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Proc.º n.º 143/91
1ª Secção Rel. Cons. Vítor Nunes de Almeida
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional:
I - RELATÓRIO:
1. - A. e outros propuseram contra B. e mulher uma acção especial de despejo com fundamento em caducidade do contrato de arrendamento, por decurso do prazo de 180 dias após comunicação de cessação dos poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado, sem notificação judicial do inquilino ao senhorio no sentido de que pretende manter a posição contratual (artigo 1051, nº 1, alínea c) e nº 2, do Código Civil), pedindo a condenação dos réus a despejarem o prédio habitado, entregando-o aos autores livre de pessoas e coisas.
2. - Por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de ------------------ de 17 de Março de 1989, foi o pedido formulado na acção julgado procedente e improcedentes os formulados pelos réus na contestação, declarando-se extinto por caducidade o contrato de arrendamento relativo ao prédio sito na Rua ---------------- nº ---, daquela cidade e condenando-se os réus a despejarem e entregarem tal prédio, livre de pessoas e coisas, aos autores.
3. - Desta decisão levaram os réus recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 20 de Março de 1990, não só confirmou integralmente a decisão recorrida como também decidiu condenar os réus como litigantes de má fé.
De novo inconformados, os réus interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), quer relativamente ao mérito da questão quer à condenação por litigância de má fé.
Os recorrentes, nas alegações do recurso de revista suscitam a questão de constitucionalidade das norma do artigo
1051º do Código Civil (conclusão 5ª da alegações), por violação dos artigos 65º e 67º da Constituição.
O STJ, por acórdão de 5 de Fevereiro de 1992, veio confirmar o acórdão recorrido, depois de considerar improcedente a questão de constitucionalidade e decidiu agravar a condenação dos réus como litigantes de má fé.
4. - Mais uma vez inconformados, os réus interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do artigo
280º,nº 1, alínea b), da Constituição e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro.
Nas alegações, os recorrentes apresentaram as seguintes conclusões:
'1 - O artigo 1051º, nºs 1, alínea c) e 2, do Código Civil, na redacção em vigor à data do processo, é materialmente inconstitucional.
2 - Por essa razão, o contrato de arrendamento não caduca quando cessem os direitos ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado.
3 - Foram violados, entre outros, os artigos 13º, nº 1,
65º, nº 1 e 67º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.'
Os recorridos, nas suas alegações, formularam as seguintes conclusões:
'1ª O artigo 1051º, nºs 1-c 2, do Código Civil, na redacção em vigor à data do processo, não enferma de qualquer vício de inconstitucionalidade.
2ª Não houve, pois, violação de quaisquer preceitos constitucionais, designadamente, não foram violadas as normas constantes dos artºs 13º, nº 1, 65º, nº 1, e 67º, nº, 1, da Constituição da República Portuguesa.'
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir a questão que vem suscitada nos autos, que é a de saber se a norma constante do artigo 1051º, nºs 1, alínea c) e 2 do Código Civil, viola ou não os artigos 65º, nº 1 e 67º, nº 1, da Constituição.
II - FUNDAMENTOS:
5. - A norma cuja inconstitucionalidade vem questionada é a da alínea c) do nº 1 do artigo 1051º do Código Civil em conjugação com o nº 2, disposições que têm o seguinte teor:
'Artigo 1051º Casos de caducidade
1. O contrato de locação caduca:
[...]
c) Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado;
[...]
2. No arrendamento urbano, o contrato não caduca pelos factos previstos na alínea c) do número anterior, se o inquilino, no prazo de
180 dias após o seu conhecimento, comunicar ao senhorio, por notificação judicial, que pretende manter a sua posição contratual.'
Na redacção originária do preceito não existia o nº 2, que foi introduzido pelo Decreto-Lei nº 67/75, de
19 de Fevereiro (artigo 1º), tal como um número 3, referindo-se estes dois números às alíneas c) e d) - esta reportada à caducidade pela dissolução do casamento do locador ou pela separação de pessoas e bens, no caso de a coisa locada ser de natureza dotal. A norma do nº 2 determinava que se mantinha, nos casos das referidas alíneas, a posição do locatário, com actualização da renda nos termos legais, se assim fosse requerida, regulando o nº 3 não só o prazo para o exercício desse direito à manutenção da posição contratual (180 dias) como também a respectiva forma (notificação judicial) e ainda o momento do início da contagem do prazo (o conhecimento do facto determinante da caducidade).
Pelo Decreto-Lei nº 496/77, de
25 de Novembro (artigo 38º) foi eliminada do corpo do artigo a alínea d) e, por isso, foi também eliminada a referência a essa alínea nos nºs 2 e 3 do preceito, cuja redacção se manteve, no restante, igual.
Pelo Decreto-Lei nº 328/81, de 4 de Dezembro (artigo 2), foi eliminado o nº 3 do preceito e dada nova redacção ao nº 2, que é a que acima se transcreve, com a única diferença de designar o
«inquilino» por «arrendatário». A redacção do nº 2 do artigo 1051º acima transcrita é a do artigo 40º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro.
Actualmente - embora o facto seja irrelevante para os termos da causa - o nº 2 do artigo 1051º do Código Civil foi expressamente revogado pelo artigo 5º, nº 2, do Decreto-Lei nº
321-B/90, de 15 de Outubro, diploma que aprovou o novo 'Regime do Arrendamento Urbano (RAU), que no nº 2 do artigo 66º estabelece, em caso de caducidade do contrato de arrendamento por força da alínea c) do artigo 1051º, o direito do inquilino a um novo arrendamento nos termos do artigo 90º.
6. - No caso em apreço, foi celebrado entre C., como cabeça de casal da herança indivisa de seu marido D., um contrato de arrendamento com a sociedade 'E.', representada pelo réu B., para sua habitação e da família, no ----º andar do prédio em causa e o mais para instalação de uma agência funerária; tendo-se extinguido em 1980 a sociedade com transferência para o B. da agência funerária referida, do facto foi dado conhecimento à C., que o aceitou e começou a passar os recibos em nome do B..
Por escritura pública de 18 de Junho de 1986, foram partilhadas as heranças abertas por óbito do D. e da C., tendo a autora A. exercido o cabeçalato desde a morte da C. até à partilha. Efectuada esta, as autoras enviaram aos réus uma carta registada com aviso de recepção, em 25 de Junho de 1986, comunicando a realização da partilha das referidas heranças, carta que foi recebida pelos réus em 26 de Junho de 1986, sendo o aviso de recepção assinado por um funcionário da agência encarregado pelos réus de receber a correspondência.
Não tendo os réus feito, dentro do prazo de 180 dias a contar desta comunicação de realização da escritura de partilha, a notificação judicial do senhorio no sentido de que pretendiam manter a sua posição contratual, as instâncias consideraram o contrato de locação caducado por terem cessado os poderes legais de administração com base nos quais fora celebrado.
Mas, será aquela norma, que estabelece a caducidade do contrato de locação com fundamento na cessação do direito ou no termo dos poderes legais de administração que tinham estado na base do mesmo contrato, se o inquilino não notificar judicialmente o senhorio de que pretende manter a anterior posição contratual, no prazo de 180 dias, inconstitucional por violação dos artigos 65º e 67º da Constituição?
7. - O artigo 65º, nº 1, da Constituição estabelece que 'todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar'.
Para realizar tal finalidade, a Constituição faz recair sobre o Estado as seguintes tarefas, elencadas no nº 2 do preceito:
- programar e executar uma política de habitação inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social;
- incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução;
- estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria (alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 65º).'
Para além destas tarefas, o Estado deve ainda 'adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar' (nº 3 do artigo 65º) e, juntamente com as autarquias locais, deve 'exercer um efectivo controlo do parque imobiliário', procedendo às 'expropriações dos solos que se revelem necessárias' e definindo 'o respectivo regime de utilização' (nº 4 do artigo 65º).
Quanto ao artigo 67º, nº 1 da Constituição, que o recorrente também considera violado, estabelece que :
'A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros.'
O artigo 65º tal como o artigo
67º inserem-se na Parte I (Direitos e deveres fundamentais), do título III
(Direitos e deveres económicos, sociais e culturais), do capítulo II (Direitos e deveres sociais) da Constituição e consagrando o primeiro o direito à habitação.
Nos termos desse preceito, a Constituição reconhece a todos os cidadãos o direito a uma habitação dimensionada ao número de membros da respectiva família, onde possa ser preservada a intimidade individual e a privacidade familiar, que ofereça condições de vida condigna e minimamente integrada na vida da comunidade.
' O direito à habitação - como se escreveu no Acórdão nº 130/92 (in 'Diário da República', IIª Série, de 24 de Julho de 1992) - é um direito a prestações. Ele implica determinadas acções ou prestações do Estado, entre as quais, como já foi salientado, são indicadas as dos nºs 2 a 4 do artigo 65º da Constituição (cf. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, pp.680-682). Está-se perante um direito cujo conteúdo não pode ser determinado ao nível das opções constitucionais, antes pressupõe uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efectividade está dependente da «reserva do possível»
(Vorbehalt des Moglichen), em termos políticos, económicos e sociais [cf. J.J. Gomes Canotilho, 'Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador', Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 365, e 'Tomemos a Sério os Direitos Económicos, Sociais e Culturais', separata do número especial do 'Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra', «Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António de Arruda Ferrer Correia», 1984, Coimbra, 1989, p.26; J.C. Vieira de Andrade, 'Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 (reimpressão), Coimbra, Almedina, 1987, pp.199 e segs.e 343 e segs.]'.
O direito à habitação traduz-se, assim, no seu aspecto positivo, na exigência de medidas e prestações do Estado visando a sua realização mas que todavia não confere a qualquer cidadão um direito imediato a uma prestação efectiva, porquanto não é directamente aplicável ou exequível, exigindo uma actuação do legislador que permita concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei.
Daqui resulta que o direito fundamental à habitação, de acordo com o seu conteúdo constitucional, não é um direito capaz de ser o fundamento exclusivo - isto é, independentemente de regulamentação legal - do direito de o inquilino impedir a verificação da caducidade do contrato de arrendamento pelo facto de ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
E tanto assim é que, na hipótese
de caducidade que aqui está em causa, é a própria lei que prevê que o direito substantivo à manutenção do contrato de arrendamento se mantenha. Para tal, bastará que o inquilino cumpra uma exigência legal, perfeitamente legítima dentro dos parâmetros de funcionamento do princípio da autonomia da vontade, consistente na comunicação ao senhorio dentro do prazo de 180 dias, a contar do seu conhecimento da caducidade, por notificação judicial, de que pretende manter a posição contratual.
Não existe aqui portanto qualquer restrição ao direito à habitação, que a norma legal não põe em causa, e nem sequer se pode falar de uma qualquer exigência legal que possa qualificar-se de arbitrária ou desproporcionada, na medida em que o ónus cujo cumprimento se exige ao inquilino mais não é do que uma mera condição do exercício do direito de continuação do contrato de arrendamento, por forma a obstar à formação de uma presunção legal de não subsistência de vontade de permanecer no estatuto de arrendatário.
Isto bastará para mostrar que o conteúdo do direito à habitação contido no artigo 65º da Constituição, enquanto apreciado na sua dimensão positiva em nada é afectado pela norma do Código Civil
[artigo 1051º, nº 1, alínea c)] que estabelece a caducidade do contrato de arrendamento por ter cessado o direito ou terem terminado os poderes legais de administração que estiveram na base da celebração do mesmo contrato, desde que se não tenha concretizado a excepção constante do nº 2 do referido preceito.
Também não é violado o artigo
67º da Constituição que, como se viu, se refere à protecção da família enquanto elemento fundamental da sociedade por parte do Estado, pelas mesmas razões que se aduziram em relação ao artigo 65º, porquanto o direito à habitação é, no contexto deste preceito, apenas uma das formas possíveis de efectivação da protecção que ele pretende garantir.
Ora, a norma prevendo a continuação possível do contrato de arrendamento e exigindo, para tal, apenas a realização de uma comunicação ao senhorio nesse sentido, dentro de um prazo razoável (180 dias), não viola a protecção que a norma constitucional pretende garantir à família através da manutenção da habitação, pois consagra uma solução que protege e contempla suficientemente a dimensão social mais premente do direito à habitação, embora possam existir outras formas de protecção, como será o caso da nova lei, ao estabelecer o direito do arrendatário a um novo arrendamento.
Assim, tem de se concluir que não se verifica no caso a inconstitucionalidade que os recorrentes arguiram, pelo que o recurso não pode ser provido.
III - DECISÃO:
8. - Nestes termos e pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o acórdão recorrido.
Lisboa,1993.03.30
Vítor Nunes de Almeida
Maria da Assunção Esteves
Armindo Ribeiro Mendes
Alberto Tavares da Costa
Antero Alves Monteiro Dinis
José Manuel Cardoso da Costa