Imprimir acórdão
Proc. nº 3/92 Plenário Rel.: Consº Sousa e Brito
Acordam no Tribunal Constitucional:
I Relatório
1. O Procurador-Geral da República requereu ao Tribunal Constitucional a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade e da ilegalidade da norma constante do artigo 1º do Decreto Legislativo Regional nº 22/89/A, de 13 de Novembro, ao abrigo do disposto no artigo 281º, nºs 1, alíneas a) e c), e 2, alínea e), da Constituição.
A norma em apreço estabelece que 'Os contratos celebrados pelo GEPAP ao abrigo do disposto na alínea e) do artigo 2º do Decreto Regulamentar Regional nº 42/84/A, de 23 de Novembro, estão dispensados de visto prévio da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas.' Por seu turno, o Decreto Regulamentar Regional nº 42/84/A criou, na dependência do Secretário Regional dos Açores da Agricultura e Pescas, o Gabinete de Execução do Programa Agro-Pecuário do Pico (GEPAP), órgão a quem compete conceber, coordenar e executar todas as acções no âmbito do aludido programa, consistindo uma das suas atribuições na elaboração e no estabelecimento dos contratos necessários para o efeito e em zelar pelo seu cumprimento [artigo 2º, alínea e)].
O Procurador-Geral da República sustenta que a norma contida no artigo 1º do Decreto Legislativo Regional nº 22/89-A é organicamente inconstitucional, a um duplo título: porque versa matéria que está reservada à competência própria de um órgão de soberania, sobre a qual apenas a Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, pode legislar (artigo 168º, nº 1, alínea q), da Constituição), e porque tal matéria não é de interesse específico da Região Autónoma dos Açores, mas antes de interesse geral (artigo 299º, nº 1, alínea a), da Constituição). O Procurador-Geral da República defende ainda que a norma em crise é ilegal por desrespeitar leis gerais da República: o Decreto-Lei nº 146-C/80, de 22 de Maio, e a Lei nº 23/81, de 19 de Agosto.
2. Admitido o pedido do Procurador-Geral da República, foi notificado, para se pronunciar sobre ele, querendo, o Presidente da Assembleia Regional dos Açores (artigos 54º, 55º e 56º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro), que informou o Tribunal Constitucional de que a Assembleia Legislativa dos Açores deliberou, no dia 31 de Janeiro de 1992, aprovar um decreto legislativo regional revogatório do artigo 1º do Decreto Legislativo Regional nº 22/89/A - que é objecto do presente pedido.
E, na verdade, o Decreto Legislativo Regional nº 8/92/A, de 20 de Março, veio revogar, expressamente, no seu artigo único, o artigo 1º
do Decreto Legislativo Regional nº 22/89/A.
II Fundamentação
3. Só por si, a revogação da norma cuja constitucionalidade se pretende ver apreciada não implica a inutilidade superveniente do presente processo, por falta de interesse jurídico no conhecimento do pedido.
A norma em crise vigorou durante um lapso de tempo - mais de dois anos - e produziu efeitos. Ora, esses efeitos podem ser, porventura, atingidos por uma hipotética declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral - a qual, em regra, é eficaz desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela haja, eventualmente, revogado (artigo 282º, nº
1, da Constituição). Potencialmente, a dimensão da eficácia da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral excede o
âmbito dos efeitos da revogação da norma, o que obsta a que se negue, a priori, o interesse jurídico no conhecimento do pedido (neste sentido se pronunciaram os Pareceres da Comissão Constitucional nºs 1/80 e 4/81, publicados em Pareceres da Comissão Constitucional, vol. 11º, p. 27 e ss., e vol. 14º, p. 205 e ss., respectivamente, e os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 17/83, 12/88,
238/88, 319/89, 415/89, 73/90, 135/90 e 465/91, publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º vol., p. 93 e ss., e D.R., 1ª série, de 30 de Janeiro de 1988, e 2ª série, de 21 de Dezembro de 1988, de 28 de Junho de 1989, de 15 de Setembro de 1989, de 19 de Julho de 1990, de 7 de Setembro de 1990 e de
2 de Abril de 1992, respectivamente; identicamente, na doutrina, cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, Constituição e inconstitucionalidade, 3ª ed., 1991, p. 490).
4. Porém, o regime geral consagrado no nº 1 do artigo
282º da Constituição admite excepções, que são previstas nos demais números do mesmo artigo (inconstitucionalidade ou ilegalidade supervenientes - nº 2; caso julgado - nº 3; segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo - nº 4).
No caso sub judicio, importa averiguar se o Tribunal Constitucional deveria limitar os efeitos de uma eventual declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade, atendendo às exigências da segurança jurídica, da equidade ou do interesse público de excepcional relevo, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 282º da Constituição. Se se
entender que haveria lugar a uma limitação de efeitos de tal modo que a eficácia da eventual declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade não pudesse exceder os próprios efeitos da revogação da norma em crise, então deveria concluir-se que não há interesse jurídico no conhecimento do pedido (cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 415/89, 238/89 e 465/91, citados, e
135/90, D.R., 2ª série, de 7 de Setembro de 1990).
5. Não é unânime, todavia, a orientação do Tribunal Constitucional que postula a inutilidade do conhecimento do pedido quando a norma sobre a qual ele recai haja sido revogada e a eventual declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade tivesse os seus efeitos limitados de modo a não excederem os da revogação. Em declarações de voto, os Conselheiros Mário de Brito (cfr., designadamente, o Acórdão nº 238/88, cit.), Vital Moreira
(cfr. o Acórdão nº 415/89, cit.) e Tavares da Costa (cfr., nomeadamente, o Acórdão nº 135/90, cit.), sustentaram que a questão da restrição dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade só se coloca depois de resolvida - em sentido afirmativo - a questão de constitucionalidade suscitada.
Este entendimento recolheu o apoio de Jorge Miranda, que afirma que '... não pode aceitar-se ... que se faça depender a apreciação da constitucionalidade de uma qualquer verificação prévia da utilidade da sua eventual declaração ..., como se se estivesse em fiscalização concreta. Seria inverter todo o sentido do art. 282º ...' (ibid., pp. 504-5), conclui o autor.
6. Continua a considerar-se, contudo, que é inútil conhecer o pedido quando a norma sobre a qual ele recai haja sido revogada e a eventual declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade tivesse os seus efeitos limitados de modo a não excederam os da revogação.
Uma declaração de inconstitucionalidade proferida em tal hipótese estaria destituída dos efeitos jurídico-materiais e jurídico-processuais que caracterizam as decisões do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta (cfr., sobre estes efeitos, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 1079 e ss.). A admissão de que a declaração de inconstitucionalidade pudesse estar absolutamente desprovida de efeitos implicaria a ausência da força obrigatória geral que lhe é constitucionalmente conferida (artigo 282º, nº 1), promovendo a sua descaracterização.
É certo que a limitação de efeitos prevista no nº 4 do artigo 282º da Constituição pressupõe a apreciação do pedido e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral. Mas a ponderação do interesse processual implica sempre, por seu turno, a antecipação da decisão de mérito - quer o interesse processual seja definido através da utilidade ou do prejuízo advenientes da procedência da acção, quer seja concebido como necessidade de tutela judiciária (cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 426/91, D.R., 2ª série, de 2 de Abril de 1992).
Assim, em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, o Tribunal Constitucional limita-se a ficcionar o sentido da decisão de mérito e a avaliar o seu alcance para verificar um pressuposto do processo: o interesse jurídico no conhecimento do pedido. E nenhuma razão se vislumbra para indicar como peculiaridade dos processos de fiscalização abstracta a ausência deste pressuposto processual geral, autonomizado, na nossa doutrina, por Manuel de Andrade (Noções elementares de processo civil, com a col. de Antunes Varela, ed. rev. e act. por Herculano Esteves, 1976, pp. 79 e
80) e Palma Carlos (Código de Processo Civil Anotado, 1940, p. 132). A única especificidade assinalável, no âmbito dos processos de fiscalização abstracta, resulta da inexistência de partes: o interesse processual não é o interesse das partes, mas afere-se pela utilidade da declaração, relativamente aos destinatários da norma cuja apreciação é suscitada.
7. A limitação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral constitui um meio de atenuar os riscos de incerteza e de insegurança advenientes dessa declaração. É que, ao declarar a inconstitucionalidade de uma norma com força obrigatória geral, o Tribunal Constitucional contribui para o reequilíbrio da ordem jurídica, mas, simultânea e quase paradoxalmente, cria um factor de incerteza e de insegurança
(cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 206/87, D.R., 1ª série, de 10 de Julho de 1987, e Jorge Miranda, ibid., p. 504).
Assim, ao limitar os efeitos de uma declaração de inconstitucionalidade, o Tribunal Constitucional deve fazer um juízo de proporcionalidade, cotejando o interesse na reafirmação da ordem jurídica - que a eficácia ex tunc da declaração plenamente potencia - com o interesse na eliminação do factor de incerteza e de insegurança - que a retroactividade, em princípio, acarreta. Nesta ponderação, o Tribunal Constitucional deve atender
às exigências da segurança jurídica (entendida em sentido estrito), da equidade
(como solução justa a aplicar aos efeitos concretamente já produzidos pela norma declarada inconstitucional) e do interesse público (de excepcional relevo), cumprindo o mandamento do nº 4 do artigo 282º da Constituição.
8. No caso sub judicio, o interesse na reafirmação da ordem jurídica concretiza-se no interesse na fiscalização da legalidade das despesas públicas por um órgão jurisdicional, com competência para o efeito: o Tribunal de Contas.
Por outro lado, os riscos da incerteza e da insegurança resultantes de uma eventual declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral e eficácia ex tunc iriam materializar-se na invalidação de contratos celebrados durante a vigência do artigo 1º do Decreto Legislativo Regional nº 22/89/A, de 13 de Novembro, com dispensa de visto prévio da Secção Regional dos Açores do Tribunal de Contas. Trata-se de contratos celebrados antes da entrada em vigor da norma revogatória contida no artigo único do Decreto Legislativo Regional nº 8/92/A, de 20 de Março, porventura já executados, e em que intervieram, provavelmente, particulares, aos quais não é exigível o conhecimento da eventual inconstitucionalidade da norma ao abrigo da qual foi dispensado o visto prévio do Tribunal de Contas.
9. Não há dúvida de que razões de equidade e de segurança jurídica justificariam, no caso vertente, a restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, de modo a salvaguardar os contratos celebrados e, provavelmente, executados antes da declaração. Tais contratos geraram direitos, para as partes neles envolvidas, cuja afectação contenderia com as exigências de equidade e de segurança jurídica. Tal nem seria necessário para quem entenda que as situações ou relações jurídicas consolidadas por cumprimento de obrigações merecem tratamento análogo ao que é previsto para o caso julgado no nº 3 do artigo 282º da Constituição (a favor deste entendimento pronunciam-se Vitalino Canas, 'Introdução às decisões de provimento do Tribunal Constitucional, Os seus efeitos em particular', Estudos de Direito Público, nº 2, 1984, p. 74 e ss., e Rui Medeiros, Ensaio sobre a responsabilidade civil do Estado por actos legislativos, 1992, p. 200 e ss.; contra, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 2º vol., 12ª ed., 1985, p. 543; dubitativamente, Jorge Miranda, ibid., p. 495, e Gomes Canotilho, ibid., p.
1083-4).
Ora, atendendo a que a norma em crise já foi revogada, como se viu, pelo artigo único do Decreto-Legislativo Regional nº 8/92/A, de 20 de Março, não há interesse no conhecimento do pedido, visto que tal conhecimento seria insusceptível de gerar quaisquer efeitos jurídicos.
III Decisão
10. Ante o exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 1º do Decreto Legislativo Regional nº 22/89/A, de 13 de Novembro, que foi revogado pelo artigo único do Decreto Legislativo Regional nº 8/92/A, de 20 de Março.
Lisboa, 20 de Abril de 1993
José de Sousa e Brito Fernando Alves Correia Armindo Ribeiro Mendes Vítor Nunes de Almeida Messias Bento António Vitorino Bravo Serra Maria da Assunção Esteves Alberto Tavares da Costa (por entender que, no caso corrente, sempre se justificava a restrição dos efeitos de inconstitucionallidade, pelo que o conhecimento não geraria quaisquer efeitos jurídicos, votei o acórdão sem declaração semelhante ao Acórdão nº 135/90, entre outros) Mário de Brito (vencido, nos termos da declaração de voto junta)
Como escrevi na declaração de voto que fiz no Acórdão nº. 168/88, de 13 de Julho (no Diário da República, I série, de 11 de Outubro de
1988, e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 12º volume, pág. 173), 'a questão da restrição dos efeitos da inconstitucionalidade, ao abrigo do disposto no nº. 4 do artigo 282º. da Constituição, só se põe depois de se ter resolvido, em sentido afirmativo, a questão da inconstitucionalidade, isto é, depois de se ter declarado essa mesma inconstitucionalidade'.
Tenho repetido isso em outras declarações de voto: assim, nos Acórdãos nºs. 238/88, de 25 de Outubro (no Diário, II série, de 21 de Dezembro de 1988, e nos Acórdãos, 12º. volume, págs. 273), 319/89, de 14 de Março (no Diário, II série, de 28 de Junho de 1989), 415/89, de 14 de Junho (no Diário, II série, de 15 de Setembro de 1989), 73/90, de 21 de Março (no processo nº. 4/89), 135/90, de 24 de Abril (no Diário, II série, de 7 de Setembro de
1990), 465/91, de 11 de Dezembro, 467/91, de 18 de Dezembro (ambos no Diário, II série, de 2 de Abril de 1992), e 214/92, de 9 de Junho (no Diário, II série, de
18 de Setembro de 1992).
Concorda com essa orientação o Professor Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo II, Constituição e Inconstitucionalidade, 3ª. edição, totalmente revista e actualizada, 1991, nº.
143, V, em nota.
O presente acórdão também reconhece que 'a limitação de efeitos [...] pressupõe a apreciação do pedido e a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral'.
Mas acaba por não conhecer da inconstitucionalidade suscitada (a inconstitucionalidade de uma norma revogada), porque, a declarar-se tal inconstitucionalidade, sempre seria de restringir os seus efeitos...
Ora, a lógica mandaria que se começasse pelo conhecimento da questão de inconstitucionalidade.
Foi nesse sentido que votei.
Mário de Brito José Manuel Cardoso da Costa