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Processo n.º 216/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheiro João Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por despacho do Secretário de Estado Adjunto e das Obras Públicas, publicado no Diário da República, nº 17, 2ª Série, de 25 de Janeiro de 2005, por necessária à execução da obra da SCUT Grande Porto – A4/IP 4 – sublanço Sendim-Via Norte, foi declarada a utilidade pública, com carácter de urgência, duma parcela de terreno, com a área de 17.204 m2, que faz parte do prédio situado no freguesia de Custóias, concelho de Matosinhos, inscrito na respectiva matriz predial urbana, sob os artigos n.º 762, 1534 e 3120 da Repartição de Finanças de Matosinhos e na respectiva matriz predial rústica sob o artigo 464, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º 01448/110496 (Custóias), propriedade de A., B., casada em comunhão de adquiridos com C., D., casada no regime de comunhão geral com E., e F., casada no regime de comunhão geral com G., sendo arrendatária, entre outros, a Agremiação Desportiva H..
Foi realizada a vistoria ad perpetuam rei memoriam, tendo a expropriante, I, SA, entrado na posse administrativa da parcela.
No âmbito de expropriação amigável, foi acordado entre a expropriante e os arrendatários habitacionais e rurais o montante da indemnização a atribuir a cada um deles.
Procedeu-se à realização de arbitragem que, por laudo unânime, fixou a indemnização nos seguintes valores:
- o valor do solo em €1.531.893,50;
- o valor das benfeitorias construídas em €1.886.641,00;
- o valor das benfeitorias plantadas em €950,00;
- o valor de outras benfeitorias em €7.550,00;
- o valor da desvalorização da parte sobrante em €160.200,00;
- o valor da expropriação do arrendamento comercial em €12.000;
- e o valor do arrendamento desportivo em €271.058,35.
Proferido despacho de adjudicação da parcela de terreno expropriada à entidade expropriante e notificada a decisão arbitral, dela recorreram a expropriante, os expropriados proprietários e o expropriado arrendatário comercial.
Entretanto, a entidade expropriante acordou com o arrendatário desportivo, a Agremiação Desportiva H., o pagamento do montante total de €525.000, incluindo-se neste valor a indemnização dos danos decorrentes da cessação do arrendamento e perda de benfeitorias.
Foi proferida sentença em que, além de julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide quanto à indemnização a atribuir ao arrendatário desportivo, decidiu:
- julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo expropriado arrendatário comercial J. e, em consequência, condenar a expropriante, pela expropriação da área de ocupação comercial da parcela 34, no pagamento da indemnização de 60.000,00€, actualizada a partir da data de declaração de utilidade pública e até à data do trânsito em julgado, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação da parcela de terreno expropriada;
- julgar improcedente o recurso interposto pelos expropriados proprietários e parcialmente procedente o recurso interposto pela expropriante e, em consequência, fixar a indemnização total devida aos expropriados proprietários pela expropriação da parcela em causa nos autos em 1.194.964,00€, a actualizar a partir da data de declaração de utilidade pública e até à data do trânsito em julgado da presente decisão, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação da parcela de terreno expropriada;
- julgar parcialmente procedente o pedido dos expropriados proprietários de condenação da expropriante em juros de mora e, nessa medida, condenar a mesma no pagamento de juros de mora no valor de 16.473,29€ (a pagar no prazo de 10 dias).
O montante de juros foi posteriormente rectificado para €17.531,21.
Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso a entidade expropriante e os expropriados proprietários, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão proferido em 8 de Fevereiro de 2011, julgado improcedente a apelação da expropriante e parcialmente procedente a apelação dos expropriados proprietários, fixando a indemnização a receber por estes em €1.805.209,22, montante a actualizar nos termos referidos na sentença recorrida, acrescida de juros de mora, calculados sobre o montante de €689.535,99, à taxa de 4%, desde 3/6/2005 e até 11/9/2006.
2. Desta decisão recorreu a entidade expropriante para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC, nos seguintes termos:
«Entende-se, salvo o devido respeito por opinião contrária, que o douto aresto procedeu à aplicação de normas ordinárias em termos contrários à Lei Fundamental.
O Tribunal da Relação ao não ter considerado o encargo – contrato de arrendamento – existente sob o prédio expropriado à data da Declaração de Utilidade Pública frustrou de forma muito grave o fito da justa indemnização prevista nos artigos 23.º e 26.º CE e artigo 62.º, n.º 2 CRP.
Devem, por imperativo constitucional, ser considerados todos os factores objectivos que bulam na formação do preço de mercado de uma parcela expropriada sob pena de se realizar uma interpretação inconstitucional dos artigos 23.º, n.º 1 e 26.º CE por violação do princípio da igualdade e artigo 13.º, n.º 1 CRP, princípio da proporcionalidade e artigo 18.º, n.º 1 e 2 CRP e o princípio da justa indemnização e artigo 62.º, n.º 2 CRP, que aqui expressamente se invoca.
No limite a existência do arrendamento, como o existente nos autos, deve ser valorado, como factor correctivo, para efeitos do artigo 26.º, n.º 10 CE, por representar um factor objectivo que onera e prejudica o destino económico da parcela.
Assim, nos termos do artigo 75.º - A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, indica-se o seguinte:
a) O presente recurso é interposto ao abrigo do artigo 280.º, n.º 1, al. b) CRP, a aliena b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro;
b) Pretende-se que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 23.º e 26.º CE, realizada pelo Tribunal da Relação, na medida em que considerou que:
A indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao expropriado, quando em 40% da área total da parcela se encontrava localizado o complexo desportivo do H., que correspondia ao único uso e ocupação previsto e admitido pelo PDM de Matosinhos.
c) Foi violado o princípio da igualdade e o artigo 13.º, bem como o princípio da proporcionalidade e o artigo 18.º, n.º 2 e 3 e o princípio da justa indemnização e o artigo 62.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.»
3. A Recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:
«1. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto ao não ter considerado, in casu, para efeitos de determinação da indemnização devida ao expropriado-proprietário o encargo – contrato de arrendamento – existente sob o prédio expropriado à data da Declaração de Utilidade Pública frustrou de forma muito grave o fito da justa indemnização prevista nos artigos 23.º e 26.º CE e artigo 62.º, n.º 2 CRP;
2. Devem, por imperativo de igualdade, logo de acordo com o princípio da justa indemnização, ser considerados todos os factores objectivos que bulam na formação do preço de mercado de uma parcela expropriada sob pena de se realizar uma interpretação inconstitucional dos artigos 23.º, n.º 1 e 26.º CE por violação do princípio da igualdade e artigo 13.º, n.º 1 CRP, princípio da proporcionalidade e artigo 18.º, n.º 1 e 2 CRP e o princípio da justa indemnização e artigo 62.º, n.º 2 CRP, que aqui expressamente se invoca;
3. O ónus que incide sobre um solo objecto de um contrato de arrendamento vinculado corresponde, em termos de mercado, a um minus que se reflecte no preço a pagar por um terreno como a parcela;
4. A parcela encontrava-se onerada por um contrato de arrendamento que condicionava a concretização da sua potencialidade construtiva, como o destino previsto para a mesma área já se encontrava concretizado;
5. Numa parcela com a área total de 17.204,00m2, em que parte se encontra ocupada por equipamentos desportivos na área de 6.893m2 não se pode razoavelmente pugnar por um valor por metro quadrado que não reflicta o custo necessário para libertar o solo de forma a permitir o aproveitamento construtivo;
6. A existência do contrato de arrendamento e a referida utilização anula parte do valor económico do solo, pelo que para a área total de 6.893m2 o valor não pode corresponder ao determinado pelos critérios legais do artigo 26.º, porquanto a parcela não se encontrava desocupada, nem era possível à data da Declaração de Utilidade Pública a realização da capacidade construtiva;
7. Ao contrário do que pugna o Tribunal da Relação não está em causa a dedução à indemnização do proprietário a indemnização devida a título do encargo autónomo, mas sim a contabilização de todos os factores objectivos que influem de forma inelutável o valor de mercado para a parcela, logo a sua justa indemnização.
8. O princípio da igualdade tem de ser concretizado de forma relativa e por exercício de comparação;
9. é inevitável que no caso sub judice se tenha que relevar as circunstâncias que condicionavam a capacidade construtiva da parcela e que não fora a expropriação, exigiram, em circunstâncias normais de mercado, a assunção de um risco e encargo para pôr termo ao contrato de arrendamento;
10. Logo o princípio da igualdade exige que a avaliação se consubstancie numa ficção jurídica reportada a um determinado momento irreproduzível: a data de publicação da DUP;
11. O valor da parcela expropriada será fixado na estrita medida do seu potencial ou efectivo uso, ocupação e transformação juridicamente reconhecido à data da DUP.
12. O critério de determinação do valor económico será por isso objectivamente fixado e avaliado;
13. É mandatório considerar o encargo que representa um contrato de arrendamento do existente nos autos, inquina a avaliação e frustra o alcance da justa indemnização previsto nos artigos 23.º, n.º 1 e 26.º CE, pelo que por imperativo constitucional devem ser considerados todos os factores objectivos que bulam com a formação do preço de mercado sob pena de se realizar uma interpretação inconstitucional dos artigos 23.º, n.º 1 e 26.º CE por violação do princípio da igualdade e artigo 13.º, n.º 1 CRP, princípio da proporcionalidade e artigo 18., n.º 1 e 2 CRP e o princípio da justa indemnização e artigo 62.º, n.º 2 CRP, que aqui expressamente se invoca;
14. Não está por isso a natureza autónoma do encargo, nem a natureza autónoma da indemnização devida pela ablação do direito e propriedade, o que está em causa é a não contabilização de todos os factores objectivos que influenciam o valor de mercado da parcela, último critério que permite repor a situação patrimonial do expropriado.
15. A interpretação pugnada pelo Tribunal da Relação do Porto dos artigos 23.º e 26.º é inconstitucional por não ter aplicado qualquer factor correctivo resultante da condicionante de facto e de direito decorrente do contrato de arrendamento e que afecta o valor de mercado da parcela destina ao equipamento desportivo.
16. A indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação tem de ser oposta à indemnização devida ao expropriado, quando em 40% da área total da parcela se encontrava localizado o complexo desportivo do H., que correspondia ao único uso e ocupação previsto e admitido pelo PDM de Matosinhos.
17. Ao não ter corrigido o valor da indemnização em conformidade com a realidade de facto e de direito da parcela, não se determinou o valor real e de mercado para a parcela, pelo que foi violado o princípio da igualdade e o artigo 13.º, bem como o princípio da proporcionalidade e o artigo 18.º, n.º 2 e 3 e o princípio da justa indemnização e o artigo 62.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos deve ser julgado provado e procedente o presente recurso com todas as devidas e legais consequências, julgando-se inconstitucional a interpretação dos artigos 23.º e 26.º CE que não admite a correcção do valor da indemnização em virtude de parte da parcela se encontrar onerada por um contrato de arrendamento com a Agremiação Desportiva de H., não tendo assim determinado o valor real e de mercado para a parcela, logo foi violado o princípio da igualdade e o artigo 13.º, bem como o princípio da proporcionalidade e o artigo 18.º, n.º 2 e 3 e o princípio da justa indemnização e o artigo 62.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.»
4. Os expropriados proprietários apresentaram contra-alegações em que suscitaram a questão prévia da inutilidade superveniente do conhecimento do presente recurso e pronunciaram-se pela sua improcedência.
5. Por Acórdão n.º 528/2011 foi decidido suscitar o eventual não conhecimento do objecto do recurso, pelas razões aí indicadas.
6. A recorrente respondeu a essa questão prévia da seguinte forma:
«I., S.A., entidade expropriante nos autos acima identificados, notificada para se pronunciar para efeitos do artigo 704.º, n.º CPC, vem dizer o seguinte:
1. Entende-se, salvo o devido respeito, que o douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto procedeu à aplicação de normas ordinárias em termos contrários à Lei Fundamental ao não tomar em consideração o impacto do arrendamento no valor fundiário da parcela expropriada.
2. Foi esta a questão colocada à apreciação do tribunal a quo e é esta a questão submetida agora à apreciação do Tribunal Constitucional.
3. Não podemos aceitar que se possa considerar que o objecto do nosso recurso não incide sobre um critério normativo.
4. O critério normativo é o da justa indemnização consagrada no artigo 23.º, .n.º1 CE e 62.º, n.º2 CRP, concretizada no critério legal de avaliação previsto no artigo 26.º, n.º 1, que não é possível de ser alcançada quando, no caso, se considera o arrendamento para fins desportivos como encargo autónomo que não afecta o valor patrimonial da parcela expropriada.
5. Foi esta a questão suscitada à apreciação do Tribunal da Relação e foi com base no artigo 30.º e na natureza autónoma dos interesses do proprietário e do arrendatário que este Tribunal fundou a improcedência do recurso e a não contabilização de todos os factos e elementos objectivos que influem no valor de mercado da parcela.
6. A inconstitucionalidade reside por isso na interpretação do Tribunal a quo em não considerar no valor da indemnização devida pela expropriação o arrendamento que a onerava. Ao não considerar, por isso, todos os factores objectivos que têm influência na formação do preço de mercado de uma parcela expropriada não consegue atingir o desiderato constitucional da justa indemnização e repor a igualdade entre expropriados e não expropriados perante encargos públicos.
7. Tal é flagrante quando o Tribunal não atende à particularidade do arrendamento e ao destino económico previsto para a parcela pelo PDM de Matosinhos: equipamento.
8. Ao contrário do que pugna o Tribunal da Relação não está em causa a dedução à indemnização do proprietário a indemnização devida a título do encargo autónomo, mas sim a contabilização de todos os factores objectivos que influem, de forma inelutável, no valor de mercado para a parcela e, bem assim, na sua justa indemnização.
9. Logo, a ratio decidendi do acórdão recorrido é posta em causa no presente recurso, uma vez que a desconsideração do arrendamento como factor depreciativo para a determinação do valor da parcela bule com o critério normativo de justa indemnização legal e constitucionalmente consagrado.
10. A interpretação do Tribunal da Relação conduz à desconsideração do arrendamento na fixação da indemnização devida ao expropriado e à desconsideração que, no caso, o tipo de contrato concluído quanto à parcela, aliado às condicionantes fixadas do PDM, implicavam um limitação da autonomia da vontade do expropriado na rentabilização daquela
11. De facto, não se pode considerar que aquela parcela tenha um valor de mercado similar ao de uma parcela desonerada, uma vez que a sua funcionalização a um uso de equipamento restringia, e muito, o seu valor de mercado.
12. Por isso resulta do acórdão que em causa está o conceito de justa indemnização e os critérios para a sua determinação, pois a não consideração do arrendamento implica a fixação de um valor indemnizatório que não corresponde ao valor de mercado, logo, do valor real que o expropriado poderia obter não fora a expropriação.
13. O mérito em que assentou a decisão ora recorrida opõe-se por isso ao princípio da igualdade, proporcionalidade e justa indemnização, logo conduz a uma interpretação inconstitucional das normas que fundam a determinação do valor da parcela, maxime o artigo 23.º e 26.º CE, atribuindo ao proprietário um prémio só possível com o processo expropriativo: o do pagamento da indemnização, como se em causa estivesse uma parcela desonerada.
14. O facto de o Tribunal a quo ter apenas convocado o artigo 30.º como fundamento nós exposta, uma vez que em causa está a fixação do critério da justa indemnização do proprietário e não do arrendatário (sendo que só relativamente a este teria aquele artigo 30.º mais valia autónoma).
15. A mobilização daquele artigo 30.º tem, por isso, de ser lida em conjugação com os critérios de fixação da indemnização do proprietário — os artigos 23.º e 26.º do CE, por nós convocados -, sobretudo numa situação em que, como a vertente, aquele artigo é usado como factor preclusivo ou impeditivo da fixação da justa indemnização.
Pelo exposto, é nosso modesto entendimento, que deve ser conhecido o objecto do recurso na sua integralidade, uma vez que o critério normativo diz respeito ao conceito de justa indemnização devida ao proprietário e valor de mercado da parcela expropriada, não tendo tribunal considerado um facto que objectivamente bulia no caso concreto com o valor de mercado e que concretiza o destino previsto para a parcela nos termos do PDM em vigor.»
*
II - Fundamentação
Da falta de pressupostos do conhecimento do recurso
6. No requerimento de interposição de recurso, a recorrente indicou como objecto do pedido a «interpretação dos artigos 23.º e 26.º CE, realizada pelo Tribunal da Relação, na medida em que considerou que:
A indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao expropriado, quando em 40% da área total da parcela se encontrava localizado o complexo desportivo do H., que correspondia ao único uso e ocupação previsto e admitido pelo PDM de Matosinhos».
Ressalta desta formulação que, para definir a interpretação dos artigos 23.º e 26.º que pretendia impugnar, a recorrente lançou mão de elementos da configuração casuística da ocupação e uso do terreno concretamente objecto da expropriação. Foi ao ponto de incluir, na interpretação normativa a apreciar, a extensão da área arrendada (40% da área total), a identificação da pessoa do arrendatário (um determinado clube desportivo), a finalidade específica do arrendamento, para além de indicar o PDM concretamente aplicável.
Ao enunciar deste modo o objecto do pedido, a recorrente não se desprendeu das singularidades do caso dos autos, que o tornam único e irrepetível. Ainda que sob o rótulo de “interpretação”, o que se censura ao tribunal recorrido é o facto de, no acto de julgamento, não ter considerado certos elementos factuais com alegada incidência negativa no valor de mercado da parcela expropriada e, consequentemente, justificativos da fixação de uma indemnização de valor mais reduzido.
Com isso, a recorrente colocou o seu pedido fora da esfera de competência do Tribunal Constitucional, tornando imperioso um juízo de inadmissibilidade do recurso, por inidoneidade do objecto.
É sabido, na verdade, que a natureza normativa do objecto do pedido é um pressuposto ineliminável da admissão dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade e, em particular, dos instaurados ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. E essa natureza normativa só é preservada quando o recurso é feito incidir sobre um critério ou padrão de decisão com suficiente dimensão abstractizante dos pontos de vista valorativamente relevantes, de modo a conferir-lhe aptidão aplicativa a todos os casos idênticos, sob esses pontos de vista. Como diz LOPES DO REGO (Os recursos de fiscalização concreta na lei e na jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, 106), o recurso tem de incidir “sobre uma regra abstractamente enunciada (ou enunciável) e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica (…)”.
Não é isso que acontece com o pedido em apreciação. A “interpretação” nele expressa aparece directamente moldada pelas características individualizantes do caso, que descreve, qua tale, sem conversão numa qualquer dimensão normativa. Deste modo, resulta “barrada” a potencialidade aplicativa genérica e, com isso, infirmada a indispensável qualificação como “norma” do objecto deste pedido.
7. Para além deste obstáculo ao conhecimento do pedido, um outro se pode discernir, atinente à não coincidência entre o objecto do pedido e a norma que fundou a decisão recorrida.
Nesta decisão, a questão foi encarada na sua enunciação mais abstracta e genérica, ou seja, quanto a saber se a existência de um vínculo de arrendamento sobre o prédio expropriado se deve ou não reflectir no cálculo da indemnização a que o proprietário expropriado tem direito (cfr. fls. 1446 e s. dos autos).
Depois de expender uma série de considerações argumentativas, em que os referenciais normativos do Código das Expropriações utilizados foram os artigos 30.º e 28.º, n.º 3, e não os preceitos indicados pela recorrente como objecto de interpretação, o tribunal recorrido fixou conclusivamente o seguinte critério: «a indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao expropriado proprietário».
Foi esse critério que, de imediato, aplicou, como fundamento determinante da decisão de que não há «que repercutir na indemnização devida aos proprietários expropriados a indemnização arbitrada à Agremiação Desportiva H. (…)» (fls. 1450-1451).
Como se vê, as dimensões mais particularizadas que a recorrente (ainda que de forma incorrecta) imputa à interpretação que presidiu à decisão recorrida estão ausentes do critério normativo sustentado nesta decisão, não integrando a sua ratio decidendi.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se não conhecer do recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 (doze) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – J. Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano (vencido, nos termos da declaração de voto que junto). – Rui Manuel Moura Ramos.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Os Recorrentes pediram que o Tribunal Constitucional apreciasse a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 23.º e 26.º, do Código das Expropriações, realizada pelo Tribunal da Relação do Porto, na medida em que considerou que a indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao expropriado, quando em 40% da área total da parcela se encontrava localizado o complexo desportivo do H., que correspondia ao único uso e ocupação previsto e admitido pelo PDM de Matosinhos.
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge?se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Por outro lado, tratando?se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Da leitura do acórdão recorrido constata-se que, apreciando os fundamentos das alegações de recurso apresentadas pela entidade expropriante, em que esta defendia a redução da indemnização atribuída aos proprietários expropriados, por não ter sido considerado como encargo que onerava a parcela de terreno expropriada o arrendamento para instalação de equipamentos desportivos existente, sustentou-se que a indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao proprietário expropriado, sem se ter ponderado as particularidades do arrendamento em causa, nomeadamente a dimensão da área de terreno arrendada, a finalidade do arrendamento e a classificação dessa área no PDM.
Tais particularidades do caso concreto não integraram, pois, o critério normativo sustentado na decisão recorrida que fundamentou a decisão de não considerar o pagamento da indemnização pela caducidade do contrato de arrendamento à Agremiação Desportiva H., como um elemento a ponderar na fixação da indemnização a atribuir aos proprietários expropriados, pelo que as mesmas não se incluíram na sua ratio decidendi.
Contrariamente ao decidido pela maioria, entendi que a ausência de coincidência nestas particularidades do caso concreto não impedia o conhecimento do mérito do recurso, através duma delimitação do seu objecto que retirasse da sua enunciação tais particularidades.
Com essa delimitação, deixava de poder ser questionada a dimensão abstractizante do critério a fiscalizar, assim como a não coincidência com a ratio decidendi, sem que o conhecimento da arguição da sua inconstitucionalidade deixasse de dar resposta à pretensão do Recorrente, uma vez que este, conforma revelam as suas alegações e agora a sua mais recente pronúncia sobre o conhecimento do mérito do recurso, manifesta interesse nesse conhecimento limitado.
Assim, limitando o objecto do recurso ao critério normativo efectivamente aplicado pela decisão recorrida nos seus precisos termos, deveria o mesmo ser conhecido, restringindo-se à interpretação dos artigos 23.º e 26.º, do Código das Expropriações, com o sentido que a indemnização devida ao arrendatário pela caducidade do arrendamento em virtude da expropriação não é dedutível à indemnização devida ao proprietário expropriado.
Nos casos em que o bem expropriado se encontra total ou parcialmente arrendado a terceiro, em regra, o arrendamento caduca com a expropriação (artigo 1051.º, f), do Código Civil).
Numa situação destas, os danos suportados pelo arrendatário não são reportáveis à «perda do direito» objecto da expropriação, antes revestem a natureza de danos patrimoniais subsequentes, derivados ou laterais, isto é, prejuízos que são uma consequência da caducidade do arrendamento, por efeito do acto de expropriação por utilidade pública. O direito ao arrendamento constituiu apenas o objecto secundário ou indirecto do acto expropriativo, detendo a posição de objecto primário da expropriação o próprio imóvel arrendado, ou se se preferir, o direito de propriedade que incidia sobre esse bem.
Desde há muito que a legislação que regula as expropriações no nosso país considera estes arrendamentos como encargos autónomos para efeitos de indemnização dos arrendatários (actualmente, assim dispõe o artigo 30.º, n.º 1, do Código das Expropriações).
Esta autonomia significa que a respectiva indemnização não corresponde a uma parcela da que é devida pela expropriação ao titular do direito de propriedade sobre o bem arrendado, devendo ser cumulada com esta última, o que não impede que a existência de um arrendamento que caduca com a expropriação, impondo à entidade expropriante o dever de pagar ao arrendatário uma indemnização pela cessação forçada do contrato, não possa ser um elemento a considerar na fixação do montante da indemnização a atribuir ao proprietário expropriado.
O tribunal recorrido defendeu, porém, o entendimento que o montante da indemnização devida pela entidade expropriante ao arrendatário, pela cessação do arrendamento, não era dedutível naquele montante indemnizatório, não sendo o arrendamento do prédio expropriado um encargo do prédio expropriado que devesse ser considerado no apuramento da indemnização, diminuindo-a.
Esta posição tem antecedentes jurisprudenciais (vide, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 14-3-2006, proferido no processo n.º 107/06, acessível em www.dgsi.pt, da Relação de Guimarães de 31-1-2008, na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXXIII, Tomo I, pág. 278, e da Relação do Porto de 19-12-2007, proferido no processo n.º 0721749, e de 15-4-2008, proferido no processo 0726871, ambos acessíveis em www.dgsi.pt)
Já Henrique Mesquita (em “Obrigações reais e ónus reais”, pág. 182-183, da ed. de 1990, da Almedina) e Salvador da Costa (em “Código das Expropriações e Estatuto dos Peritos Avaliadores, anotados e comentados”, pág. 223, da ed. de 2010, da Almedina) parecem perfilhar opinião diferente.
Os Recorrentes no presente recurso sustentam que aquele critério normativo adoptado pela decisão recorrida viola o princípio da justa indemnização consagrado no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição.
Entendem que o arrendamento constitui um ónus que afecta o valor de mercado do imóvel, uma vez que constitui um limite à sua fruição, e que, apesar de caducar com o acto expropriativo, obriga a entidade expropriante a pagar um preço pela sua extinção, pelo que a desconsideração desta realidade na operação de fixação do montante indemnizatório devido pela expropriação do direito de propriedade traduz-se num enriquecimento do expropriado proprietário que vê ser-lhe atribuído um valor que nunca obteria no mercado ao alienar um bem arrendado a terceiro.
Apesar da Constituição ter remetido para o legislador ordinário a fixação dos critérios conducentes à fixação da indemnização por expropriação, ao exigir que esta seja “justa”, impõe a observância dos seus princípios materiais da igualdade e proporcionalidade, assim como do direito geral à reparação dos danos, como corolário do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da Constituição).
Em termos gerais e utilizando definição comum à jurisprudência deste Tribunal, poder-se-á dizer que a “justa indemnização” há-de tomar como ponto de referência o valor adequado que permita ressarcir o expropriado da perda do bem que lhe pertencia, com respeito pelo princípio da equivalência de valores. O valor pecuniário arbitrado, a título de indemnização, deve ter como referência o valor real do bem expropriado.
Ora, o critério geral de valorização dos bens expropriados, como medida do ressarcimento do prejuízo sofrido pelo expropriado, numa sociedade de economia de mercado como a nossa, é o do seu valor corrente, ou seja o seu valor venal ou de mercado, numa situação de normalidade económica.
Como escreveu Alves Correia “… a indemnização calculada de acordo com o valor de mercado, isto é, com base na quantia que teria sido paga pelo bem expropriado se este tivesse sido objecto de um livre contrato de compra e venda, é aquela que está em melhores condições de compensar integralmente o sacrifício patrimonial do expropriado e de garantir que este, em comparação com outros cidadãos não expropriados, não seja tratado de modo desigual e injusto” (em “O plano urbanístico e o princípio da igualdade”, pág. 546, da ed. de 1989, da Almedina).
Contudo, este valor não poder atender a situações especulativas ou conjunturais do mercado, devendo sofrer as correcções impostas por razões de justiça, donde resultará um “valor de mercado normativo”, sendo ele que deve constituir o critério referencial determinante da avaliação dos bens expropriados para o efeito de fixação da respectiva indemnização a receber pelos expropriados.
A expropriação traduz-se numa ablação forçada do direito de propriedade dos particulares, não sendo estes quem projecta a venda do bem expropriado. Os expropriados, além de se verem privados do domínio sobre o bem atingido que lhes proporcionava o direito de propriedade, são também impedidos de escolherem o momento mais favorável para a sua alienação, sendo a entidade expropriante quem define quando ela ocorre, sem que os expropriados intervenham nessa programação.
Tendo em atenção que o acto expropriativo também retira aos expropriados a possibilidade de definição do momento da alienação, não há razões de justiça que imponham que um “valor de mercado normativo” tenha em atenção factores temporários que se verificavam na data em que ocorre a expropriação, constituindo ónus ou encargos, cuja extinção antecipada implica despesas para a entidade expropriante.
Se o proprietário tinha onerado temporariamente o seu bem, não perspectivando aliená-lo nos tempos mais próximos, o critério de justiça não impõe que, sendo a extinção do direito de propriedade imposta por um acto expropriativo realizado na altura em que se registavam essas limitações, as despesas resultantes da consequente extinção antecipada dos respectivos encargos sejam consideradas no apuramento do valor indemnizatório a atribuir ao proprietário, diminuindo-o.
O contrato de arrendamento caracteriza-se precisamente por implicar uma cedência do gozo temporário de um bem imóvel, mediante retribuição (artigos 1022.º e 1023.º, do Código Civil), pelo que se enquadra nas referidas limitações temporárias cuja desconsideração no momento da fixação da indemnização atribuída ao proprietário pela expropriação do bem arrendado não impede a qualificação dessa indemnização como justa pelo crivo constitucional.
Resultando a necessidade de pagamento da indemnização ao arrendatário da circunstância do acto expropriativo ter determinado a extinção antecipada do contrato de arrendamento, não se vislumbra que razões de justiça poderão determinar que o montante dessa indemnização deva ser deduzido ao valor da indemnização devida ao proprietário expropriado, quando este não teve qualquer intervenção na escolha do momento da produção do acto que abreviou o termo do arrendamento.
Como escreveram Pires de Lima e Antunes Varela, a propósito da indemnização devida pela entidade expropriante aos arrendatários rurais, pela caducidade do contrato de arrendamento como efeito do acto expropriativo:
“Não se lesa o proprietário, que recebe a indemnização correspondente ao valor da propriedade plena do imóvel, não se prejudica o arrendatário, que recebe a indemnização adequada ao prejuízo sofrido; apenas se sobrecarrega o expropriante com uma indemnização suplementar, o que é justo, uma vez que recebe o prédio imediatamente livre do vínculo contratual que sobre ele recaía” (em “Código Civil anotado”, vol. II, pág. 460, da 4.ª ed., da Coimbra Editora).
Poderá haver quem diga que existem contratos de arrendamento que, pelas suas particularidades, poderão resultar num encargo consolidado para o prédio expropriado, cuja ponderação uma justa indemnização não poderá ignorar, sob pena de resultar num enriquecimento injustificado do proprietário expropriado. Mas esse não era um problema para o presente recurso, em que apenas estava em causa a formulação de um critério geral que foi aplicado pela decisão recorrida, sem ponderação das circunstâncias concretas do contrato de arrendamento em causa. E esse critério geral, pelas razões que foram apontadas, não se mostra violador do princípio da justa indemnização, constante do artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, pelo que julgaria o recurso improcedente.- João Cura Mariano.