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Procº nº 404/91 Rel. Cons. Alves Correia
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I- Relatório.
1. A. foi condenado, juntamente com outros réus, por Acórdão do Tribunal Colectivo do Círculo Judicial de Vila Franca de Xira, de 21 de Dezembro de 1990, como autor material de nove crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelos artigos 296º e 297º, nºs 1, alínea a), e 2, alíneas c), d) e h), do Código Penal, dois crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 306º, nºs
1 e 3, alínea b), do mesmo Código, e de três crimes de introdução em casa alheia, previstos e punidos pelo artigo 176º, nºs. 1 e 2, também do Código Penal, na pena única de 10 anos de prisão.
Lido o acórdão em audiência, realizada naquela data, dele foi imediatamente notificado o mandatário do arguido.
2. Em 17 de Janeiro de 1991, o arguido interpôs recurso daquele aresto para o Supremo Tribunal de Justiça, recurso este que foi admitido na 1ª instância. Mas, subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, logo na nota de revisão, se chamou a atenção para a circunstância de que, tendo o acórdão objecto de recurso sido proferido em 21 de Dezembro de 1990 e tratando-se de arguido preso, o prazo para recorrer e motivar tinha terminado em 10 de Janeiro de 1991, constatando-se que o requerimento de interposição de recurso e respectiva motivação apenas tinham dado entrada naquele tribunal no dia 17 de Janeiro de 1991.
Este entendimento foi acolhido pelo magistrado do Ministério Público, que, no seu visto, suscitou a questão prévia do não conhecimento do recurso, por o mesmo haver sido interposto para além do prazo previsto nos artigos 411º e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Notificado para se pronunciar sobre esta questão, defendeu o recorrente que os artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal deviam ser interpretados no sentido de se considerarem apenas aplicáveis aos actos do tribunal e da secretaria.
Opinou ainda que interpretar aqueles preceitos como aplicáveis ao arguido preso significaria prejudicá-lo, colocando-o numa situação de desigualdade face ao arguido não preso, com violação do artigo 13º da Constituição.
3. O Supremo Tribunal de Justiça, por Acórdão de 9 de Maio de 1991, julgou, no entanto, procedente a questão suscitada pelo Ministério Público e extemporânea a interposição do recurso, com base nas disposições conjugadas dos artigos 417º, nºs 2 e 3, alínea b), 419º, nº 2, e 411º, nº 1, do Código de Processo Penal.
Neste aresto, o Supremo Tribunal de Justiça, depois de se referir à discussão travada a propósito do § 3 do artigo 76º do Código de Processo Penal de 1929, ponderou:
'Não se ignora, contudo, que o sistema processual penal de 1987 se afasta sobremaneira do de 1929. E, sem irmos mais longe, porque o Código Velho, no artigo 76º (complemento do seu artigo 75º), se vinculava aos 'actos judiciais', enquanto o Código Novo, no artigo 103º - sucessor daqueles dois -, atinge os 'actos processuais'.
Ora, os 'actos judiciais' são uma espécie do género 'actos processuais'. E tal certeza bonda para avalizar o exposto afastamento.
[...] Este Tribunal tem vindo a decidir, numa sólida orientação, que
'os actos das partes' caem, todos eles, no âmbito dos artigos 103º e 104º do Código de 1987. E que, pois, os 'requerimentos de interposição de recurso'
(artigo 411º) às mesmas regras se subordinam (cfr. acórdãos de 11 de Dezembro de
1988 - processo nº 39823 - e de 29 de Março de 1989, in Colectânea de Jurisprudência, ano XIV, tomo 3º, pág. 5).
Outro não é o pensamento do acórdão de 12 de Julho de 1989 - processo nº 40136 - (Actualidade Jurídica, ano 1º, nº1, ficha nº 247). E parece de todo o interesse, à força de ostensiva expressividade, a reprodução dos seus traços fundamentais:
a) - O regime do novo Código de Processo Penal é dominado pela ideia da celeridade;
b) - O nº 2 do seu artigo 103º manda exceptuar, 'da prática nos dias úteis,
às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias', os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;
c) - A excepção funda-se certamente na consideração de que todos estes actos são urgentes, podendo tratar-se de actos do tribunal, da secretaria ou das partes, pois a expressão actos processuais a todos abrange;
d) - Assim, o prazo de interposição de recurso que diga respeito a arguido preso corre em férias, qualquer que seja o recorrente. Não seria correcto, na realidade, distinguir, pela interpretação, onde a lei não distingue. E nada autoriza, de todo o ponto, que se restrinja o alcance de expressão cuja abrangência vai muito além 'do Tribunal ou da Secretaria' (cfr. supra).
Aos princípios harmónicos da concentração, da continuidade e da celeridade têm de submeter-se todos os que intervêm no processo. A urgência é um comando geral, em terreno específico. E os actos do arguido detido ou preso são actos relativos ao próprio.
Não há razões válidas para que se abandone a doutrina dos arestos apontados. Ademais, não se produz, seguindo-a, qualquer dano sobre o princípio fundamental da igualdade perante a lei: Porque os recursos dos arguidos detidos ou presos se equivalem, em igualdade de armas (e de posições), aos dos arguidos não detidos ou não presos, do Ministério Público e do assistente, na área coberta pelos artigos 103º e 104º, em jogo. E não colhe, ao cabo, a invocação dos artigos 13º e 18º da Constituição da República, que o critério do Supremo rigorosamente respeita'.
4. Do aresto aqui parcialmente transcrito interpôs o arguido o presente recurso para o Tribunal Constitucional (cfr. requerimento de fls. 783, esclarecido pelos requerimentos de fls. 787 e 789), ao abrigo da alínea b) do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), indicando como seu objecto a questão da inconstitucionalidade das normas dos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal, por violação dos artigos 13º e 18º da Constituição.
5. Nas alegações produzidas neste Tribunal, o recorrente insiste na inconstitucionalidade daquelas normas do Código de Processo Penal, embora apenas com fundamento na violação do princípio da igualdade, concluindo, em síntese, o seguinte:
1º - Num processo com arguidos presos a arguidos não presos, em que, após a sentença, se intrometem as férias, os arguidos não presos dispõem de prazo mais dilatado para a interposição do recurso, o que viola frontalmente o princípio consignado no art. 13º da CRP;
2º - Mesmo que se entenda que, no mesmo processo, o prazo é igual para todos, tal violação subsistiria, porquanto:
a) Se se considerarem os dias de férias no cômputo do prazo, o arguido não preso disporia de prazo inferior para recorrer do que outro na mesma situação num outro processo em que não houvesse arguidos presos;
b) Se os dias de férias não forem considerados no cômputo do prazo, seria, então, o arguido preso a dispor de prazo mais dilatado do que outro na mesma situação num outro processo em que não houvesse arguidos não presos;
c) Não pode haver duas categorias de arguidos: os presos e os não presos. Em qualquer dos casos os arguidos merecem o mesmo tratamento da lei;
d) Como não pode haver tratamentos diferenciados consoante coexistam no processo ou não coexistam arguidos presos e arguidos não presos;
e) Ora, estas desigualdades de tratamento são proibidas pela Constituição ao consignar, no seu artigo 13º, que 'todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei'.
Por sua vez, o Exmº Procurador-Geral Adjunto em funções no Tribunal Constitucional concluiu assim as suas alegações:
1º - A regra de que correm em férias os prazos relativos a processos com arguidos detidos ou presos, resultante da conjugação dos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal de 1987, justifica-se pela defesa de valores constitucionalmente relevantes, como sejam a celeridade e eficiência do sistema penal, a liberdade do arguido e o interesse punitivo do Estado;
2º - Tal regra, conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, reiterada no acórdão recorrido, é aplicável, não apenas aos actos a praticar pelo arguido preso, mas também aos actos dos restantes intervenientes processuais, designadamente dos co-arguidos não presos, do Ministério Público e dos assistentes, pelo que ela não acarreta qualquer violação do princípio constitucional da igualdade;
3º - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida, na parte impugnada.
6. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir a questão de saber se as normas dos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal, interpretadas com o sentido que lhes foi conferido pelo acórdão recorrido, são (ou não) inconstitucionais, por violação do princípio da igualdade, condensado no artigo 13º da Lei Fundamental.
II - Fundamentos.
7. As normas cuja inconstitucionalidade vem questionada dispõem como segue:
ARTIGO 103º
Quando se praticam os actos
1. Os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período de férias judicias.
2 Exceptuam-se do disposto no número anterior:
a) Os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas;
b) ......................................
3. ..........................................
ARTIGO 104º
Contagem dos prazos de actos processuais
1. ..........................................
2. Correm em férias os prazos relativos a processos nos quais devam praticar-se os actos referidos no nº 2 do artigo anterior.
8. Nos termos do acórdão recorrido, as normas acabadas de transcrever não podem ser entendidas como referindo-se a arguidos presos, tendo, por isso, uma aplicação restrita aos actos do tribunal ou da secretaria que contemplem exclusivamente o arguido preso e visem garantir a sua liberdade individual, antes devem ser interpretadas como respeitando a processos com arguidos presos, abrangendo, consequentemente, não apenas os actos do tribunal e da secretaria, mas também os actos dos arguidos (presos ou não presos), do Ministério Público e do assistente.
Ao sufragar uma tal interpretação, o aresto sob recurso seguiu a orientação traçada em jurisprudência uniforme e constante do Supremo Tribunal de Justiça, desde a entrada em vigor do actual Código de Processo Penal. Essa orientação vai no sentido de que correm em férias os prazos dos processos em que haja arguidos presos, nos termos do disposto nos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal, abrangendo estes preceitos não apenas os actos dos arguidos presos, mas, de igual modo, os actos de todos os intervenientes nesses processos (co-arguidos não presos, Ministério Público e assistente), incluindo os actos do tribunal e da secretaria, pois a expressão
'actos processuais' todos abarca [cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 1988, 13 de Janeiro de 1989, 9 de Fevereiro de 1989 e 19 de Abril de 1989, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, nº 382
(1989), p. 450 ss., nº 383 (1989), p. 476 ss., nº 394 (1989), p. 544 ss.,e na Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV (1989), Tomo II, p. 12 ss., respectivamente. Cfr. ainda José Gonçalves da Costa, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina,
1988, p. 430).
9. Na óptica do recorrente, as normas dos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código de Processo Penal afrontam o princípio constitucional da igualdade. Ainda segundo a sua maneira de ver, esse afrontamento subsistirá mesmo que se entenda que, no mesmo processo, os prazos são iguais para todos os intervenientes, uma vez que então o arguido não preso disporia de prazo mais curto para recorrer do que outro na mesma situação num outro processo em que não haja arguidos presos.
Não tem, porém, razão o recorrente, como, breviter, se verá de seguida.
9.1. É sabido que o princípio da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável (vernünftiger Grund) ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio (Willkürverbot) [cfr., por todos, os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 186/90, 187/90 e 188/90, publicados no Diário da República, II Série, nº 211, de 12 de Setembro de 1990].
9.2. O legislador, ao consagrar nas normas dos artigos 103º, nº 2, alínea a), e 104º, nº 2, do Código Penal de 1987 a regra de que 'correm em férias os prazos relativos a processos com arguidos detidos ou presos', estabeleceu, de facto, uma disciplina jurídica diferente da que existe nos processos em que não há arguidos naquelas situações quanto à contagem dos prazos
- disciplina essa que, como decidiu o acórdão recorrido, se aplica não apenas aos actos a praticar pelo arguido preso, mas também aos actos dos restantes intervenientes processuais, designadamente dos co-arguidos não presos, do Ministério Público e dos assistentes.
A diferenciação operada pelo legislador, a qual se traduz num regime de desfavor, no que respeita aos prazos para a prática de actos processuais, dos arguidos em processos em que algum ou todos estejam detidos ou presos em comparação com os arguidos em processos em que não haja nenhum naquelas situações, poderia, prima facie, afigurar-se como materialmente infundada.
Mas, numa análise mais aprofundada das coisas, facilmente se chega à conclusão de que tal não sucede.
Na verdade, o legislador, ao adoptar um regime distinto para os actos processuais relativos a arguidos detidos ou presos, moveu-se, fundamentalmente, pela defesa de valores constitucionalmente relevantes, tais como os da celeridade e eficiência da justiça criminal, da liberdade do arguido e da eficácia do sistema penal.
Uma vez que todos os intervenientes processuais, sempre que haja arguidos detidos ou presos, estão sujeitos à mesma regra de celeridade, não ocorre qualquer afronta à regra da igualdade constitucionalmente consagrada.
Nem se argumente, ex adverso, que, no que respeita aos recursos, o curso do prazo em férias só se justifica nas situações em que o recurso abranja arguido preso e que, quanto a este, se houver já decisão transitada, a regra segundo a qual correm em férias os prazos relativos a processos nos quais haja arguidos detidos ou presos perde o seu fundamento ou a sua razão de ser.
É que, como se salientou no já citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de 1989, do nº 1 do artigo 402º do Código de Processo Penal resulta que, 'em regra, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão. Pode haver limitação do objecto do recurso nos termos do art. 403º, mas é operação a realizar pelo Tribunal 'ad quem'. No momento da apreciação da motivação do recurso essa limitação não era possível'.
A diferenciação de regimes acima apontada não se baseia, assim, em motivos subjectivos ou arbitrários, nem é materialmente infundada. Ela não infringe, por isso, o princípio da igualdade, plasmado no artigo 13º da Constituição.
III - Decisão.
10. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido, na parte impugnada.
Lisboa, 16 de Março de 1993
Fernando Alves Correia Mário de Brito Bravo Serra Luís Nunes de Almeida José de Sousa e Brito Messias Bento José Manuel Cardoso da Costa