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Processo n.º 834/11
1.ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A fls. 1548 foi lavrada a Decisão Sumária n.º 644/11 do seguinte teor:
«[...]
Notificada do acórdão proferido na Relação de Lisboa em 29 de setembro de 2011, A. recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pretendendo ver apreciada a 'interpretação inconstitucional do artigo 127º, do CPP, no sentido de que «...pode o julgador, com base no princípio do livre convicção e, não obstante ter a recorrente requerido como prova e ter sido deferida, a junção aos autos de relatórios psicológicos seus – realizados em Hospital Público – pouco tempo depois da ocorrência do homicídio de que vem acusada, julgar com base em avaliação mais distante do tempo, excluindo do grau da culpa, a eventual ocorrência de emoção violenta, despistando, sem qualquer dúvida razoável, a eventual subsunção dos factos como sendo homicídio privilegiado, mesmo sem ter tomado conhecimento do conteúdo dos preteridos relatórios...»'.
Todavia, o recurso interposto ao abrigo da citada alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem caráter normativo, incidindo – direta ou indiretamente – sobre normas jurídicas e não sobre decisões dos tribunais. Ora a 'norma' que a recorrente enuncia como objeto do recurso é, na verdade, uma ponderação que a recorrente crê que o tribunal recorrido adotou na sua decisão, nada tendo a ver com qualquer um dos possíveis critérios normativos extraíveis do invocado artigo 127º do Código de Processo Penal.
O Tribunal não pode, por isso, conhecer de um tal objeto. Decide-se, em consequência, não conhecer do recurso.[...]»
2. Notificada, a recorrente A. reclama desta decisão nos seguintes termos:
[...]
Segundo a fundamentação da douta decisão sumária em crise, a recorrente teria fixado o objeto de seu recurso, não pondo em causa qualquer questão com a especificidade de “dimensão normativa”, mas limitando-se a expressar a sua discordância face a aplicação realizada do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Salvo o devido respeito, entende a recorrente que não limitou o seu recurso, nem fixou o seu objeto com base numa mera interpretação do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
A recorrente foi mais longe: fixou o objeto de seu recurso pelo exercício de jurisdição, com base no princípio da livre convicção, em moldes a permitir a não utilização e respetiva valoração, em julgamento, da produção de uma prova que havia sido deferida pelo Tribunal Coletivo, durante o curso do processo e que, ao final, não foi produzida.
Pelo que, a preterição da produção de tal prova, nestas circunstâncias, viola o direito constitucional da arguida/recorrente, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, bem como ao processo equitativo na vertente ampla defesa, nos termos do artigo 6.º da CEDH.
Este mesmo Tribunal Constitucional, através do Acórdão n.º 137/01, no âmbito do proc. 778/00, 3.ª Secção, da lavra da ilustre Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, julgou que:
«Deste modo, é claramente lesivo ao direito da defesa do arguido, consagrado no n.º 1, do Artigo 32.º da Constituição, interpretar o artigo 127.º do Código de Processo Penal no sentido de que o principio da livre apreciação da prova permite valorar, em julgamento, um ato de reconhecimento realizado sem a observância de nenhuma das regras previstas no artigo 147.º do mesmo diploma».
Neste sentido, mutatis mutandis, a recorrente delimitou o objeto de seu recurso na utilização inconstitucional do artigo 127.º do Código de Processo Civil, no sentido de se permitir ao julgador, como foi feito, no caso vertente, desprezar e não valorar prova documental (relatórios psicológicos do Hospital S. Francisco Xavier) – que foram realizados mais proximamente aos factos julgados – fundamentando serem desnecessários, sem mesmo tomar conhecimento prévio daqueles para, ao depois, valorá-los como entendesse, em violação clara dos princípios in dubio pro reo e ampla defesa.
Diante de tal decisão, salvo o devido respeito, considerar a recorrente que, contrariamente ao aflorado e decidido pela douta decisão sumária em debate, este Tribunal Constitucional pode conhecer do objeto do recurso, bem como pronunciar-se e julgar a questão de inconstitucionalidade suscitada.
Nestes termos, requer seja acolhida a presente reclamação, decidindo-se admitir e conhecer do objeto do presente recurso, bem como ordenar o seu regular processamento até decisão da questão de inconstitucionalidade suscitada.
3. Foi ouvido o representante do Ministério Público neste Tribunal, que se pronuncia pelo indeferimento da reclamação. Dispensados os vistos, importa decidir.
4. A reclamante não tem razão. O recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional, disciplinado pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC (Lei n.º 28/82 de 15 de novembro), tem caráter normativo, razão pela qual o seu objeto se reconduz à averiguação da conformidade constitucional da norma que representa a ratio decidendi da decisão recorrida. Dito de outra forma, o caráter normativo do recurso impede que o Tribunal proceda à sindicância direta da decisão recorrida, mediante a análise das suas ponderações de natureza tipicamente jurisdicionais, como sejam, no que agora importa fazer sublinhar, as que representam a atividade de julgamento do tribunal recorrido. Na verdade – bem longe de outros casos em que o Tribunal se debruça sobre o critério normativo que vinculou a decisão recorrida –, o que a recorrente pretende, neste seu recurso, é obter uma decisão de sinal contrário à decisão proferida no tribunal recorrido, sem apresentar, todavia, um qualquer critério normativo vinculativo dessa decisão. Na verdade, neste contexto, a referência artigo 127.º do Código de Processo Penal é manifestamente artificial face à 'interpretação' que a recorrente pretende sindicar, e que é, recorde-se, a seguinte: pode o julgador, com base no princípio do livre convicção e, não obstante ter a recorrente requerido como prova e ter sido deferida, a junção aos autos de relatórios psicológicos seus – realizados em Hospital Público – pouco tempo depois da ocorrência do homicídio de que vem acusada, julgar com base em avaliação mais distante do tempo, excluindo do grau da culpa, a eventual ocorrência de emoção violenta, despistando, sem qualquer dúvida razoável, a eventual subsunção dos factos como sendo homicídio privilegiado, mesmo sem ter tomado conhecimento do conteúdo dos preteridos relatórios...»'
5. Em face do exposto, o Tribunal decide indeferir a reclamação, mantendo a Decisão Sumária n.º 644/11 que decidiu não conhecer do recurso face à inidoneidade do seu objeto. Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 31 de janeiro de 2012.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.