Imprimir acórdão
Proc. nº 68/92
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - No tribunal judicial da comarca de Condeixa-a-Nova, o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum e perante o tribunal singular, de A., imputando-lhe a prática de um crime previsto e punido pelo artigo 14º, nº 1, alínea b) da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, com referência aos artigos 1º, nº 1, alínea d) e 4º do Decreto-Lei nº 146-C/80, de
22 de Maio.
A acusação suportou-se na factualidade assim descrita:
'No dia 2 de Maio de 1990, através da ordem de pagamento de despesas com pessoal contratado fora do quadro com o nº -----, autorizou que se pagasse a B.
(identificada a fls. 71), cujo contrato de trabalho com o município a Câmara deliberara renovar com início em 2 de Abril e termo certo em 2 de Julho desse ano, o salário e duodécimos dos subsídios de férias e Natal que venceriam no pressuposto da vigência de tal renovação até aquela data, sendo certo que aquela senhora prestara o trabalho correspondente, tudo no montante total de 59.750$00.
Porém, nessa data ainda não fora remetido ao Tribunal de Contas o instrumento escrito daquele contrato que, assim, não fora ainda objecto do visto daquela instância, exigido por lei para a produção dos seus efeitos.
O arguido apercebeu-se disso no acto de assinar a ordem de pagamento e sabia que aquele contrato de trabalho, como qualquer outro do Município não podia produzir quaisquer efeitos antes do visto do Tribunal de Contas'.
Havendo sido requerida pelo arguido a abertura da instrução foi, no termo do respectivo debate instrutório, proferido pela Senhora Juíza da comarca despacho de não pronúncia do arguido pelo crime de que vinha acusado, desaplicando-se, para tanto, a norma do artigo 27º, nº 2 do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, com fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica.
Para tanto, esta decisão, suportou-se, além de outras, nas seguintes razões:
'Em síntese, decorre inequivocamente do teor do artigo 216º da Constituição
(e do artigo 13º da Lei nº 86/87) que a fiscalização prévia da actividade financeira do Estado, que se exerce através do visto, integra-se no elenco das competências do Tribunal de Contas e, nessa medida, participa da reserva de competência estabelecida pela alínea q) do artigo 168º, nº 1 da Constituição.
Isto significa, muito prosaicamente, que é a Assembleia da República que deve, salvo autorização legislativa do Governo, definir o regime da competência do Tribunal de Contas.
Impõe-se, à luz destes considerandos, analisar o teor do artigo 27º, nº 2 do Decreto-Lei nº 105-A/90.
Enquanto o artigo 13º, nº 3 da Lei nº 86/89, num louvável esforço de simplificação e desburocratização, determinou que apenas estariam sujeitos a visto do Tribunal de Contas os contratos das autarquias locais que excedessem num valor superior a determinado montante (200 vezes o montante correspondente ao indíce 100 da escala indiciária para a carreira de regime geral, com arredondamento para a centena de contos imediatamente superior - artigo 27º, nº
1 do Decreto-Lei nº 105-A/90), o nº 2 do artigo 27º do referido diploma veio submeter à fiscalização prévia todos os contratos das autarquias locais cujo objecto seja o exercício de funções ou prestação de serviços, por parte de entidades individuais, independentemente do seu valor.
Por outras palavras, o critério do valor foi substituído pelo critério da categoria do contrato, à revelia da `alçada' pressuposta pela Lei nº 86/89, para utilizar a sugestiva expressão de B. no pedido de declaração de inconstitucionalidade da norma ora em apreço dirigida ao Tribunal Constitucional
(onde aguarda decisão), peça que foi objecto de publicação na obra Provedor de Justiça - uma perspectiva de actuação, a pags. 61.5. É absolutamente flagrante o contraste entre a formulação restritiva do artigo 13º citado, e a abrangência do nº 2 do artigo 27º, numa total subversão da teleologia imanente ao figurino da competência do Tribunal de Contas desenhado na Lei nº 86/89.
Assim, ao ignorar o limite mínimo para que remete o artigo 13º, nº 3, da Lei nº 86/89, o Governo alterou o quadro da competência estabelecido pela Assembleia da República, sem para tal estar credenciado através da competente autorização legislativa, em frontal colisão com o disposto na alínea q) do artigo 168º, nº
1, citado'.
*///*
2 - Em obediência ao disposto nos artigos 280º, nºs
1, alínea a) e 3 da Constituição e 70º, nº 1, alínea a) e 72º, nºs 1 e 3, da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, na redacção da Lei nº 85/89, de 7 de Setembro, o Ministério Público trouxe, daquele despacho, recurso obrigatório de constitucionalidade a este Tribunal.
Nas alegações entretanto oferecidas pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto formulou-se o seguinte quadro de conclusões:
1º - O nº 3 do artigo 13º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, deve ser interpretado como não visando os contratos e actos das autarquias, federações e associações de municípios que tenham por objecto o exercício de funções ou prestações de serviços por parte de entidades individuais, ou seja, os contratos e actos de admissão de pessoal referidos nas alíneas e) e f) do precedente nº 1;
2º - Por isso, o nº 2 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, ao declarar não aplicável àquelas categorias de contratos o limite do valor dos contratos fixado no precedente nº 1, não contraria aquela disposição da Lei nº 86/89 nem modifica a competência do Tribunal de Contas, e, assim, não invade a reserva de competência legislativa da Assembleia da República nesta matéria;
3º - Não padece, consequentemente, tal norma de inconstitucionalidade orgânica, por pretensa violação do artigo 168º, nº 1, alínea q) da Constituição'.
O recorrido não produziu contralegação.
Passados os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
*///*
II - A fundamentação
1 - A Lei nº 86/89, de 8 de Setembro (Reforma do Tribunal de Contas), dispõe no artigo 1º que o Tribunal de Contas tem jurisdição e poderes de controlo financeiro no âmbito de toda a ordem jurídica portuguesa, tanto em território nacional como no estrangeiro, inscrevendo-se entre as entidades sujeitas a tal jurisdição 'as autarquias locais e as associações e federações de municípios' [artigo 1º, nº 2, alínea f)].
No plano do exercício da jurisdição e dos poderes de controlo financeiro que assistem ao Tribunal de Contas, compete-lhe, nomeadamente, 'fiscalizar previamente a legalidade e a cobertura orçamental dos documentos geradores de despesa ou representativos de responsabilidades financeiras directas ou indirectas para as entidades referidas nas alíneas a), b), c), e) e f) do nº 2 do artigo 1º' [artigo 8º, alínea c)], compreendendo-se assim, entre as entidades sujeitas à fiscalização prévia do Tribunal as autarquias locais e as associações e federações de municípios.
A fiscalização prévia, enquanto competência do Tribunal de Contas, 'tem por fim verificar se os diplomas, despachos, contratos e outros documentos a ela sujeitos estão conformes com as leis em vigor e se os respectivos encargos, têm cabimento em verba orçamental própria', sendo exercida
'através do visto e da declaração de conformidade' (artigo 12º).
Sobre o âmbito da fiscalização prévia dispõe o artigo 13º da Lei nº 86/89, que se vem acompanhando, transcrevendo-se deste preceito, os segmentos normativos que aqui importa reter:
Artigo 13º
(Fiscalização prévia: âmbito)
1 - Devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia:
....................................................
b) Os contratos, de qualquer natureza, quando celebrados pelas entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal;
....................................................
e) Os diplomas e despachos relativos às admissões de pessoal não vinculado à função pública, bem como as admissões em categorias de ingresso na administração central, regional e local;
f) Os diplomas e despachos relativos a promoções, progressões, reclassificações e transições exclusivamente resultantes da reestruturação de serviços da administração central, regional e local.
....................................................
3 - Só devem ser remetidos ao Tribunal de Contas, para efeitos de fiscalização prévia, os contratos celebrados pelas autarquias locais, federações e associações de municípios que excedam um valor superior a um montante a definir por lei'.
A Lei nº 86/89, entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1990, vindo depois a ser publicado o Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, que no artigo 27º, prescrevia do modo seguinte:
Artigo 27º
(Fiscalização prévia de contratos pelo Tribunal de Contas)
1 - Os montantes a que se referem os nºs 1, alínea c), e 3 do artigo 13º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, são fixados, respectivamente, em 3500 vezes e
200 vezes o montante correspondente ao índice 100 da escala indiciária para a carreira de regime geral da função pública, sendo o valor final arredondado para a centena de contos imediatamente superior.
2 - O limite acima fixado para o nº 3 do artigo 13º da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro, não se aplica aos contratos cujo objecto seja o exercício de funções ou prestação de serviços, por parte de entidades individuais, que estão sempre sujeitos a fiscalização prévia, qualquer que seja o seu valor'.
O Decreto-Lei nº 105-A/90, foi aprovado ao abrigo do artigo 16º da Lei nº 40/83, de 13 de Dezembro (Lei de Enquadramento do Orçamento do Estado, então em vigor, entretanto revogada pela Lei nº 6/91, de 20 de Fevereiro, que regula, na actualidade, aquela mesma matéria).
Deste modo, o Decreto-Lei nº 105-A/90 dispunha de uma projecção temporal limitada, achando-se circunscrito ao tempo de execução da Lei nº 101/89, de 29 de Dezembro (Lei do Orçamento do Estado para 1990) e ao ano económico a que esta respeitava, esgotando-se a sua potencialidade estatuidora com a cessação da vigência do próprio Orçamento.
No quadro deste contexto material e normativo o preceito contido no nº 2 do artigo 27º caducou no termo do ano económico a que se reportava, mercê da própria natureza do diploma em que se achava integrado, a qual sempre haveria de prevalecer sobre uma eventual intenção do legislador de conceder a tal preceito, com carácter de permanência, um sentido de complementaridade em relação à norma do artigo 13º da Lei do Tribunal de Contas.
É que, ao contrário do que aconteceu com a norma do nº 1 do mesmo artigo 27º, sempre repetida e reiterada nos decretos-leis de execução orçamental dos anos subsequentes [cfr. o artigo 28º do Decreto-Lei nº
372-A/91, de 8 de Fevereiro (Execução do Orçamento do Estado para o ano de
1991), o artigo 28º do Decreto-Lei nº 62/92, de 21 de Abril (Execução do Orçamento do Estado para o ano de 1992), o artigo 30º do Decreto-Lei nº 83/93, de 18 de Março (Execução do Orçamento do Estado para o ano de 1993) e o artigo
32º do Decreto-Lei nº 77/94, de 9 de Março (Execução do Orçamento do Estado para o ano de 1994), cujo texto constitui uma reprodução integral daquele preceito], já a norma do nº 2 do mesmo artigo foi abandonada por estes diplomas, que não só a não renovaram, como de todo ignoraram a matéria ali versada.
Simplesmente, mesmo quando se deva entender, como na verdade se entende, que a norma desaplicada pela decisão recorrida deixou de vigorar no termo do ano económico de 1990, a que especificamente respeitava, sempre terá de reconhecer-se que, na situação sub judice, porque a conduta de violação de normas de execução orçamental, imputada pelo Ministério Público ao arguido, ocorreu no mês de Maio de 1990, ainda mantinha ela em tal data, plena eficácia e validade.
E assim sendo, importa apreciar e decidir a questão de constitucionalidade posta no recurso.
*///*
2 - A fiscalização prévia, enquanto forma de exercício da competência do Tribunal de Contas, tem por fim 'verificar se os diplomas, despachos, contratos e outros documentos a ela sujeitos estão conformes com as leis em vigor e se os respectivos encargos têm cabimento em verba orçamental própria'.
A Lei nº 86/89, a propósito do conteúdo, âmbito, isenções e processo de apreciação, a que se reportam, respectivamente, os artigos 12º a 15º, referencia como objecto de tal fiscalização 'os diplomas, despachos, contratos e outros documentos', sendo certo que, por não ser ali definido o exacto conteúdo de cada um destes instrumentos administrativo/financeiros, podem suscitar-se dúvidas na delimitação do seu rigoroso significado conceitual.
E porque aquela lei se apresenta, em certa medida, como tributária de diversos diplomas que pautaram as regras de funcionamento e de competência do Tribunal de Contas ao longo do seu percurso histórico, importa proceder a uma breve recensão dos textos que, neste particular domínio, lhe serviram de inspiração.
O Tribunal de Contas foi criado durante a Monarquia Constitucional por Decreto de 10 de Novembro de 1849, vindo depois a ser constitucionalmente consagrado no artigo 12º, §3º do Acto Adicional de 5 de Junho de 1852.
Após a implantação da República, o Tribunal foi extinto pelo Decreto de 11 de Abril de 1911, sendo criado em sua substituição o Conselho Superior de Administração Financeira do Estado, que mais tarde, através do decreto com força de lei nº 5525, de 8 de Maio de 1919, recebeu a designação de Conselho Superior de Finanças.
Entretanto, com o advento do Estado Novo, o Decreto nº 18962, de 25 de Outubro de 1930, extinguiu o Conselho Superior de Finanças e criou de novo o Tribunal de Contas para o qual transitaram os serviços daquela entidade fiscalizadora.
O Tribunal de Contas veio a alcançar na Constituição de 1976 um estatuto em tudo idêntico ao dos restantes tribunais, integrando, ao lado dos tribunais judiciais, dos tribunais administrativos e fiscais e dos tribunais militares uma das ordens de tribunais previstos no artigo 211º da Lei Básica.
A fiscalização em matéria de visto foi atribuída ao Tribunal de Contas, pela primeira vez, no Regulamento da Contabilidade Pública de 1881, abrangendo somente as ordens de pagamento das despesas variáveis e despesas da Junta de Crédito Público, despesas de exercício findas e títulos de renda vitalícia.
Mais tarde, por força do Decreto de 17 de Julho de
1886 e do Regimento do Tribunal de Contas do mesmo ano, aquela competência foi ampliada, passando o visto a ser obrigatório também em todos os contratos de compra e venda, de fornecimentos de géneros e de empreitadas de obras de valor ou preço excedentes a 500$000 reis que fossem celebrados pelos Ministérios e nos processos de aposentação, justificação ou reforma de funcionários de todas as classes do Estado.
A reforma dos serviços do Tribunal de Contas levada a cabo por Decreto de 30 de Abril de 1898, alargou o âmbito da fiscalização das despesas públicas, sujeitando ao seu exame e visto, nomeadamente, os contratos de compra, venda, fornecimentos, empreitadas, execução de obras e arrendamentos, celebrados fosse por que estação fosse e fosse qual fosse o seu preço ou valor, bem como os despachos de todas as nomeações, colocações, promoções, transferências e comissões retribuídas.
O essencial desta competência do Tribunal transitou para o Conselho Superior de Administração Financeira do Estado e depois para o Conselho Superior de Finanças, vindo de novo a ser conferida ao Tribunal de Contas aquando da sua reintrodução no ordenamento jurídico em 1930.
O Decreto-Lei nº 22257, de 25 de Fevereiro de 1933, que logo após a recriação do Tribunal procedeu à sua reorganização, dispunha no artigo 6º, nº 2º, ser da competência do Tribunal de Contas examinar e visar, 'os contratos de qualquer natureza e valor, seja qual for a estação que os tenha celebrado' [alínea e)] e 'todos os diplomas e despachos que envolvam abonos de qualquer espécie, com excepção dos enumerados no §41º deste artigo (onde se elencavam as situações de isenção de visto)' [alínea g)].
Pese embora a existência de uma numerosa legislação avulsa que entretanto veio a ser publicada relativamente a certos aspectos parcelares do funcionamento do Tribunal de Contas e dos seus serviços, pode dizer-se que a sua competência em matéria de visto e de fiscalização preventiva das despesas públicas se manteve inalterada até à edição do Decreto-Lei nº
146-C/80, de 22 de Maio (cfr. sobre a evolução histórica desta legislação, Ernesto da Trindade Pereira, O Tribunal de Contas e o Tribunal de Contas, Coordenação das suas leis e Joaquim Delgado, Legislação do Tribunal de Contas).
Aliás, o próprio Decreto-Lei nº 146-C/80, no essencial, acompanhou de perto os textos anteriormente vigentes, limitando-se a introduzir-lhe as adaptações e correcções impostas pelo novo enquadramento que foi constitucionalmente reconhecido ao Tribunal, procurando-se, outrossim, que o seu funcionamento se revestisse de maior flexibilidade e celeridade em ordem a uma resposta mais expedita às solicitações da Administração.
No plano da fiscalização prévia das despesas públicas, o artigo 1º, nº 1, além do mais, sujeitava ao visto do Tribunal 'os contratos de qualquer natureza e valor, seja qual for a entidade pública que os haja celebrado' [alínea d)] e os 'diplomas ou despachos que envolvam abonos de qualquer espécie' [alínea g)].
Aqui chegados, poderá agora apreender-se melhor qual o sentido que o legislador, à luz de uma perspectiva de continuidade histórica e institucional, pretendeu atribuir às normas do artigo 13º da Lei nº
86/89, a que já se fez referência.
E poderá também, antecipar-se desde já, que a norma do artigo 27º, nº 2, do Decreto-Lei nº 105-A/90, não veio alargar a competência do Tribunal de Contas, no domínio da fiscalização preventiva, limitando-se a explicitar o regime já constante na Lei nº 86/89.
Vejamos então.
*///*
3 - O tratamento normativo que historicamente foi concedido à competência do Tribunal de Contas no domínio da fiscalização prévia das despesas públicas, distinguiu, por via de regra, de modo explícito ou implícito, a matéria dos actos geradores de despesa consoante os respectivos documentos de suporte material revestissem a forma de contratos ou de diplomas ou despachos.
Independentemente do rigor conceitual destas fórmulas, aliás com tradução em alguns diplomas dimanados do então denominado Secretariado da Reforma Administrativa (cfr. o Decreto-Lei nº 49397, de 19 de Novembro de 1969), o certo é que, com base nelas se estruturou uma prática administrativa e financeira nos termos da qual, aquela dicotomia precipitou a distinção entre contratos de material e contratos de pessoal, traduzindo-se aqueles na realização de despesas derivadas da aquisição de bens e serviços e estes na realização de despesas derivadas, genericamente, da admissão de pessoal na Administração Pública.
Anteriormente à Lei nº 86/89, e pese embora o facto de o Decreto-Lei nº 146-C/80 (como aliás a legislação anterior), não fazer expressa distinção, a propósito da competência do Tribunal de Contas em matéria de fiscalização preventiva, entre actos da administração central e actos da administração local, o certo é que o Decreto-Lei nº 390/82, de 17 de Setembro, dos contratos celebrados pelas autarquias locais e pelas associações de municípios, apenas sujeitava ao visto do Tribunal de Contas 'os contratos de empreitada, de fornecimento e de concessão' que por isso estavam sujeitos a um regime de fiscalização idêntico ao dos contratos de idêntica natureza celebrados pelo Estado (cfr. artigo 16º).
Ora, a Lei do Tribunal de Contas, veio submeter à fiscalização prévia do Tribunal, na parte que aqui importa apreciar, dois tipos diversificados de situações:
- os contratos, de qualquer natureza, quando celebrados pelas entidades sujeitas à jurisdição do Tribunal [alínea b) do nº 1 do artigo 13º]:
- os diplomas e despachos relativos às admissões de pessoal não vinculados à função pública e às admissões em categorias de ingresso na administração central, regional e local, bem como a promoções, progressões, reclassificações e transições exclusivamente resultantes da reestruturação de serviços da administração central, regional e local [alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 13º].
Todavia, este mesmo normativo, veio dispôr, que só ficarão sujeitos aquela fiscalização prévia 'os contratos celebrados pelas autarquias locais, federações e associações de munícipios que excedam um valor superior a um montante a definir por lei' (cfr. nº 3).
Simplesmente, o enquadramento histórico deste preceito, a sua razão de ser e as condições de praticabilidade que lhe são inerentes, impõem uma interpretação restritiva do seu texto em termos de nele apenas se incluírem os contratos referidos na alínea b) do nº 1 do artigo 13º, concretamente, os contratos classificados como contratos de material.
Com efeito, não obstante a formulação muito ampla utilizada neste normativo 'contratos de qualquer natureza', resulta da sua matriz, directamente radicada no artigo 1º do Decreto-Lei nº 146-C/80, do seu enquadramento sistemático e da lógica dos fins que através dele se visa alcançar, que tais contratos hão-de ser coisa distinta daqueles actos e contratos que conduzem, genericamente, à admissão de pessoal na Administração Pública, hão-de ser, em suma, coisa diversa das situações contempladas nas alíneas e) e f) do nº 1 do mesmo preceito.
De outro modo, poderia dizer-se que os 'contratos de qualquer natureza' abrangeriam todas as formas de contratação celebradas pela Administração Pública, abarcando também alguns dos instrumentos que tipicamente são próprios da admissão de pessoal e aos quais se pretendeu, manifestamente, conceder um tratamento autónomo e diversificado.
Importa a este respeito fazer algumas precisões conceituais.
*///*
4 - O Decreto-Lei nº 247/87, de 17 de Junho, procedeu à adaptação do Decreto-Lei nº 248/85, de 15 de Julho (regime geral de estruturação das carreiras da função pública) às carreiras de pessoal da administração local, dispondo nos artigos 41º a 45º sobre as respectivas formas de provimento.
O provimento do pessoal dos quadros passou a ser feito por nomeação provisória ou em comissão de serviço pelo período de um ano
(artigo 41º), sendo o desempenho de funções públicas que não correspondam a necessidades permanentes dos serviços assegurado por pessoal contratado a termo certo.
O contrato a termo certo, qualquer que seja a duração nele estabelecida, nunca se poderá converter em contrato sem prazo e caducará tácita e automaticamente no termo do prazo estabelecido, sem conferir direito a qualquer indemnização (artigo 44º).
Entretanto, o regime de constituição, modificação e extinção da relação jurídica de emprego na Administração Pública, veio a ser definido no Decreto-Lei nº 427/89, de 7 de Dezembro, aplicado à administração local, com algumas adaptações, pelo Decreto-Lei nº 409/91, de 17 de Outubro.
Em conformidade com aquele primeiro diploma, a relação jurídica de emprego na Administração Pública constitui-se por nomeação e contrato de pessoal.
A nomeação constitui um acto unilateral da administração pelo qual se preenche um lugar do quadro e se visa assegurar, de modo profissionalizado, o exercício de funções próprias do serviço público que revistam carácter de permanência (artigo 4º).
A nomeação reveste as modalidades de nomeação por tempo indeterminado e de nomeação em comissão de serviço (artigo 5º).
O contrato de pessoal só pode revestir as modalidades de contrato administrativo de provimento e de contrato de trabalho a termo certo (artigo 14º).
O contrato administrativo de provimento é um acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, a título transitório e com carácter de subordinação, o exercício de funções próprias do serviço público, com sujeição ao regime jurídico da função pública (artigo 15º).
Este contrato apenas pode ter lugar nos casos expressamente previstos na lei (serviços em regime de instalação, pessoal médico em regime de internato geral ou complementar, docente e de investigação, frequência de estágio de ingresso na carreira), considera-se celebrado por um ano, tácita e sucessivamente renovável por iguais períodos, se não for oportunamente denunciado, tendo a sua renovação como limite, consoante os casos, o termo do regime de instalação, o regime em vigor sobre a contratação de pessoal médico, docente e de investigação (artigos 15º e 16º).
O contrato de trabalho a termo certo é um acordo bilateral pelo qual uma pessoa não integrada nos quadros assegura, com carácter de subordinação, a satisfação de necessidades transitórias dos serviços de duração determinada que não possam ser asseguradas pelo recurso ao contrato administrativo de provimento (artigo 18º).
Todas estas situações configuram uma relação jurídica de emprego na administração revestindo a natureza típica dos contratos de pessoal.
Contrariamente, as despesas com a realização de obras e aquisição de bens e serviços em sentido lato, por contraposição aos contratos que se traduzem numa relação jurídica de emprego, apresentam-se como matéria própria dos contratos de material, dispondo de uma disciplina legal própria e de um objecto de diversa natureza.
Para além das obras e aquisição de bens hão-de ainda ser integrados nesta categoria conceitual, o contrato de tarefa e o contrato de avença (artigo 7º do Decreto-Lei nº 409/91), caracterizando-se o primeiro por ter como objectivo a execução de trabalhos específicos, de natureza excepcional, sem subordinação hierárquica, não podendo exceder o termo do prazo contratual inicialmente previsto, e caracterizando-se o segundo por ter como objecto prestações sucessivas no exercício de profissão liberal.
Estes contratos acham-se sujeitos ao regime previsto na lei geral quanto à realização de despesas públicas em matéria de aquisição de bens e serviços (cfr. Decreto-Lei nº 211/79, de 12 de Julho, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei nº 227/85, de 4 de Julho e Decreto-Lei nº 215/87, de 29 de Maio; o Decreto-Lei nº 390/82, de 17 de Setembro e o Decreto-Lei nº 24/92, de 25 de Fevereiro).
*///*
5 - À luz das considerações antecedentes torna-se compreensível que a Lei nº 86/89,tenha querido contemplar na alínea b) do nº 1 do artigo 13º, os contratos de material de qualquer natureza - com efeito, no
âmbito deste tipo de contratos, é possível encontrar diversas espécies, distintas e autónomas - enquanto reservou para as alíneas e) e f) do mesmo preceito a matéria correspondente à categoria, também genérica, dos actos e contratos relativos à admissão de pessoal através da constituição de uma relação jurídica de emprego na Administração Pública, bem como às modificações ulteriores desse tipo de relação funcional.
Como se compreende também que a regra do nº 3 daquele artigo 13º só haja de valer para os contratos de material e não já para as situações genericamente incluídas no âmbito dos contratos de pessoal.
Com efeito, relativamente a estes últimos
[referidos nas alíneas e) e f)] colocar-se-ia desde logo, num puro plano de exequibilidade, a determinação do critério objectivo com base no qual houvesse de se definir, caso a caso, o valor da despesa resultante do provimento em causa.
Fosse qual fosse o valor conjecturalmente atribuível a estes actos ou contratos, sempre haveria de concluir-se, tendo em conta o limite estabelecido no nº 1 do artigo 27º do Decreto-Lei nº 105-A/90, -
200 vezes o montante correspondente ao índice 100 da escala indiciária para a carreira do regime geral da função pública, índice este fixado em 35.392$00 pela Portaria nº 904-A/89, de 16 de Outubro, a que corresponde o montante final global, já arredondado, de 7.100.000$00 - que todos eles, ou ao menos a sua esmagadora maioria, ficariam sujeitos a um regime de isenção de fiscalização prévia inteiramente injustificada, por desconforme com a disciplina vigente no
âmbito dos procedimentos administrativos e financeiros próprios da administração central.
Aliás, o próprio Tribunal de Contas, por Resolução publicada no Diário da República, II série, nº 292, de 21 de Dezembro de 1989, com o fim de facilitar a aplicação da Lei nº 86/89, estabeleceu que na aplicação do artigo 13º daquela Lei, deveriam ter-se em conta as seguintes considerações:
'1.1.1. - Enquanto não for fixado o montante a que se refere o nº 3 do artigo
13º da Lei nº 86/89, mantém-se o regime constante do artigo 16º do Decreto-Lei nº 390/82, de 17 de Setembro, excepto no que se refere ao visto tácito.
.....................................................
1.1.3. - Todos os contratos relativos a pessoal (contratos administrativos de provimento e contratos de trabalho a tempo certo) estão sujeitos a fiscalização prévia, já que a Lei nº 86/89 não o distingue do restante número contratual.
1.1.4. - Os contratos a que se refere o artigo 10º do Decreto-Lei nº 184/89, de
2 de Junho, tal como os contratos de tarefa e de avença, estão sujeitos a fiscalização `a priori'.
Deste modo, o próprio Tribunal de Contas estabeleceu uma conexão entre a norma do nº 3 do artigo 13º da Lei nº 86/89 e a norma do artigo 16º do Decreto-Lei nº 390/82, que, como atrás se observou, apenas contemplava os contratos de empreitada, de fornecimento e de concessão, isto é, contratos de material.
Relativamente aos contratos de pessoal o Tribunal de Contas considerou estarem todos eles sujeitos a fiscalização prévia não estando o exercício dessa competência condicionado por um qualquer limite de valor do próprio contrato.
Aliás, como se extrai da documentação junta ao processo de fiscalização abstracta sucessiva nº 378/90, requerido pelo Provedor de Justiça, que correu termos neste Tribunal e no qual veio a ser proferido o Acórdão nº 398/93, Diário da República, II série, de 20 de Dezembro de 1993,
(processo este a que se faz expressa referência na decisão recorrida), o Tribunal de Contas foi ouvido a propósito do texto do artigo 27º do Decreto-Lei nº.105-A/90, havendo-se manifestado concordantemente.
De tudo isto resulta claro que este preceito, quando confrontado com a interpretação adequada daquela norma do artigo 13º da Lei nº 86/89 - a única que se harmoniza com o pensamento legislativo que a ditou
- não representa qualquer alargamento da competência do Tribunal de Contas em matéria de fiscalização preventiva.
A norma desaplicada na decisão recorrida, ao contrário, limitou-se a explicitar o sentido e alcance da lei, nada inovando ou modificando, seja no sentido ampliativo, seja no sentido restritivo, no âmbito da dimensão da competência do Tribunal de Contas.
Por assim ser, não se situa tal norma no domínio da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, e não enferma, consequentemente de qualquer inconstitucionalidade.
*///*
III - A decisão
Nestes termos, considerando a interpretação conjugada das normas dos artigos 13º, nº 3 da Lei nº 86/89, de 8 de Setembro e
27º, nº 2 do Decreto-Lei nº 105-A/90, de 23 de Março, segundo a qual aquele preceito apenas se reporta aos contratos das autarquias, federações e associações de municípios que tenham por objecto a realização de obras e a aquisição de bens e serviços [contratos compreendidos na alínea b), do nº 1, do artigo 13º da Lei nº 86/89], decide-se não julgar inconstitucional a norma do artigo 27º, nº 2, do Decreto-Lei nº 105-A/90, concedendo, em consequência, provimento ao recurso e determinando a reformulação da decisão recorrida em conformidade com o presente julgamento de constitucionalidade.
Lisboa, 23 de Março de 1994
Antero Alves Monteiro Dinis
Vítor Nunes de Almeida
Alberto Tavares da Costa
Armindo Ribeiro Mendes
José Manuel Cardoso da Costa