Imprimir acórdão
Processo nº 441/91
2ª Secção Relator: Cons. Luís Nunes de Almeida
Acordam em conferência no Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO
1. Em acção declarativa emergente de contrato individual de trabalho, intentada por A. contra B.., o Tribunal do Trabalho de Matosinhos, por sentença de 11 de Março de 1991, condenou a ré a pagar ao autor a importância de 176.996$00, acrescida dos juros legais a partir da data da citação.
A ré recorreu para o Tribunal de Relação do Porto, apesar de o disposto no artigo 74º, nº 4, do Código de Processo do Trabalho lhe vedar tal recurso por o valor da causa ser inferior à alçada do tribunal de primeira instância: no respectivo requerimento, invocou que tal norma era inconstitucional, violando o artigo 20º, nº 1, da Constituição. E, como o requerimento de interposição de recurso foi indeferido, reclamou para o Presidente daquele tribunal superior. Mas este negou-lhe provimento à reclamação, por despacho de 5 de Junho de 1991.
2. Recorreu então deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro. Aqui, o recurso foi admitido, e foram produzidas alegações. Segundo a recorrente, a norma do artigo 74º, nº 4, do Código de Processo de Trabalho 'padece de inconstitucionalidade material, por violação do artigo 20º, nº 1, da C.R., e na medida em que limita o acesso ao direito e aos tribunais, quando recusa o direito ao recurso nas acções proferidas em causas de valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre'. O recorrido, por sua vez, opõe que aquela disposição processual não é inconstitucional, já que 'do artigo 20º, nº 1, citado, não decorre necessariamente que qualquer questão possa ser objecto de recurso para todas as instâncias judiciárias, sob pena de o julgamento das grandes causas ficar seriamente prejudicado com as de somenos relevância'.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
II - FUNDAMENTOS
3. A questão em apreço, incidindo sobre o disposto no artigo 74º, nº 4, do Código de Processo de Trabalho, é semelhante a outras que já foram colocadas a este Tribunal a propósito do artigo 678º, nº 1, do Código de Processo Civil. Num como noutro caso, trata-se de saber se é inconstitucional uma norma que limita as possibilidades de recurso em matéria não criminal, em função do valor da causa. Dispõe, efectivamente o artigo 74º, nº 4 do Código de Processo do Trabalho:
4. Só admitem recurso as decisões proferidas nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e naquelas para as quais a lei determina expressamente não haver alçada.
4. Ora, quanto à disposição análoga do Código de Processo Civil, este Tribunal tem decidido uniformemente não se verificar qualquer inconstitucionalidade; e no presente caso não foram apresentadas razões que levem a alterar tal orientação jurisprudencial, constante do Acórdão nº
163/90 (Diário da República, II série, de 18 de Outubro de 1991), do Acórdão nº
210/92 (Diário da República, II série, de 12 de Setembro de 1992) e do Acórdão nº 346/92, ainda inédito.
Vejamos porquê.
5. O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos 'o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos'.
Esse direito é o direito a ver solucionados os conflitos, segundo o direito estabelecido, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e perante o qual as partes se encontram em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Tal direito de acesso aos tribunais, ao fim e ao cabo, é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legítimos.
Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso, nem em matéria administrativa, nem em matéria civil, nem sequer em matéria penal. Assim, apenas se pode entender que a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa previstas no artigo 32º.
Para além disso, há quem venha também considerando como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso das decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito as declarações de voto dos Conselheiros VITAL MOREIRA e A. VITORINO, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Diário da República, II série, de 20 de Agosto de 1988, e no Acórdão nº 202/90, Diário da República, II série, de 21 de Janeiro de 1991).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.
Na verdade, este Tribunal Constitucional tem entendido, e continua a entender, com A. RIBEIRO MENDES (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o S.T.J. no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigos 214º e 215º), terá de admitir-se que 'o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos' (cf., a este propósito, Acórdão nº 31/87, Diário da República, II série, de 1 de Abril de 1987, e Acórdão nº 340/90, Diário da República, II série, de 19 de Março de 1991).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões
(cf. Acórdão nº 31/87, cit., Acórdão nº 65/88, cit., e Acórdão nº 178/88, Diário da República, II série, de 30 de Novembro de 1988; sobre o direito à tutela jurisdicional, v. ainda Acórdão nº 359/86, Diário da República, II série, de 11 de Abril de 1987, Acórdão nº 24/88, Diário da República, II série, de 13 de Abril de 1988, e Acórdão nº 450/89, Diário da República, II série, de 29 de Janeiro de 1990).
O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afectar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.
Portanto, o artigo 74º nº 4, do Código de Processo do Trabalho, ao condicionar o recurso das decisões judiciais, em matéria laboral, ao valor da causa, não viola aqui o direito de acesso aos tribunais afirmado no artigo 20º, nº 1, da Constituição.
6. Assim, e em conclusão, a disposição em apreço do artigo 74º, nº 4, do Código de Processo do Trabalho não é inconstitucional.
III - DECISÃO
Face ao exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo
74º, nº 4º, do Código de Processo do Trabalho.
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 16 de Março de 1993
Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento Fernando Alves Correia Mário de Brito Bravo Serra José Manuel Cardoso da Costa