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Proc. nº 146/93 Rel. Cons. Ribeiro Mendes
(Vítor N. de Almeida)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. O Tribunal de Trabalho de Leiria enviou em 8 de Fevereiro de 1993 ao Tribunal Judicial de Alcobaça deprecada para penhora de bens ao executado A., com sede em --------------, -------------, e notificação da mesma desse acto de penhora.
O senhor Juiz do Tribunal Judicial de Alcobaça lavrou despacho em que julgou esse Tribunal incompetente em razão da matéria para os actos deprecados, considerando que o tribunal deprecante se havia baseado no nº
1 do art. 26º do Código do Processo de Trabalho, na redacção introduzida pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, sem atentar em que o Tribunal Constitucional havia julgado já a norma em causa organicamente inconstitucional (Acórdão nº 139/92, publicado no Diário da República, II Série, nº 192, de 21 de Agosto de 1992). Ora, verificando-se tal inconstitucionalidade, não podia o tribunal deprecado fazer outra coisa senão aplicar a anterior redacção do artigo em causa, a qual, conjugada com o disposto no Decreto-Lei nº
214/88, de 17 de Junho (Regulamento da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais), conferia competência a tribunal diverso do deprecado. Notificado deste despacho, dele interpôs recurso de constitucionalidade o Agente do Ministério Público da comarca de Alcobaça. O recurso foi admitido por despacho de fls. 6.
2. Subiram os autos ao Tribunal Constitucional, nele tendo apresentado alegações a entidade recorrente, a qual formulou as seguintes conclusões.
'1º A norma constante do nº 1 do artigo 26º do Código de Processo de Trabalho,
é organicamente inconstitucional por incidir sobre matéria contida na reserva relativa de competência da Assembleia da República e ter sido editado pelo Governo sem a necessária autorização legislativa (artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição da República);
2º Termos em que deve ser confirmada, na parte impugnada, a decisão recorrida'.
3. O relator entendeu dispensar os vistos, por haver já inúmeras decisões sobre esta norma e apresentou memorando.
Discutido o memorando, ocorreu mudança de relator, por não ter logrado vencimento a proposta constante daquele memorando.
4. Cumpre apreciar e decidir.
II
5. Constitui objecto do presente recurso a questão da inconstitucionalidade da norma do art. 26º, nº 1, do C.P.T. (Código de Processo do Trabalho), na redacção que lhe foi dada pelo art. 1º do Decreto-Lei nº
315/89, de 21 de Setembro.
Tal questão é idêntica à decidida pelo já citado Acórdão nº 139/92, tendo a mesma solução sido perfilhada noutros acórdãos da 1ª Secção do Tribunal, ainda inéditos (cfr. Acórdãos nºs 374/92, 375/92, 118/93,
119/93, 122/93, 128/93, 129/93, 130/93, 131/93 e 157/93).
Reafirma-se neste acórdão essa jurisprudência repetida, ainda que não unânime, remetendo-se para o que se escreveu no Acórdão nº 139/92:
'[...] Do preâmbulo [do Decreto-Lei nº 315/89, de 21 de Setembro, diploma que deu nova redacção ao art. 26º, nº 1, do C.P.T.] resulta que se aproveitou a oportunidade de fazer alterações pontuais a este diploma 'para esclarecer as dúvidas que têm surgido relativamente à questão da competência para o cumprimento de deprecadas, cujas diligências devem ter lugar em comarcas onde não haja tribunais de trabalho'.
A norma desaplicada no acórdão recorrido é a que consta do nº 1 da nova redacção daquele artigo. Passa aí a dispor-se:
'As citações e notificações que não devam ser feitas por via postal e quaisquer outras diligências, quando tenham de ser efectuadas em comarca diferente daquela em que o tribunal tem a sua sede, são solicitadas ao tribunal do trabalho sediado naquela comarca, se o houver, e, não o havendo, ao tribunal de competência genérica com sede naquela comarca ou ainda, em qualquer destes casos, à autoridade administrativa ou policial territorial competente'.
9. - O Decreto-Lei nº 315/89 foi publicado pelo Governo no uso da competência legislativa atribuída pela alínea a) do nº 1 do art. 201º da Constituição, isto é, no uso da competência de elaboração de 'decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República'. Porém, deve ter-se em conta que cabe na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República a elaboração de leis sobre 'organização e competência dos tribunais'
(1ª parte da alínea a) do nº 1 do art. 168º da Constituição).
O diploma de 1989, na parte em que altera o art. 26º, assume confessadamente natureza interpretativa, pretendendo determinar autenticamente o sentido da versão anterior do art. 26º do Código de Processo de Trabalho de 1981. Simplesmente, tal interpretação autêntica só poderia ser empreendida pela Assembleia da República ou pelo Governo autorizado por esta, se a matéria de competência dos tribunais constituir, toda ela, reserva relativa daquele órgão parlamentar. É que, como se escreveu no Acórdão nº 32/87 deste Tribunal:
'Basta considerar que, seja qual for a índole da lei interpretativa em causa, a interpretação autêntica, isto é, a fixação obrigatória (para todos os operadores jurídicos) do sentido de uma norma, feita pelo «legislador» - é algo que integra o próprio exercício da função normativa, e portanto, tratando-se de leis em sentido formal, da função legislativa (era neste sentido que nos velhos diplomas constitucionais portugueses se definia esta função como a de «fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las»). Assim, só tem legitimidade para tal interpretação - ou seja, para impor a injunção nesta contida - o próprio autor da norma interpretada, isto é, o órgão que detém competência para, ab initio, produzi-la. O que significa - necessária e obviamente - que, em se tratando de normas que versem sobre matéria da competência reservada da Assembleia da República, só esta ou o Governo por ela autorizado podem interpretá-las autenticamente'. (in Diário da República, II Série, nº 81, de 7 de Abril de 1987; a mesma doutrina foi reafirmada nos Acórdãos nºs 157/88 e
372/91, ambos publicados na 1ª Série do jornal oficial, nºs 171, de 26 de Julho de 1988, e nº 256, de 7 de Novembro de 1991, respectivamente).
Assim sendo, terá de se averiguar se as soluções inovatórias em matéria de competência dos tribunais cabem ou não na competência reservada da Assembleia da República, visto que, em caso de interpretação autêntica, existe por natureza inovação, uma vez que o legislador pretende ultrapassar, em regra, divergências interpretativas, fixando, em qualquer caso, sentido normativo que deve valer desde o início da vigência da norma interpretada (cfr. art. 13º, nº 1, do Código Civil). Tal carácter inovatório é, aliás, acentuado nas alegações do Exmo. Procurador-Geral Adjunto:
'Embora a norma em causa se arrogue a natureza de norma interpretativa, é irrecusável que a solução legislativa nela consagrada envolve alteração quer da competência material dos tribunais comuns quer da competência territorial dos tribunais de trabalho.
Enquanto, por força do art. 26º do Código de Processo de Trabalho, na sua versão originária, o tribunal competente para o cumprimento de deprecadas emanadas de processos do foro laboral era o tribunal competente em matéria de trabalho com jurisdição na área onde devesse ser praticado o acto deprecado, o nº 1 do artigo 26º do mesmo diploma, na redacção do Decreto-Lei nº
315/89, veio atribuir competência para o cumprimento de deprecadas do tribunal de competência genérica sediado na comarca onde tiver de praticar-se o acto, excepto se nessa comarca estiver sediado um tribunal de trabalho' (a fls. 10 e
31 dos autos).
10. - Importa, por isso, ver qual o âmbito coberto pela reserva relativa da Assembleia da República, em matéria de competência dos tribunais (al. q) do nº 1 do art. 168º da Constituição).
Decorre da formulação utilizada por esta alínea do nº 1 do art. 168º da Constituição - quando confrontada com outras alíneas do mesmo número e artigo, nomeadamente com as alíneas d), e), f ou g) - que cabe na competência reservada da Assembleia toda a matéria de organização e competência dos tribunais. Nesse sentido se tem pronunciado sempre a jurisprudência do Tribunal Constitucional, embora não de forma unânime, a qual não tem aceite a formulação mais restritiva sugerida no Parecer nº 4/81 da Comissão Constitucional, segundo a qual poderia estar 'reservada à Assembleia da República apenas a fixação dos princípios básicos de competência, os grandes quadros de competência que integram a organização judiciária (in Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 14º, pág. 259). Em numerosos acórdãos do Tribunal Constitucional tem sido acolhida a interpretação dos comentadores Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 2º volume, Coimbra, 1985 págs. 197 a 199 e 202), de que na reserva relativa cabe toda a matéria de organização e competência dos tribunais (cfr. Acórdãos nºs 25/88, 3/89 e 356/89, publicados no Diário da República, II Série, nº 106, de 7 de Maio de 1988, nº 85, de 12 de Abril de 1989, e I Série, nº 118, de 23 de Maio do mesmo ano, respectivamente), só não cabendo na reserva as modificações de competência judiciária que decorrem da adopção de uma certa forma processual (Acórdão nº 404/87, in Diário da República, II Série, nº 202, de 21 de Dezembro de 1987, solução adoptada subsequentemente em múltiplos arestos tirados em matéria de colonia).
Seja como for, e mesmo nesta questão tão restrita de execução de cartas precatórias para citações ou notificações e outros actos processuais, sempre se há-de considerar relevante que a norma desaplicada pelo tribunal recorrido modifique regras de competência em razão da matéria, afectando tribunais de competência genérica e tribunais especializados, do mesmo passo que é também modificada a área territorial de competência dos próprios tribunais de trabalho, fixada anteriormente à modificação de 1989 pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1987 e seu Regulamento.
Daí a conclusão de que o art. 1º do Decreto-Lei nº
315/89, de 21 de Setembro, na parte em que alterou a redacção do art. 26º do Código de Processo de Trabalho, é organicamente inconstitucional, por violação da alínea q) do nº 1 do art. 168º da Constituição'.
III
6. - Nestes termos e pelas razões expostas, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Lisboa, 30 de Março de 1993
Armindo Ribeiro mendes
Antero Alves Monteiro Dinis
Alberto Tavares da Costa
Maria da Assunção Esteves
Vítor Nunes de Almeida (vencido, conforme declaração aposta ao Acórdão nº 139/92)
José Manuel Cardoso da Costa (vencido, conforme declaração anexa ao Acórdão nº 139/92)