Constituição impõe que o processo penal tenha a fase de instrução atribuída à competência de um juiz.
A Constituição estabelece, em matéria de processo disciplinar a propósito do regime da função pública, a garantia de audiência e defesa ao arguido (art. 269º, nº 3). Esta norma constitucional é um afloramento de um princípio geral do direito disciplinar público, aplicável aos sujeitos que se encontrem em outras relações especiais com os entes públicos (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição cit., págs. 947-948). Mas mesmo que se entenda que estas garantias mínimas - de audiência e defesa do arguido - não esgotam os direitos dos arguidos em processo disciplinar de natureza pública e que lhe são aplicáveis 'regras ou princípios de defesa constitucionalmente estabelecidos para o processo penal, designadamente as garantias de legalidade, o direito à assistência de um defensor (CRP, art. 32º, nº 5), o direito de consulta do processo (...)' (Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág.
947), a verdade é que o Agente do Ministério Público junto do Tribunal recorrido partiu da ideia de que só podia haver uma responsabilidade em que incorreria o recluso pelo facto de se ter evadido, a responsabilidade criminal, pelo que não poderia ser 'antecipada' a pena disciplinar, dados o princípio constitucional de presunção de inocência do arguido e a regra que estabelece a necessidade de a instrução no processo penal dever ser assegurada por um juiz. Ou, pelo menos, que, a subsistirem as duas responsabilidades, a responsabilidade penal teria natureza prejudicial, relativamente à disciplinar, (acrescente-se que a formulação literal da parte final do corpo do art. 132º da Lei Prisional parece apontar para tal prejudicialidade, mas tal interpretação não foi perfilhada pelo tribunal recorrido e não pode ser sindicada pelo Tribunal Constitucional).
Posta em causa esta tese da responsabilidade única ou prevalecente - tese que pode, claro, ser sustentada num plano de direito a constituir, mas não se compadece com o concurso das normas previstas na Lei Prisional e no Código Penal - torna-se indefensável a tese de violação dos nºs 2 e 4 do art. 32º da Constituição.
Como demonstra o Exmo Procurador-Geral Adjunto nas suas alegações, o direito de audiência e defesa do recluso, arguido no processo disciplinar pela evasão consumada, acha-se manifestamente garantido no Decreto-Lei nº 265/79, 'tendo em conta o estatuído nos artigos 131º e 143º acerca do processo disciplinar, sendo certo que o regime aí previsto se concilia perfeitamente, quer com o disposto no referido artigo 269º, nº 3, quer com os direitos e garantias dos administrados, enunciados no artigo 268º da Constituição' (a fls. 30 dos autos). De facto, a Lei Prisional impõe a informação prévia do arguido da infracção que lhe é imputada, estabelece que deve ser ouvido, por escrito, pelo director do estabelecimento prisional (art.
131º, nºs 1 e 2), estatui que a decisão que impõe a sanção disciplinar deve ser fundamentada e tem de ser notificada ao arguido (art. 131º, nº 5) e que, quando tal sanção seja mais grave, existe um recurso da decisão administrativa para o tribunal de execução de penas, sendo aí igualmente assegurada a audiência do recorrente (arts. 143º, 145º, nº 2, e 146º do Decreto-Lei nº 265/79).
Não ocorre, por isso, qualquer violação dos nºs 2 e 4 do art. 32º da Constituição pelas normas objecto de recurso.
III
10. Nestes termos e pelas razões expostas, decide o Tribunal Constitucional negar provimento ao recurso e confirmar, em consequência, o despacho recorrido.
Lisboa,23 de Março de 1994
Armindo Ribeiro Mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Vítor Nunes de Almeida
José Manuel Cardoso da Costa