Imprimir acórdão
Processo n.º 540/11
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A., Sad e recorrida B., Sad, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão daquele Tribunal de 19 de maio de 2011.
2. Pela Decisão Sumária n.º 591/2011, decidiu-se não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
«1. A recorrente requer a apreciação da “inconstitucionalidade dos artigos 667.º a 669.º do Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de permitir aos juízes árbitros a reforma e retificação de erros materiais nas Decisões Arbitrais por si proferidas”.
De acordo com a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Requisito que não se pode dar por verificado nos presentes autos, uma vez que nas alegações de revista, a recorrente não questionou a constitucionalidade de uma qualquer norma reportada aos artigos 667.º a 669º do Código de Processo Civil. A questão de constitucionalidade então posta incidiu sobre o artigo 25.º da Lei da Arbitragem Voluntária (Lei n.º 31/86, de 29 de agosto).
A não verificação do referido requisito do recurso de constitucionalidade interposto obsta, nesta parte, ao conhecimento do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC).
2. A recorrente requer, ainda, a apreciação da “inconstitucionalidade do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando interpretado [no sentido] de não consagrar o reenvio prejudicial obrigatório para o tribunal que conheça do mérito da causa em última instância, por violação do disposto no próprio artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa”.
Sem afrontar a questão de saber quais as repercussões do disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa no sistema de fiscalização da constitucionalidade das normas a cargo do Tribunal Constitucional (sobre isto, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 8.º, ponto XIV e ss. e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2010, anotação ao artigo 8.º, ponto XXI e ss.), deve anotar-se, desde logo, que a recorrente requer a apreciação de determinada dimensão interpretativa do artigo 267.º, também por violação deste mesmo preceito do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia. Isto é, faz coincidir no mesmo artigo a norma cuja apreciação requer e um dos parâmetros de apreciação, o que é significativo de que, afinal, está em causa, estritamente, a violação do artigo 267.º daquele Tratado e não, propriamente, a desconformidade constitucional do mesmo. O que extravasa a competência do Tribunal Constitucional (artigos 221.º e 280.º da Constituição).
Sempre se dirá, ainda, que, durante o processo, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, não se podendo, por isso, dar por verificado o requisito da suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC).
Por outro lado, o tribunal recorrido não aplicou, como ratio decidendi, a norma cuja apreciação é requerida pela recorrente, não se podendo dar por verificado um dos outros requisitos do recurso interposto (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC). Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que não lhe competia sequer conhecer da questão do reenvio, uma vez que não estava em discussão a decisão que denegou o peticionado reenvio prejudicial, não havendo, por isso, que discutir a relação material controvertida.
Em suma, também nesta parte, há que concluir pelo não conhecimento do objeto do recurso, justificando-se a prolação da presente decisão (artigo 78º-A, nº 1, da LTC).»
3. Da decisão sumária vem agora a recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78º-A da LTC, invocando os seguintes argumentos:
«(…)
Foi a Recorrente notificada do indeferimento liminar do recurso por si interposto,
Tudo com os fundamentos constantes da Decisão proferida, que, por razões de economia processual, aqui se dão por reproduzidos.
Sucede que, não pode a Recorrente conformar-se com o Despacho proferido.
Em primeiro lugar, no que concerne ao primeiro dos fundamentos de inconstitucionalidade invocados,
Sempre se dirá que a Recorrente entende ser inconstitucional a interpretação do artigo 25.º da Lei n.º 31/86, de 29 de agosto (LAV), quando interpretado conjuntamente com os artigos 667.º a 669.º do Código de Processo Civil, no sentido de permitir ao Juiz Árbitro a reforma da Decisão Arbitral, por violação do disposto no artigo 202.º da Constituição da República Portuguesa.
É, pois, a aplicação dos preceitos do Código de Processo Civil ao processo arbitral, por via do artigo 25.º da LAV, cuja constitucionalidade se pretende, por via do presente Recurso, ver sindicada.
A referida inconstitucionalidade foi invocado em sede de processo judicial (e, bem assim) arbitral.
Assim, não padece a invocação de inconstitucionalidade dos vícios assacados em sede de Despacho Liminar, pelo que, deve o mesmo ser revogado e admitido o Recurso interposto.
Igualmente, veio a Recorrente sindicar a Constitucionalidade do artigo em Causa.
Arguiu a Recorrente que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ao interpretar o artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia nos moldes em que interpretou, ou seja, como não consagrando uma obrigação de reenvio prejudicial para o Tribunal que conhece do mérito da causa em última instância, viola o disposto no próprio artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, conjugado com a jurisprudência comunitária (maxime, o Acc. Cilfit, proc. 283/81, Rec. 1982, 9, pp. 3415 e ss),
Sendo que, ao fazê-lo, viola o disposto no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa (neste sentido, vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a l07.º, 4.ª Edição, janeiro de 2007, Coimbra Editora, pp. 264 e ss.).
Na verdade, e olvidando, por não ter relevo para o caso concreto, as questões decorrentes do artigo 8.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa relativas ao primado do direito comunitário,
Sempre se dirá que, conforme bem referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in Constituição da República Portuguesa Anotada, Artigos 1.º a l07.º, 4.ª Edição, janeiro de 2007, Coimbra Editora, pp. 264 e ss., mais concretamente a anotação ao artigo 8.º, ponto XIV – aliás, referido na Decisão Reclamada) o referido preceito “localiza a regra de colisão entre o direito da União e o direito interno no plano do direito constitucional português”.
Pelo que, a violação, por entidades nacionais, do direito da União se traduz, ao nível interno, numa violação da própria Constituição.
Aliás, a letra do citado preceito é clara quando dispõe que “as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Ora, as normas supra referidas, ao serem, elas próprias, interpretadas no sentido de não consagrarem uma obrigação de reenvio pré-judicial, violam o artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
E, por consequência, o artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa,
Norma em que se localiza o conflito.
E cuja sindicância, em sede de processo judicial, se peticionou.
Não é, igualmente, exato que o Supremo Tribunal de Justiça se tenha limitado a conhecer da questão do reenvio pré-judicial enquanto pedido direto (de reenvio) que lhe foi direcionado.
Na verdade, no Acórdão aqui em causa, afirmou aquele Tribunal que “é isso que esclarece o terceiro acórdão: “Entendemos que, afastado o alegado vício de omissão, o acórdão... ressurgia inatacável. Era consequência direta e necessária “. A CA, como vimos, tinha competência para o fazer, pelo que improcedem as conclusões em contrário da recorrente”.
Note-se, como consta dos Autos de Processo Judicial – e não se deixará de detalhar em sede de Alegações de Recurso de Constitucionalidade – o vício a que alude o Supremo Tribunal de Justiça é, exatamente, a omissão de reenvio prejudicial.
Fundamento com o qual, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto anulou tal decisão,
Por via de Sentença que veio a ser confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 26 de abril de 2007, conforme consta já dos Autos.
Ora, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu competência ao Plenário da Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol Profissional para, em primeiro lugar, reformular as suas decisões – o que se discorda – e, bem assim, para recusar o reenvio pré-judicial,
O que consubstancia uma afronta ao direito comunitário e, consequentemente, nos termos supra expostos, à própria Constituição da República Portuguesa.
Pelo que este Tribunal Constitucional é competente para conhecer da matéria do Recurso e, igualmente,
Se encontram respeitados todos os pressupostos para a sua admissão».
4. Notificada da reclamação, a recorrida não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Relativamente ao pedido de apreciação da “inconstitucionalidade dos artigos 667.º a 669.º do Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de permitir aos juízes árbitros a reforma e retificação de erros materiais nas Decisões Arbitrais por si proferidas”, conclui-se pelo não conhecimento do objeto do recurso, por não ter sido questionada, durante o processo – nas alegações de revista – a constitucionalidade de uma qualquer norma reportada àqueles artigos (artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC).
Para contrariar o decidido, a reclamante vem agora precisar que pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da “interpretação do artigo 25.º da Lei n.º 31/86, de 29 de agosto (LAV), quando interpretado conjuntamente com os artigos 667.º a 669.º do Código de Processo Civil, no sentido de permitir ao Juiz Árbitro a reforma da Decisão Arbitral”, inconstitucionalidade que foi invocada em sede de processo judicial e arbitral.
Importa notar, desde logo, que não basta invocar a inconstitucionalidade “durante o processo”. Resulta expressamente do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida.
Ora, perante o Supremo Tribunal de Justiça, nas alegações de revista, a reclamante questionou a constitucionalidade do “art. 25.º da LAV, interpretado no sentido de permitir a modificação da Decisão Arbitral após a sua notificação às partes” (fls. 627 e 639 – 23.ª conclusão). Ou seja, questionou uma norma diversa da indicada no requerimento de interposição de recurso, a peça processual que define o respetivo objeto. Por um lado, os preceitos legais convocados são distintos (nas alegações de revista convoca o artigo 25.º da Lei da Arbitragem Voluntária, enquanto que no requerimento refere os artigos 667.º a 669.º do Código de Processo Civil) e, por outro, a interpretação normativa tem um conteúdo distinto (nas alegações de revista refere-se a modificação da decisão arbitral após notificação às partes, ao passo que no requerimento é especificada a reforma e retificação de erros materiais).
2. A reclamante requereu ainda a apreciação da “inconstitucionalidade do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, quando interpretado [no sentido] de não consagrar o reenvio prejudicial obrigatório para o tribunal que conheça do mérito da causa em última instância, por violação do disposto no próprio artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia e no n.º 4 do artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa”.
2.1. Na decisão reclamada decide-se não tomar conhecimento desta parte do objeto do recurso, começando por concluir que, ao fazer coincidir o preceito a que reporta a norma a apreciar com um dos parâmetros de apreciação da mesma, tal é significativo de que, afinal, o que está em causa, estritamente, é a violação do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o que extravasa a competência do Tribunal Constitucional.
Sem que se perceba quais são as “normas supra referidas”, a reclamante continua a defender que há violação do artigo 267.º daquele Tratado, não sendo procedente o argumento de que a violação do direito da União, por entidades nacionais, se traduz, ao nível interno, numa violação da própria Constituição, concretamente do artigo 8.º, n.º 4. O que esta disposição constitucional estatui, para o que agora releva, é que as disposições dos tratados que regem a União Europeia são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático (para uma síntese das posições doutrinais sobre o sentido desta norma constitucional, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2010, anotação ao artigo 8.º, ponto XXI e s.).
2.2. Na decisão sumária conclui-se também que, de todo o modo, não foi suscitada, durante o processo, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
A reclamante alega apenas que peticionou a sindicância da norma em sede de processo judicial.
Repetindo que resulta expressamente do n.º 2 do artigo 72.º da LTC, que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, há que concluir que nas alegações de revista não foi questionada a constitucionalidade de qualquer norma reportada àquele artigo do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, podendo mesmo afirmar-se que o preceito nem sequer foi convocado nesta peça processual.
2.3. Na decisão que é objeto da presente reclamação conclui-se, ainda, que o tribunal recorrido não tinha aplicado, como ratio decidendi, a norma que a recorrente reportou ao àquele artigo 267.º, o que também obsta ao conhecimento do objeto do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Para contrariar este fundamento, a reclamante transcreve uma parte do acórdão recorrido (ponto 21. da reclamação). Sucede, porém, que tal transcrição não integra a parte da decisão que aborda a questão do reenvio (ponto 6. do acórdão, fl. 762 e s.), mas antes a parte em que é apreciada a questão de saber se quando foi proferido o acórdão de 26.09.08 da Comissão Arbitral da Liga Portuguesa de Futebol já se havia esgotado o poder jurisdicional dos árbitros (pontos 1., 2. e 3., fl. 760 e ss.). Ao responder negativamente a esta questão, o Supremo Tribunal de Justiça apreciou e decidiu a questão posta, sem que isso possa significar, como pretende a reclamante, que foi também reconhecida competência ao Plenário daquela Comissão para recusar o reenvio pré-judicial.
Em face de tudo o que ficou dito, não se vislumbra razão bastante para inverter os juízos firmados na decisão sumária reclamada, que assim deve ser confirmada.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 11 de janeiro de 2012.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Gil Galvão.