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Procº nº 609/92.
2ª Secção. Relator:- Consº BRAVO SERRA.
I
1. A A., por despacho proferido em 7 de Março de 1992 pelo Senhor Juiz do Tribunal de Círculo de Alcobaça, foi pronunciada pela prática de determinados factos que foram subsumidos à autoria de um crime continuado de falsificação previsto e punível pelos artigos 233º, nº 1, 30º, nº
2, e 78º, nº 5, todos do Código Penal, sendo que nesse mesmo despacho foi determinado que a arguida aguardasse o realizando julgamento mediante a prestação de termo de identidade e residência, visto que se tornava desnecessária a prestação de caução.
2. Notificada de tal despacho, a A., por intermédio do seu Ilustre Advogado, fez apresentar no dito Tribunal de Círculo requerimento através do qual manifestou a sua intenção de recorrer do mesmo, requerimento esse que se transcreve, na parte que ora releva:
'.............................................
A., já identificada nos autos e neles arguida, não se conformando com o despacho de pronúncia, vem dele interpor recurso penal para o Tribunal da Relação de Coimbra.
.............................................'
3. O Senhor Juiz, perante tal requerimento, em 14 de Maio de 1992 exarou o seguinte despacho:
' A Ré não está presa nem caucionada pelo que não pode recorrer - artigo 371º do C.P.P. de 1929 - , razão por que não admito o recurso.
.............................................'
4. Após ter sido notificada do transcrito despacho que não admitiu o recurso tentado interpor, a A. atravessou nos autos um requerimento com o seguinte teor:
'.............................................
A., já identificada nos autos, vem arguir a nulidade do despacho que não admite o recurso do despacho de pronúncia, porquanto:
a) é princípio geral de direito aquele segundo o qual iura novit curia, ou seja, o de que o direito é de conhecimento oficioso. Ora,
b) se é certo que a letra do preceito invocado para o não recebimento do recurso é no sentido do entendimento perfilhado pelo Mmo. Juiz, menos certo não é que a norma invocada é inconstitucional, e, na verdade, materialmente inconstitucional; efectivamente,
c) preceitua o art. 13º, nº 1 da Constituição da República a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Ora,
d) o referido preceito do Código de 29, ao permitir recurso do despacho de pronúncia apenas àqueles que estejam caucionados ou presos, está, de forma injustificada e desproporcionada, a tornar uns cidadãos - permita-se a forma de expressão propositadamente caricatural - mais iguais do que outros. Na verdade,
e) não há razão séria que possa valida- mente justificar o conteúdo de tal norma, a qual tem por escopo, quando o recurso é interposto pelo Réu, evitar ou tentar evitar que este seja submetido ao vexame e ao labéu que um julgamento penal sempre coenvolve, qualquer que venha a ser a decisão final. Ademais,
f) adentro da mesma forma de processo, tal solução é ainda mais injustificada, sendo ainda certo que, mesmo ao nível do direito legislado o art.
371º do C. P. Penal parece ter sido revogado - justamente para expurgar a inconstitucionalidade acima surpreendida - pelo disposto no art. 21º do Dec. Lei
605/75. A terminar:
g) na sequência do acima exposto, a referida nulidade é enquadrável no disposto na 1ª parte da alínea d) do art. 668º, nº 1 C.P. Civil - nulidade por omissão de pronúncia - aplicável aos despachos ex vi art. 666º nº 3 deste diploma, disciplina extensiva ao proces- so penal por força do comando do parágrafo único do art. 1º do Código de Processo Penal de 1929.
Termos em que se requer se digne Vª. Exa., deferindo a arguição de nulidade, dê sem efeito o despacho em questão, admitindo, pelas referidas razões o recurso do despacho de pronúncia.
.............................................' .
5. Por despacho de 1 de Junho de 1992 e lavrado a fls.
343 dos autos, foi indeferido o requerimento através do qual foi arguida a nulidade do despacho de 14 de Maio do mesmo ano, dizendo-se aí, a dado passo:
'.......................................
Seria fastidioso para o juiz e para os destinatários das suas decisões que ele fizesse um juízo explícito sobre a constitu- cionalidade de certa norma que aplica, como fastidioso seria para a parte fazer outro tanto sobre cada norma que invoca.
As mais das vezes o juízo é implícito donde resulta que se o juiz aplica uma norma é porque a considera constitucional.
Não havendo qualquer norma que imponha aquele juízo explícito já se vê que não foi cometida a nulidade arguida.
.............................................'
6. Este despacho levou a arguida a produzir nos autos um requerimento contendo a explicitação da sua vontade de dele recorrer para o Tribunal Constitucional, requerimento esse que reza assim:
'.............................................
A., não se conformando com o despacho de fls. 343, vem dele interpor recurso, nos termos dos artigos 69º e ss da Lei 28/82, de 15-11, para o Tribunal Constitucional.
Efectivamente, tal recurso é interposto por se cuidar que se aplicou a norma do art. 371º do C. P. Penal de 1929, cuja inconstitucionalidade foi suscitada no requerimento que deu origem ao despacho recorrido - art. 70º, nº 1, alínea b) da referida Lei. De facto, o Mmo. Juiz, pese embora a arguição de inconstitu- cionalidade de tal norma - salvo o devido respeito, de resto, absolutamente evidente - pronunciou-se pela respectiva não inconstitucionalidade ao escrever no despacho recorrido: 'As mais das vezes o juízo é implícito donde resulta que se o Juiz aplica uma norma é porque a considera constitucional'. Logo, implicitamente - já que não há qualquer norma que imponha aquele juízo explícito, como bem acentua o Mmº. Juiz - a norma em questão foi julgada conforme à Constituição da República. E assim - art. 75º-A da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional - considera-se que foi violado o princípio da igualdade dos cidadãos perante a Lei, precipitado no art. 13º da Constituição da República, sendo a inconstitucionalidade do referido artigo 371º do C. P. Penal de 1929 suscitada no requerimento no qual se arguiu a nulidade do despacho que não recebeu o recurso do despacho de pronúncia.
Finalmente, nos termos da norma residual do art. 78º, nº 4 da referida Lei, o presente recurso deve ser admitido a subir nos autos e com efeito suspensivo, dado ser manifesto que a situação não é recoberta pelas hipóteses dos números 1, 2 e 3 do mencionado art. 78º.
.............................................'
7. O Senhor Juiz, em 24 de Junho de 1992, lavrou despacho por intermédio do qual não recebeu o recurso pretendido interpor para este Tribunal, por isso que, em suma, entendeu que, havendo recurso dos despachos que desatendem as nulidades suscitadas, então, no caso, e dado que do despacho de fls. 343 não foi interposto recurso para a Relação, não estava previsto o condicionalismo prescrito nos números 2 e 3 do artº 70º da Lei nº
28/82.
8. Apresentou então a A. reclamação para o Tribunal Constitucional, tendo o Senhor Juiz, perante tal reclamação e por despacho de 7 de Julho de 1992, após reconhecer que, contrariamente àquilo que anteriormente entendeu, dos despachos que desatendem as arguições de nulidade não há recurso ordinário, admitiu o recurso dirigido para este Tribunal.
9. O Relator, porque entendeu, não obstante o decidido pelo despacho de 7 de Julho de 1992, que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional não deveria ser recebido, efectuou a exposição prévia de fls. 365 a 373, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e na qual se propugnava pelo não conhecimento daquele recurso.
10. Notificados a recorrente e o Ex.mo Representante do Ministério Público para se pronunciarem, querendo, nos termos e para os efeitos do disposto da última parte do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, veio a primeira defender que a mencionada exposição prévia estava repassada 'do mais extrénue formalismo', no acompanhamento da 'conhecida tendência da jurisprudência mais recente do Tribunal Constitucional para interpretar à letra, e, na verdade, a outrance, as normas que possam privilegiar uma decisão de forma - inadmissibilidade do recurso - em detrimento de uma decisão de fundo' (sic), afigurando-se-lhe que nessa exposição não se atentou no disposto nos números 2 e 3 do artº 670º do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do que se consagra no § único do artº 1º do Código de Processo Penal de 1929, e isso porque, no que ao requerimento de rectificação da sentença tange, tanto se deve ter em vista os pedidos de aclaração ou de suscitação de reforma, como as invocações de vícios formais-substanciais susceptíveis de integrarem o conceito de nulidades daquela peça processual. A ser assim, defende a recorrente, no caso sub specie, o despacho proferido sobre o requerimento suscitador de nulidade daqueloutro que não admitiu o recurso pretendido interpor para o Tribunal da Relação de Coimbra não pode deixar de fazer parte integrante do primeiro ou, ao menos, tem este como pressuposto lógico, pelo que deveria o Tribunal Constitucional tomar conhecimento do recurso.
10.1. Por sua banda, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto que aqui exerce funções, veio manifestar a sua inteira concordância com o teor da citada exposição prévia, aduzindo, para além do que na mesma se argumentou, que:
mesmo que se perfilhasse o entendimento segundo o qual o nº 2 do artº 670º do C.P.C., ao falar em «requerimento de rectificação», abrangia, para além dos casos de rectificação de erros materiais, a rectificação de vícios formais-substanciais comportadores de arguição de nulidades, de todo o modo sempre haveria que reconhecer que unicamente a decisão que deferisse o requerimento consubstanciador da rectificação é que se podia considerar complemento e parte integrante da decisão rectificanda, o que, claramente, não era a hipótese sub judice, já que o despacho proferido sobre o pedido de aclaração foi no sentido do seu indeferimento;
se a recorrente desejasse que o Tribunal Constitucional apreciasse a questão da conformidade constitucional do artº 371º do C.P.P. de
1929, deveria, do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, reclamar para o Presidente deste Tribunal de 2ª Instância, suscitando, na reclamação, aquela questão;
no entanto, o que foi objecto de impugnação foi uma decisão que não fez aplicação da norma ínsita no referido artº 371º, mas sim, e só, da alínea d), primeira parte, do nº 1 do artº 668º do Código de Processo Civil, pelo que não se deve tomar conhecimento do presente recurso, não constituindo esta postura um 'qualquer 'estrénue formalismo'.
Cumpre decidir.
II
1. O essencial da argumentação carreada na exposição prévia do relator tem a concordância do Tribunal.
Na verdade, o despacho recorrido não aplicou a norma cuja compatibilidade constitucional a recorrente pretendia que este órgão de administração de justiça apreciasse. A norma que, efectivamente, foi suporte da decisão ali ínsita, é a que se contém na alínea d) do nº 1 do artº 668º do C.P.C., cuja conformidade constitucional não foi, vez alguma, questionada nestes autos.
2. De outro lado, a razão invocada pela recorrente na resposta apresentada nos termos da parte final do nº 1 do artº 78º-A da Lei nº
28/82, no concernente a se dever considerar o despacho censurado como fazendo parte integrante do despacho que não admitiu o recurso intentado interpor para a Relação de Coimbra, igualmente não releva, na óptica deste Tribunal.
De facto, como salienta o Ex.mo Magistrado do Ministério Público, isso só poderia ser assim (e a aceitar-se a interpretação do nº 2 do artº 670º do C.P.C. como comportando a possibilidade de dedução de rectificação de vícios formais e/ou substanciais que possam acarretar a nulidade da decisão rectificanda - questão da qual se pode legitimamente duvidar mas que, para o presente caso, não interessa dilucidar) nas hipóteses em que a decisão proferida após a suscitação da rectificação fosse no sentido de a deferir.
Ora, nestes autos, o que se passou foi que o despacho de
1 de Junho de 1992 não veio a acolher a suscitação de nulidade do despacho de 14 de Maio do mesmo ano.
De onde nunca se poder falar na integração do segundo pelo primeiro dos citados despachos.
3. A tudo isto adite-se que a inconstitucionalidade do artigo 371º do Código de Processo Penal de 1929 não foi suscitada antes da prolação do despacho de 14 de Maio de 1992, como o exigiria a alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 e a alínea b) do nº 1 do artigo 280º da Constituição.
III
Perante o exposto, o Tribunal decide não tomar conhecimento do recurso, condenando a recorrente nas custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em cinco unidades de conta.
Lisboa, 2 de Março de 1993
Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Messias Bento Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa